Cantar os Reis na Serra de Montejunto

A população de Pereiro, no concelho do Cadaval, celebrou mais uma vez o Dia de Reis à sua maneira. As paredes das casas voltaram a ser marcadas pela saudação ao novo ano e por gordas e enigmáticas letras azuis, vermelhas e verdes. Os da terra dizem que é assim há sete séculos.

A pequena aldeia do Pereiro, no sopé da Serra de Montejunto voltou ontem a celebrar o Dia de Reis, repetindo uma tradição que poderá remontar ao século XIII. O Cantar dos Reis é uma festa que envolve toda a população e que tem início por volta das 23 horas da noite do dia 5 de Janeiro, prolongando-se por toda a madrugada. O dia 6, Dia de Reis, é por isso feriado na terra.Este ano, por causa do mau tempo, a festa não contou com a presença de um número muito grande de visitantes, mas as cerca de 300 pessoas que resistiram ao frio e à chuva, foram suficientes para marcar a data e manter viva a tradição.Bernardino Matias, Presidente da Associação Cultural e Recreativa do Pereiro, explicou ao PÚBLICO que "a festa tem vindo sempre a crescer nos últimos 15 anos", sobretudo desde que a comunicação social local e nacional começou a divulgá-la.O Cantar dos Reis ou "Rezes" é uma celebração com grandes tradições no concelho de Alenquer e também no concelho vizinho do Cadaval, especialmente nas localidades de Pereiro e Avenal. De acordo com alguns investigadores, a celebração da Epifania, do Presépio e dos Reis Magos só se iniciou na Península Ibérica com a chegada dos monges Franciscanos a Alenquer, no século XIII.A celebração do Cantar dos Reis tem origens medievais, com marcadas influências árabes e alguns elementos que poderão remeter para cultos pagãos da época romana. Segundo a tradição, a festa do dia seis de Janeiro pretendia ser um voto de felicidade para o novo ano, que, no calendário romano, se iniciava precisamente a 6 de Janeiro.A partir das onze da noite do dia 5 de Janeiro, um grupo de jovens percorre todas as casas da aldeia, pintando os números do ano, neste caso 2001 e as letras "BRM", que significam "Bons Reis Magos", acompanhadas da estrela de David. Depois da pintura - em letras e números de cerca de um palmo cada um - chega um outro grupo de pessoas que canta versos alusivos aos Reis Magos e aos proprietários das casas que vão pintando.De acordo com os habitantes mais antigos, esta tradição tem sofrido alterações ao longo do tempo. Com a implantação da República foi introduzida a letra ''M" de Magos nas siglas "BR" (Bons Reis) evitando, assim, conotações monárquicas. Com o 25 de Abril a festa transformou-se ainda mais e as mulheres passaram a integrar o grupo dos cantores e o cantar e pintar dos Reis deixou de ser privado e isolado para se tornar numa festa mais participada, onde todos os visitantes são bem vindos.Este ano, a associação de desenvolvimento local Leader Oeste, aproveitou o Dia de Reis, para lançar no Pereiro um pequeno livro sobre o "Pintar e Cantar os Reis", uma pequena obra que fala do percurso desta longa tradição. Em termos históricos, a festa era inicialmente realizada por "reiseiros ou sociedades", grupo formado espontaneamente por rapazes solteiros antes de irem à tropa, que "dirigidos por um homem mais velho, já casado, partiam para a festa pintando e cantando a mensagem dos Bons Reis Magos, com votos de felicidade para o novo ano".Assim, na noite de 5 de Janeiro, um grupo munido de lanternas, pincéis e tintas percorria as ruas da aldeia assinalando as casas com os símbolos tradicionais. Atrás seguia o grupo dos cantores que com o seu apontador cantava às portas acabadas de pintar.Hoje, a festa alargou-se a todos aqueles que nela queiram participar, e assim, na noite de Reis e em diversas aldeias dos concelhos de Alenquer e Cadaval a população sai às ruas. A cor e os desenhos enchem as paredes das casas, contando os acontecimentos que marcaram a vida daquelas famílias nesse ano.O vermelho e o azul são as cores normalmente utilizadas nesta festividade. Cada cor tem um significado próprio, o vermelho associa-se à vida, à alegria, o azul por sua vez reporta-nos à tristeza e à morte.Actualmente assiste-se à introducão de outras cores. No Pereiro, para além do vermelho, utiliza-se também o verde.Relativamente às tintas utilizadas, as terras diluídas em água e cola deram lugar às anilinas, tintas de água ou de óleo e até à tinta pulverizável, recentemente usada com recurso a "sprays".No passado, o grupo trazia consigo um garrafão de aguardente para oferecer "um copo" a todos aqueles que não podiam sair de suas casas. Nas residências onde alguém tivesse falecido não se cantava, apenas se pintavam as paredes. Esta prova de respeito por uma família enlutada ainda hoje permanece.Actualmente, após o grupo Cantar e Pintar os Reis numa casa, entra na sua adega onde o dono lhe reserva um pequeno banquete, farófias, bolo rei entre outros doces, água-pé e vinho. "É preciso não ter pressa", alerta o presidente da colectividade do Pereiro, uma vez que a localidade tem mais de 50 casas e em todas se come e bebe.Por volta da meia-noite o grupo pára no largo da aldeia, onde algumas mulheres cozinham a carne de cabra entre outros petiscos. Aí come-se, bebe-se e canta-se à desgarrada. Os homens lançam versos espontâneos e as mulheres recitam versos previamente elaborados.A festa termina, de madrugada, no alto da Serra, onde se pintam os Moinhos do Pereiro. Foi assim, mais um ano.

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