Pré-publicação As confissões polémicas de Günter Grass

Um ano após a sua publicação na Alemanha, envolto numa dura polémica que dividiu escritores, críticos e políticos, o livro Descascando a cebola, de Günter Grasso, Prémio Nobel da Literatura de 1999, é posto à venda em Portugal no dia 17, em edição da Casa das Letras. Escolhemos para esta pré-publicação excertos de alguns dos momentos e reflexões mais pungentes da descrição que o escritor faz, nos primeiros capítulos do livro, das suas vivências, entre os 12 e os 17 anos, na Juventude Hitleriana e, posteriormente, na Luftwaffe e nas próprias SS, a força de elite do exército nazi. Dossier na sexta-feira, no suplemento Ipsilon do PÚBLICO

a Natural de Danzig (cidade prussiana, hoje polaca, com o nome de Gdansk), onde nasceu em 1927, membro, aos 14 anos, da Juventude Hitleriana, Günter Grass vê-se, ainda estudante do liceu, a prestar serviço como ajudante da Luftwaffe, a aviação alemã. Este serviço não foi prestado voluntariamente, mas é essa a altura em que se dirige a uma repartição de recrutamento para se oferecer "como voluntário, para o serviço nos submarinos". Quando lhe respondem que de momento as admissões estavam canceladas, replica: "Se não for para os submarinos, por mim pode ser para os blindados..."Informam-no que antes ainda há-de prestar "serviço de guerra, trabalhando". Fica numa bateria de praia, indo aos fins-de-semana a casa dos pais. A rotina como "trabalhador ao serviço do Reich" inclui treino de manhã. De resto, anda desarmado. Mas é nessa rotina matinal que vive uma das experiências mais marcantes, ao assistir à recusa reiterada de um companheiro de caserna, testemunha de Jeová, em pegar numa arma, o que o levará a ser detido e "transferido". Certamente para o campo de concentração de Stutthoh, para o qual "já há muito que estava bom", concluiu Grass com os outros, como se tal fosse o destino natural de um objector de consciência.
Esta história é uma das várias que seleccionámos para esta pré-publicação de Descascando a cebola, a polémica autobiografia lançada em Agosto do ano passado, na Alemanha, por Günter Grass, Prémio Nobel da Literatura 1999.
A autobiografia vai de 1939, quando o autor tem 12 anos, até 1959, muitos anos depois da sua libertação do campo de Bad Aibling, onde o exército norte-americano o manteve prisioneiro, juntamente com 100 mil outros soldados do exército nazi, entre os quais um tal Joseph, um bávaro de origem que em voz "imperturbavelmente baixa, suave mesmo" lhe citava Santo Agostinho em latim (Ratzinger? Grass acha hoje que sim).
No Ipsilon de sexta-feira, o PÚBLICO dedicará um dossier ao tema, do qual salientamos um ensaio de Timothy Gaston Ash, recentemente publicado na New York Review of Books. Adelino Gomes

Ajudante da Luftwaffe

(...) Certo é que me ofereci voluntariamente para o serviço militar. Quando? Porquê? Como não sei nenhuma data nem me lembro do clima já na altura instável, nem sequer consigo enumerar o que acontecia simultaneamente entre o mar Árctico e o Cáucaso e nas restantes frentes, são antes de mais situações apenas presumidas que querem dispor-se em frases, coisas que alimentaram, empurraram, finalmente conduziram à minha decisão de prestar serviço. A essas não são permitidos adjectivos atenuantes. O meu acto não pode ser encolhido ao estatuto de estupidez juvenil. Nenhuma coacção me pendia sobre o pescoço. Nenhuma culpa de que me tivesse convencido a mim próprio, por exemplo dúvidas sobre a infalibilidade do Führer, pedia para ser compensada através de fervor voluntário.Aconteceu durante o tempo de serviço como ajudante da Luftwaffe, que não prestei voluntariamente, mas que foi vivido como libertação da rotina do liceu e que, com treino moderado, lá se suportou.
Nós, a rapaziada, era assim que víamos as coisas. De uniforme, atraíamos os olhares. Fortalecíamos a frente doméstica na força da puberdade. A bateria de Kaiserhafen tornou-se a nossa casa. Para leste, avistava-se a planície até ao braço do Vístula, para oeste erguiam-se guindastes de carga, silos de cereais, as torres distantes da cidade.
A princípio ainda houve tentativas de prosseguir com as aulas do liceu, mas como eram interrompidas com frequência por simulações de combate, os professores, na maioria frágeis por serem já velhos, dispensavam o esforço de percorrer o difícil caminho de terra batida até à nossa bateria.
Finalmente éramos levados a sério. Seis canhões, o equipamento de vigilância aérea, tinham de ser apontados ao alvo. Oportunamente treinados a usar equipamento militar, podíamos ser úteis e - se chegasse a tanto - proteger a cidade e o porto dos ataques terroristas inimigos: quando o alarme de treino soava, cada um de nós ocupava em segundos o seu posto de combate.
Os nossos canhões de calibre oitenta e oito entraram em acção; contudo, só por duas ou três vezes, quando alguns bombardeiros inimigos foram avistados no espaço aéreo nocturno e apanhados como alvo pelo feixe de luz dos holofotes. Tinha um aspecto festivo aquilo.
Mas ataques em grande escala, as chamadas tempestades de fogo, pelas quais as cidades de Colónia, Hamburgo, Berlim e outras da região industrial do Ruhr tiveram de passar, nós não sofremos. Nenhum prejuízo digno de nota. Perto do estaleiro de Schichau, no Fuchswall, foram atingidas duas casas, poucos mortos. Mas orgulhámo-nos do abate de um bombardeiro quadrimotor Lancaster, mesmo que não tivesse sido atribuído à nossa bateria, mas à bateria localizada no extremo sul da cidade, Zigankenberg. Constava que os membros da tripulação, bastante carbonizados, eram canadianos. (...)
(...) Não havia revista da semana que não pusesse na tela notícias acerca do regresso triunfal dos submarinos. E como para o ajudante em curto período de licença que, depois do cinema, ficava ainda muito tempo acordado no sofá da sala, não era difícil ver-se num dos submarinos de setecentas e cinquenta toneladas; conseguia imaginar-me como cabo da Marinha, de vigia, no mar agitado; envergando um fato oleado, todo salpicado de espuma, com os binóculos apontados para o horizonte que oscila.
(...) Não, não foi nenhum jornal que me pôs assim a acreditar em heróis - os meus pais não assinavam o austero e rígido Vorposten, mas o mais, na medida do possível, objectivo Neueste Nachrichten -, foi sobretudo a revista da semana, que me serviu verdades embelezadas a preto e branco, nas quais eu acreditava sem margem para dúvidas.
Antes do documentário cultural e do filme principal, passava a revista da semana. Tanto nos cinemas de Langfuhr como no salão da Ufa da cidade velha, na Elisabethkirchengasse, eu via a Alemanha cercada de inimigos, agora em combate defensivo, heroicamente conduzido nas estepes infinitas da Rússia, nas areias escaldantes do deserto da Líbia, nas fortificações do Atlântico e, com submarinos, em todos os mares do mundo, além disso na frente doméstica, onde as mulheres fabricavam granadas e os homens montavam carros blindados.
Um bastião contra a maré Vermelha. Um povo na Luta Vital. A fortaleza Europa resistindo ao poderio do imperialismo anglo-americano; de certeza que havia muitas baixas, pois no Danziger Neueste Nachrichten os anúncios com moldura negra e decorados com a cruz do soldado caído, que testemunhavam a morte por Führer, Povo e Pátria, aumentavam de dia para dia.
Será que os meus desejos iam naquele sentido? Haveria, no rebuliço dos meus sonhos acordados, alguma ânsia pela morte à mistura? Será que queria ver o meu nome imortalizado assim, emoldurado a negro? É pouco provável. Talvez me sentisse egoísta e só, mas, devido à idade, não propriamente cansado de viver. Então era só estúpido?
Nada nos dá notícia acerca do que se passa no interior de um rapaz de quinze anos que quer absolutamente ir como voluntário para o local de combate e - o que podia prever, e até sabe pelos livros -onde a morte faz a sua colheita. As conjecturas rendem-se umas às outras: terá sido o afluxo de sentimentos torrenciais, o desejo de agir por iniciativa própria, a vontade de crescer depressa de mais e de ser um homem entre homens?
(cap. "Chamava-se nós não fazemos isso, pp. 63, 64, 67, 68, 69)

Voluntário para os submarinos

Uma escassa hora de viagem conduzia-me à meta dos meus desejos talhados para uma resplandecente heroicidade. Foi em Março ou já fazia tempo de Abril? Talvez estivesse a chover. O porto mergulhado em fumarada. Estava lá ancorado, no cais de Oxhöft, o antigo vapor Wilhelm Gustloff da organização Força pela Alegria e era utilizado por uma divisão de instrução de submarinos como caserna flutuante. Não tinha bem a certeza. O porto de guerra e o estaleiro eram considerados zona proibida.Sessenta anos mais tarde, quando, com o atraso de uma vida humana, finalmente pude escrever a novela A Passo de Caranguejo, que trata daquele navio a motor de nome Wilhelm Gustloff, do seu lançamento à água aplaudido com júbilo, dos muito apreciados cruzeiros em tempos de paz e da decisão de reequipá-lo, convertendo-o em navio-caserna ancorado, das repetidas saídas do porto e da carga humana - mil recrutas e muitos milhares de refugiados -, e finalmente do afundamento, no dia 30 de Janeiro de 1945, junto do Stolpebank, eu sabia todos os detalhes da catástrofe: a temperatura, vinte graus abaixo de zero, a quantidade de torpedos, três...
Ao relatar o decurso temporalmente bastante intrincado dos acontecimentos, embora tivesse uma novela secretamente entre mãos, imaginava-me como um dos recrutas de submarino a bordo do Gustloff a afundar-se. Assim se entendia aquilo que poderia ter passado pelas cabeças, debaixo dos bonés de marinheiro, dos rapazes de dezassete anos perante a sua própria morte prematura no gelo do mar Báltico: raparigas prometendo felicidade rápida e actos heróicos no futuro, ao mesmo tempo que - aí parecendo-se comigo - acreditavam num milagre, a vitória final.
Encontrei a repartição de recrutamento num edifício baixo dos tempos polacos, em que, por detrás das portas sinalizadas, se geriam, organizavam, reencaminhavam outros casos e eram organizados em pastas classificadoras. Após a pré-inscrição, era esperar até sermos chamados. Dois, três tipos mais velhos que eu, com quem não havia muito para conversar, foram atendidos antes de mim.
Um sargento do Estado-Maior e um cabo-chefe da Marinha queriam despachar-me por ser, a bem dizer, demasiado novo: faltava ainda maturidade aos do meu ano de nascimento. Mas iríamos ser chamados, de certeza. Não havia motivos para precipitação.
Fumavam e bebiam café com leite de chávenas bojudas. Um dos mais velhos, do meu ponto de vista - seria o sargento do Estado-Maior? -, afiava, enquanto eu falava, vários lápis para ter de reserva.
Ou será que vi uma providência pedante similar nalgum filme - jánãoseiemqual?
Será que o ajudante da Luftwaffe estava em uniforme ou à paisana, porventura em calções e meias até aos joelhos, assumindo a distância devida em relação à mesa e ficando em sentido - "Ofereço-me como voluntário para o serviço nos submarinos!" -, de modo brioso e bem treinado?
Terá sido convidado a sentar-se?
Sentir-se-ia corajoso e já nesse momento vagamente um herói?
Uma imagem desbotada tão só, sem qualquer ideia legível, dá resposta.
Em todo o caso, devo ter sido perseverante, mesmo quando foi dito que, de momento, não havia procura de recrutas voluntários para os submarinos. Admissões canceladas.
Depois disseram que a guerra, como era sabido, não se passava só debaixo de água, que iriam por isso tomar nota do meu nome e encaminhar a minha inscrição para outros serviços. Para divisões de blindados formadas de novo, conforme planificado, haveria por certo oportunidades, assim que o ano de nascimento de vinte e sete fosse chamado. "Nada de impaciências, meu rapaz, ainda vos hão-de ir buscar cedo que chegue..."
(cap. "Chamava-se nósnãofazemosisso, pp.69,70,71)

Juramento de bandeira nas SS

(...) A minha ordem de marcha seguinte indicava claramente onde é que o recruta com o meu nome iria receber, num campo de treinos das Waffen-SS, instrução como soldado operador de blindados: longe, algures nos bosques da Boémia...A pergunta é: assustou-me aquilo que, na altura, na repartição de recrutamento, se tornou óbvio, como ainda agora, passados mais de sessenta anos, o duplo S, no momento de escrevê-lo, me é medonho?
Na casca da cebola não há nada gravado onde se pudesse ler um sinal de sobressalto ou sequer de temor. O mais certo é ter visto as Waffen-SS como unidade de elite que só era mobilizada quando o assalto a uma fronteira tinha de ser barricado, uma bolsa, como a de Demiansk, tinha de ser forçada ou Charkow teve de ser reconquistada.
A dupla runa no colarinho do uniforme não me chocava. Para o rapaz que se via como homem terá sido mais importante sobretudo o ramo do exército: se não os submarinos, de quem os comunicados especiais já não forneciam quase relatos, então como soldado operador de blindados, numa divisão que, como se sabia no centro de comando Weisser Hirsch, iria ser formada de novo, mais exactamente sob o nome Jörg von Frundsberg.
Era-me conhecido como comandante da Liga Suábia do tempo das revoltas dos camponesas e como "Pai dos soldados mercenários".
Alguém que era responsável pela liberdade, pela libertação. As Waffen-SS irradiavam também qualquer coisa de europeu: agrupados em divisões, combatiam como voluntários franceses, valões, flamengos e holandeses, muitos noruegueses, dinamarqueses, até suecos neutrais, na frente leste, numa batalha defensiva que, dizia-se, iria salvar o Ocidente da torrente bolchevista.
Portanto, havia pretextos de sobra. E, não obstante, recusei-me durante décadas a admitir para mim mesmo a palavra e a letra duplicada.
Aquilo que eu tinha aceite com o orgulho estúpido da minha juventude, queria ocultar, por uma vergonha que se refazia sempre depois da guerra. Mas o peso ficou, e ninguém podia suavizá-lo.
É verdade que, durante a instrução como operador de blindados, que me embotou pelo Outono e Inverno fora, nada se ouvia acerca dos crimes de guerra que mais tarde vieram à luz, mas a afirmada ignorância não podia encobrir a minha consciência de ter sido incorporado num sistema que tinha planeado, organizado e executado o extermínio de milhões de pessoas. Mesmo que tenha sido possível dissuadirem-me de cumplicidade activa, ficou até hoje um resto impossível de apagar, que demasiado correntemente se chama co-responsabilidade. Viver com isso pelos anos que restam é garantido.
(...) Lá para o final de Fevereiro, quando começaram a espalhar-se rumores acerca da tempestade de fogo de Dresden, prestámos juramento debaixo da lua cheia e de um frio de rachar.
Um coro entoava a canção de juramento das Waffen-SS "Quando todos quebram a fidelidade, nós permanecemos fiéis...".
(cap. Como aprendi a ter medo, pp. 105,106,111)

Primeiro encontro com o inimigo

(...) Vejo os nossos blindados Jagdpanther, alguns blindados para transporte de atiradores, vários camiões, a cozinha de campanha e um amontoado de soldados de infantaria e atiradores de blindados, reunidos a esmo, tomar posição numa floresta jovem, seja para a contra-ofensiva, seja para constituir uma barreira de defesa.Árvores desabrochando, entre as quais bétulas. O sol aquece.
Chilrear de pássaros. Espera sonolenta. Alguém, não mais velho que eu, toca harmónica. Um soldado raso passa espuma, faz a barba.
E depois, vindo do nada - ou soaria o silêncio dos pássaros, a avisar, alto que chegasse? - vem o órgão de Estaline para cima de nós.
Fica pouco tempo para compreender por que razão o blindado é conhecido por esta expressão. O bramido dele, o sibilar, o estrondo?
Com duas, três baterias de blindados, fica o pedaço de floresta progressivamente abastecido. O órgão não quer poupar nada, vai a fundo, arrasa a jovem madeira que prometia cobertura. Não havia escapadela possível; ou será que havia, no que diz respeito a um simples atirador?
Vejo-me a mim, como tinha aprendido, a rastejar debaixo de um Jagdpanther. E mais alguém, talvez o motorista, o apontador ou o comandante do Jagdpanther, mede, debaixo do tanque do blindado, o espaço de liberdade. As nossas botas tocam-se. À esquerda e à direita, as rodas dos cadeados cobrem-nos. Três minutos, uma eternidade deve ter levado o órgão a tocar. Transido de medo, mijo-me nas calças. Silêncio depois. Ao meu lado, bater de dentes, em várias estrofes.
Pouco antes, não, já antes de o órgão terminar a sua peça de concerto, começou o matraquear do bater de dentes que se prolongou e durava ainda quando já os gritos dos feridos se sobrepunham a qualquer outro ruído.
Por muito curto que fosse o lapso de tempo, foi suficiente: logo no decorrer da primeira lição, aprendi a ter medo. O medo apossou-se de mim. Acabou-se o rastejar treinado; arrastei-me de baixo do Jagdpanther para fora e vejo-me a arrastar-me pela terra revolvida da floresta e pela folhagem apodrecida, uma mistura contra a qual comprimi a minha cabeça e cujo cheiro vai ficar gravado.
Ainda com as pernas a tremer, estava exposto a uma tempestade de imagens. Em volta, a jovem floresta dilacerada, as bétulas como que rachadas acima do joelho. Cumes de árvores tinham feito explodir prematuramente uma parte das granadas. Espalhados, jaziam corpos, isolados e uns por cima de outros, mortos, ainda vivos, torcidos, espetados em ramos, crivados de estilhaços de granada. Alguns corpos tinham-se enlaçado acrobaticamente. Também se poderiam achar partes de corpos.
Seria aquele o rapaz que ainda há pouco se aguentava, com a harmónica?
Reconhecível o soldado raso, em cujo rosto o creme de barbear secava...
Lá pelo meio arrastavam-se sobreviventes ou estavam especados como eu. Alguns gritavam, embora não estivessem feridos. Alguém choramingava como uma criança pequena. Fiquei com as calças molhadas de mijo, em silêncio, e vi ali ao pé o ventre aberto de um rapaz, com quem tinha ainda há pouco tagarelado nãoseiquê. As entranhas. A cara redonda dele, que no momento da morte parecia ter encolhido... (...)
(cap. Como aprendi a ter medo, pp.116, 117, 118)

Atrás das linhas russas

A primeira oportunidade de acabar debaixo do fogo da metralhadora ou de ir parar ao cativeiro, para de seguida ir aprender a sobrevivência na Sibéria, deu-se quando um amontoado de seis ou sete homens dispersos, chefiados por um sargento, fizeram a tentativa de fugir da cave de uma casa de um só piso. A casa ficava numa aldeia, na parte ocupada pelos Russos que ainda era disputada.Como fomos parar atrás da linha russa e dar à cave de uma casa que mais parecia uma cabana, é incerto. Ora, pretendia-se que a fuga para o outro lado da estrada, e para uma das casas que eram ainda defendidas pelos nossos, nos salvasse. Ouço o sargento, uma estaca com bivaque inclinado, dizer: "É agora ou nunca!"
A localidade disputada, que ficava na arenosa região de Lausitz e se estendia como aldeia construída à margem da estrada, ficou sem nome ou foi por mim esquecido. Através da janela da cave, ouvia-se, entre pausas, tiroteios: fogo de espingardas e de metralhadoras.
Em nenhuma das prateleiras se encontrava algo de comestível. Mas o proprietário da casa, pelos vistos escapado a tempo, devia ser um vendedor de bicicletas que tinha açambarcado e escondido na cave a sua cobiçada mercadoria, pois estavam penduradas, em suportes de madeira com as rodas dianteiras para cima, bicicletas com fartura, parecendo todas utilizáveis e com os pneus bem cheios; em todo o caso pediam para ser usadas.
E o sargento devia pertencer à categoria dos decisores rápidos, porque depois de ter dito "É agora ou nunca", ouço-o mais a ciciar do que a berrar: "Vamos, cada um agarra numa bicicleta. E depois ala para o lado de lá..."
O meu protesto, ainda que pronunciado com embaraço, no entanto decidido: "Meu sargento, infelizmente não sei andar de bicicleta" deve ter sido avaliado como uma piada de mau gosto. Ninguém riu. (...) Portanto, o sargento, antes que eu tivesse em compensação a oportunidade de elogiar as minhas artes natatórias cedo aprendidas, mais uma vez rápido na decisão: "Vamos, pegue na metralhadora e dê-nos cobertura. Nós vimos buscá-lo mais tarde..."
É possível que um ou outro soldado raso, de todos os que foram obedientemente tirar uma bicicleta dos suportes, tivesse tentado atenuar o meu medo. Não teve ressonância. Tomei posição junto à janela da cave com uma arma para a qual não tinha sido instruído. O soldado, de novo incompetente, também não chegaria a dar um tiro porque, mal os cinco ou seis homens saíram da casa pela porta da frente com os seus veículos, entre os quais havia também bicicletas de senhora, foram ceifados por fogo de metralhadoras no meio da estrada da aldeia, vindo nãoseidonde, se deste ou daquele lado ou dos dois ao mesmo tempo.
Penso eu ter visto um amontoado estrebuchando, pouco depois já só estremecendo. Alguém - o sargento comprido? - caiu sobre si ao tombar. Depois, nada mais mexeu. Quando muito, vi uma roda dianteira que se destacava do amontoado: como ela rodava e rodava.
Mas também é possível que esta descrição da chacina seja uma imagem fornecida posteriormente, encenada, uma vez que eu, mesmo antes dos estouros fatais, tinha já abandonado o meu posto junto à janela da cave e não vi nada, não queria ver nada.
Deixei a casa do comerciante de bicicletas com a minha carabina, sem a metralhadora ligeira, a arma que me era familiar, e esgueirei- me pelo jardim das traseiras e pelo portãozinho que rangia. Por trás e entre jardins, continuava coberto por arbustos que começavam a ganhar rebentos, deixando a aldeia, perceptivelmente disputada, por atalhos e dei de repente com a via-férrea de um pequeno ramal, cingida dos dois lados pelo mato de um aterro da altura de um homem.
Seguia a direito no sentido da nossa presumível linha da frente. Silêncio.
Só pardais, abelheiras no matagal.
(cap. Como aprendi a ter medo, pp. 121,122)
Salvo por
um cabo

(...)Terá acontecido por decisão própria?O mais certo é ter sido o cabo que, ao ver as runas no colarinho, ordenou a troca de casacos e tornou-a possível com uma intervenção pragmática. Não lhe podiam agradar as minhas insígnias.
Através de mim, sem de resto gastar uma palavra com isso, tinha ficado em companhia suspeita.
Numa qualquer altura, talvez já na cave cheia de frascos de conservas ou durante uma pausa na marcha, quando se ensaboou, barbeou e depois pegou no cigarro, fez-me saber: "Se o Ivan calhar de nos apanhar, tás feito, pá, com a decoração do teu colarinho. Um como tu, eles mandam abaixo e pronto. Tiro na nuca e acabou..."
Talvez tenha, jánãoseionde, "orientado" um caso normal da Wehrmacht, como se dizia no alemão da soldadesca. Um que não tivesse buracos de tiros ou manchas de sangue. Até me servia. Agora, sem a dupla runa, já me aceitava melhor. E até eu aceitei o disfarce imposto.
Tal era a solicitude do meu anjo-da-guarda. Assim como o Simplório tinha ao lado um irmão do peito para defendê-lo dos perigos para corpo e alma, também eu podia confiar no meu cabo, investido agora de uma identidade retocada.
Depois é sempre antes. Aquilo a que chamamos presente, este efémero agoragoragora, é permanentemente ensombrado por um Agora passado, de modo que, mesmo o caminho de fuga para a frente, chamado futuro, só pode ser calcorreado com solas de chumbo.
É assim, pesado, que vejo, à distância temporal de sessenta anos, como um rapaz de dezassete anos, com o tambor da máscara de gás desviado da sua finalidade e o casaco do uniforme talhado de novo, se esforça por permanecer ao lado de um cabo astucioso, de longa experiência vivida, porque pressente o sabor de cada perigo, do qual ninguém diria que é barbeiro de profissão, tentando encontrar e juntar-se a partes de tropas que recuam. Ambos conseguem por diversas vezes iludir o controlo dos "mastins de corrente". Há sempre buracos a farejar. Só raramente a linha da frente pode ser reconhecida.
Entre milhares de dispersos, eles são dois indivíduos isolados a quem falta o papel salvador. Que amontoado estará suficientemente exausto para recolhê-los?
Só na estrada de Senftenberg para Spremberg, entupida de carroças puxadas a cavalo e de refugiados, é que o par desigual, apesar do uniforme igualmente cinzento-esverdeado, consegue aproveitar o engarrafamento e negociar, junto a um posto de reunião improvisado e um pouco afastado da estrada, o papelinho carimbado, as ordens de marcha que garantem a sobrevivência. Ao ar livre, está a mesa com um banco. Em cima da mesa um impresso. Um sargento-mor, cansado da guerra, está sentado no banco, não faz perguntas, assina ininterruptamente, carimba. Papagueei aquilo que o meu cabo me tinha dito para dizer.
(...) O ambiente não é nem opressivo nem descontraído.
Tempo típico de Abril. De momento, o Sol está a brilhar.
Agora estamos frente a frente e comemos a sopa a compasso. "Eh pá", diz alguém que está uns passos ao lado e também come, "hoje é o dia de anos do Adolf! Onde é que está a ração extra? Então, Scho-Ka-Kola, cigarros, um copinho de aguardente para brindar! Heil, meu Führer!"
Agora, alguém tenta contar uma anedota, mas atrapalha-se. Gargalhadas contagiantes. Outras anedotas vão ganhando lanço. Uma imagem de tranquilidade em recorte. Só falta alguém que toque acordeão.
"Como é que se chama a região?"
"Lausitz!"
Agora há alguém que sabe: "Há quantidades enormes de lenhite por aqui...".
(cap. Como aprendi a ter medo, pp. 134,135, 136)

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