O intelectual sedutor que era também uma estrela mediática

Escrevia sobre filósofos ou lingerie e dizia ter um modo infantil de se sentir feliz. Foi um dos mais importantes intelectuais portugueses dos últimos 40 anos

a Definiu-se assim no último livro: "Um português de classe média, professor, escrevendo nos jornais, tendo uma certa vida pública e cerca de 60 anos, com uma filha, um neto e algumas histórias de amor." Eduardo Prado Coelho (EPC), de 63 anos, professor universitário, crítico literário e ensaísta, morreu ontem na sua casa em Lisboa, vítima de ataque cardíaco. Era colaborador do PÚBLICO desde o primeiro número, tendo mantido nos últimos dez anos uma coluna de segunda a sexta-feira, O Fio do Horizonte, que iniciou no dia 2 de Fevereiro de 1998 e cuja derradeira crónica é publicada aqui. O funeral sai hoje às 11h00 do Palácio Galveias para o cemitério dos Prazeres, em Lisboa.Familiares, amigos próximos, alunos e admiradores falam da sua insaciável curiosidade, do permanente desejo de saber, da necessidade de testar e desafiar convenções, da sua capacidade de seduzir com as palavras.
"Costuma-se dizer que ninguém é insubstituível, mas a curiosidade do Eduardo, a sua capacidade de olhar sempre de forma inteligente a nossa realidade é absolutamente única e, por isso, insubstituível", disse ontem o poeta e escritor Nuno Júdice, que era seu amigo desde os tempos da faculdade e foi o seu substituto como conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Paris. "Vou sentir saudades das conversas sobre tudo, daquela inteligência que se transferia para as palavras e para as pessoas."
Apesar de o seu pai querer que fosse para Direito, foi decisiva uma conversa que teve com José Hermano Saraiva para se inscrever em Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa. Contou ao Diário de Notícias, em Setembro de 2001, que nessa altura o pai lhe deu um conselho que não seguiu: "Tens muitas qualidades, mas um enorme defeito: só fazes as coisas que te dão prazer."
Essa "dimensão jubilatória da vida" é precisamente uma das características que o amigo António Pinto Ribeiro, programador cultural, salienta. Prado Coelho dizia-lhe muitas vezes que "gostava de gostar". Era uma pessoa "muito divertida", continua. Num dos vários inquéritos a que respondeu, contou o que um dia o fez desejar sumir-se pelo chão abaixo: "Precisava de clips, chamei a minha colaboradora e disse: "Por acaso não tem um slip?"
Nasceu em Lisboa, a 29 de Março de 1944. A mãe, Dália Reis de Almeida, era professora do ensino secundário, licenciada em Românicas. O pai, Jacinto Prado Coelho, era professor catedrático de Literatura Portuguesa Moderna na faculdade onde o filho se licenciou. Era também crítico literário e ensaísta, uma referência no seu tempo.
Filho único, sentia o peso de o ser, brincava e estudava muitas vezes sozinho. Cresceu com a companhia de David Mourão-Ferreira e Urbano Tavares Rodrigues, assistentes do pai e visitas assíduas da casa. A revista Visão, em Novembro de 2002, fez-lhe um perfil onde contava que passava o dia a brincar com soldadinhos de chumbo e a comer leite-creme em casa do avô paterno, António Prado Coelho, professor do Liceu Camões.
Eduardo também frequentou este liceu. Da sua turma faziam parte Basílio Horta, António Monteiro, Artur Maurício e Mário de Carvalho. O neurocirurgião João Lobo Antunes também foi seu colega. Separaram-se quando tinham 15 anos - um foi para Ciências, o outro para Letras -, mas Lobo Antunes continuou a acompanhar a obra do crítico com quem ia a exposições de pintura quando eram ainda muito jovens. "Classificávamos ingenuamente os pintores", recorda Lobo Antunes. "Já nessa altura ele tinha um grande sentido de crítica." Deve a Prado Coelho a descoberta de Raymond Chandler - "através de livros que circulavam clandestinamente" - e uma das "coisas mais fantásticas" que alguma vez lhe chamaram: "Quando tínhamos 12 anos, o Eduardo fez uma conferência numa aula de Psicologia em que disse que eu era fleumático. Nunca mais recebi um elogio assim." Para Lobo Antunes, a morte de Prado Coelho deixa um vazio na vida portuguesa. "Vai fazer falta a voz da sua inteligência. Uma inteligência em português."
Manuel Alberto Valente, das Edições ASA, onde Prado Coelho publicou dois volumes de Tudo o que Não Escrevi e O Cálculo das Sombras, diz que foi sem dúvida "o grande intelectual de uma geração: a minha". "Intelectual no sentido em que ele o entendia. Agarrado à vida em todas as suas manifestações e tirando dela reflexões quase sempre luminosas e inteligentes."
Quando folheia os livros de Prado Coelho que tem na estante, Manuel Maria Carrilho, deputado socialista e ex-ministro da Cultura, lembra o "homem corajoso que foi um dos mais notáveis intelectuais portugueses dos últimos 40 anos" e também o professor atento, desafiador, que ia com os estudantes ao cinema e foi capaz de lhes dedicar o seu primeiro livro (O Reino Flutuante, 1972).
Curioso quase excessivo
"O Eduardo falou de todos os temas importantes da vida portuguesa dos últimos 40 anos, da literatura à política, às artes plásticas, ao cinema, à moda, às vezes com custos pessoais, enfrentando a crítica e o risco, sempre com audácia, ironia e humor."
Prado Coelho dizia que era "furiosamente moderno no interior da pós-
-modernidade em que todos vivemos". Um homem que a sua única filha, a jornalista do PÚBLICO Alexandra Prado Coelho, definiu um dia como um "curioso quase excessivo".
Começou a escrever aos 18 anos na revista Seara Nova e no Diário de Lisboa e nunca mais parou.
Quando se licenciou, foi leitor durante um ano em Aix-en-Provence, em França. Foi só com Veiga Simão como ministro que começou a sua carreira como assistente na Faculdade de Letras de Lisboa. Foi assistente entre 1970 e 1983, ano em que se doutorou com uma tese Os Universos da Crítica, Paradigmas nos Estudos Literários. No ano seguinte, passou a professor associado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova.
Na faculdade, a sua imagem era a do professor sempre rodeado de alunos e alunas. Ao Semanário, em 1986, disse que "seria incapaz de escrever se as mulheres fossem incapazes de ler". Casou três vezes: a primeira com Maria Eduarda Colares, mãe da sua única filha; a segunda com Tereza Coelho, e a terceira com Maria da Conceição Caleiro. Actualmente vivia com Maria Manuel Viana.
Mafalda Ivo Cruz, escritora, reconhece-lhe a capacidade de conquistar. Era a rir que falavam dos livros dela, que ele compreendia como ninguém. "Ele é o amor à vida personificado, alguém que vive a fundo tudo o que acha por bem viver, com uma envergadura pessoal insubstituível e uma grande sedução."
A capacidade de intervenção de Prado Coelho estendia-se a muitos domínios da vida pública, incluindo a política, onde teve um papel determinante na área da cultura. Depois do 25 de Abril foi militante do PCP, mas, a sua ligação política mais evidente foi ao PS (ver texto na pág. 4). Desempenhou funções governativas como director-geral da Acção Cultural de 1975 a 76. No ano seguinte, foi para Paris ensinar no Departamento de Estudos Ibéricos da Sorbonne.
Mais tarde, entre 1989-98, foi conselheiro cultural na Embaixada de Portugal em Paris e, em 1997, director do Instituto Camões na mesma cidade. "O trabalho que fez em França foi notável, marcou a presença da cultura portuguesa de uma forma que nunca tinha sido feita até aí e não voltou a ser depois disso", diz Pinto Ribeiro.
Quando regressou a Portugal, voltou à universidade. Foi comissário de vários eventos e todos lembram o sucesso do Salão do Livro de Paris por si organizado, onde Portugal foi o país-tema da grande feira literária. A divulgação dos autores portugueses passava por estas feiras, mas também e, sobretudo, pelas crónicas semanais no suplemento Leituras e, mais tarde, Mil Folhas, do PÚBLICO. Ia retomá-las em Setembro no Ípsilon.
Apesar de tudo, não se sentia um crítico literário no sentido profissional do termo, admitiu ao Diário de Notícias em 2001: "Interessa-me escrever de uma forma contagiante sobre as coisas que me tocam e podem ser partilhadas. [...] A ideia de capelinhas é a de que se promovem pessoas não por razões de ordem literária mas porque são nossos amigos. O processo é normalmente ao contrário. Tornamo-nos amigos de pessoas que não conhecemos, porque um dia descobrimos um livro delas."
Com as suas crónicas diárias no PÚBLICO, a sua vida foi completamente alterada em termos de relação com as pessoas, disse à Visão o ano passado: "Ao fim de seis anos de crónicas, sinto que tenho uma determinada influência."
É autor de uma vasta bibliografia, em grande parte composta por livros que agrupam textos escritos na imprensa (ver caixa). Com os dois volumes do diário, ganhou o Grande Prémio de Literatura Autobiográfica da Associação Portuguesa de Escritores em 1996. As suas crónicas diárias mereceram, em 2004, o Grande Prémio de Crónica João Carreira Bom.
Na memória ficam o humor, por vezes negro, e a ironia com que abordava alguns temas e aceitava desafios. Famosa ficou a sua ida ao talk-show Na Cama com... Alexandra Lencastre. Carrilho recorda: "Foi um risco. Qualquer outro intelectual recusaria, mas o Eduardo era assim. Gostava de desafios." A crónica sobre lingerie que escreveu para o primeiro número da edição portuguesa da revista Elle (1988), que teimava em persegui-lo, dizia, foi um deles: "O tema foi combinado, vi umas revistas de moda e escrevi o artigo." A moda não era indiferente a este coleccionador de gravatas que usava barba desde 1972.
Num auto-retrato publicado no Diário de Lisboa em 1990 descreveu-se: "Esquece-se muito depressa. Comove--se com discreta facilidade. Tem um gosto e um modo infantil de se sentir feliz. Sente a mais soberana indiferença por quase tudo o que pensam ou escrevem a seu respeito."
"Tornamo-nos amigos de pessoas que não conhecemos, porque um dia descobrimos um livro delas."
EPC

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