Moro numa nuvem

No fim deram-lhe os prémios todos. Porque Maria Judite de Carvalho era uma grande escritora portuguesa. Porque as pessoas precisavam de saber que ela existia. Porque os livros dela não vendiam. Crónicas, contos, poemas, romances, treze-livros-treze. Uma vida de sobra. No fim disseram-lhe que valera a pena. Ela ouviu, no fim. Foi há um ano. Os livros continuam à espera que tenha valido a pena.

Lá dessa nuvem onde ela dizia que morava "desde sempre" escreveu-nos: "Acordo de manhã e sinto-me gelada". Ao longo dos anos, desde o começo, os dias que Maria Judite de Carvalho foi largando dentro dos livros pareciam começar todos assim, a acordar para o frio, para o silêncio, para o nada - a noite sem fim, por dentro das pessoas. Nos treze livros que nos deixou antes de morrer, fez ontem um ano, os protagonistas são essas pessoas todas, sempre sozinhas cercadas de gente, desde "Tanta Gente, Mariana", a obra de estreia, em 1959. Não é fácil ler a desolação dos dias. Sobretudo, não é fácil reconhecermos, num livro, fragmentos da nossa própria desolação. Os leitores escaparam e Maria Judite de Carvalho não foi atrás deles. Afastou-se ainda mais, para dentro de si, para longe do brilho, "retirada e aflita" como resumiu Agustina Bessa-Luís, que lhe chamou "flor discreta" sem "ruído".Esse retiro, essa "nuvem" imaginária pertencia a outro tempo, não este, veloz, apressado, barulhento. Maria Judite explicou: "Era um tempo de estrelas à noite (agora fugiram todas para dentro dos telescópios), água fresca (não gelada), nesga de terra que às vezes era nossa. Aqui, agora, não possuímos nada. Tudo é alugado a alguém ou pago a prestações. Quando elas, as prestações, acabam, começam logo outras, porque o que comprámos está velho e bom para a sucata. É assim este tempo em que vivemos." "Este" tempo era o de Outubro de 1971, medido assim numa crónica para o Diário de Lisboa, uma das centenas de crónicas para jornais e revistas que ela escreveu principalmente nos anos 60 e 70. Mas o tempo presente, para Maria Judite, era sempre o tempo errado, ou o tempo onde ela erradamente estava.O volume que antologia as crónicas de Maria Judite de Carvalho chama-se justamente "Este tempo". Ela, de fora, vê: "... máquinas de mil botões a diagnosticar as doenças amanhã" como novos deuses terríveis, Lisboa como "uma capital remendada por quem não sabe" e cidades que "crescem demasiado depressa ou demasiado mal, como algumas crianças". Nesse tempo de "desexistência", "passado ao lado, de fora da faixa por onde os outros se movimentam", ela não sabe viver. Fica onde está: "Fecho os olhos até à infância e encontro um enorme lago - enorme e até imponente para mim nesse tempo - ali mesmo à entrada do parque. Existiu ou contaram-mo ou sonhei-o? Não sei, mas o que interessa, o que me interessa, é que era maravilhoso e tinha um barco." Depois abrem-se os olhos e não há barcos, nunca há barcos, nem lagos, nada que maravilhe. A infância de Maria Judite acabou cedo - Aos 7 anos morreu-lhe a mãe, aos 15, o pai e o único irmão.Quando, em Maio de 1996, o jornalista Rodrigues da Silva a visitou para uma conversa (provavelmente a última assim tão longamente registada) encontrou uma mulher de 74 anos que não ria, nem sorria: "Só se iluminou quando falou do Urbano". Urbano Tavares Rodrigues, escritor, seu marido desde os tempos da Faculdade de Letras de Lisboa, quando ela era uma estudante de Germânicas e ele um caloiro de Românicas. "Era um bom aluno e era bonito..." resumiu ela nessa tarde que Rodrigues da Silva narrou de forma inesquecível no "Jornal de Letras".A fotografia suspensa na memória do repórter, agora descrita ao PÚBLICO: "Uma coisa fantasmática, a preto e branco, mais sombra que luz, um pequeno ser perdido num grande espaço, uma natureza triste e prodigiosamente arguta ao mesmo tempo". Maria Judite de Carvalho na casa desmesurada da Tomás Ribeiro, em Lisboa - nove assoalhadas, um corredor de 18 metros, "em que a pessoa está tão sozinha que ouve o próprio átomo da matéria a mover-se". Aí viveu, a desprender-se dos dias, mais de 40 anos.Num dos últimos contos que escreveu (publicado no derradeiro livro, "Seta Despedida") há este diálogo: "- Não te apetecia às vezes mudar? - perguntou ao marido com ar natural e a voz de todos os dias._ Mudar o quê? - espantou-se ele sem exagero.- Sei lá. Mudar. De casa, por exemplo. Nasci aqui, estou farta. Mudar de cara. Às vezes olho para o espelho e sinto um cansaço... Tu não? Mudar de língua. De rua. De país. Mudar de vida. Arranjar papéis falsos, sei lá!Ele poisou a colher, limpou a boca devagar, olhou-a, e na sua testa havia várias interrogações.- Que diabo te deu? Sentes-te bem?- Não sei.- Não sabes o quê?- Se me sinto bem.- Dizes às vezes umas coisas...- Não te acontece olhar para ti, para mim, para as paredes, para as pessoas, na rua? Não sentes que houve engano? Não sentes, pelo menos, que pode ter havido engano?" Ele não sabe do que ela está a falar. E ela simplesmente pára de falar. Restam apenas duas pessoas à mesma mesa. Não há mais nada para dizer. Não há palavras. Foi dentro desse silêncio que Maria Judite de Carvalho escreveu, até morrer na sua nuvem. Tanta Gente, Mariana, 1959As Palavras Poupadas, 1961Paisagem Sem Barcos, 1963Os Armários Vazios, 1966O Seu Amor por Evel, 1967Flores ao Telefone, 1968Os Idólatras, 1969Tempo de Mercês, 1973A Janela Fingida, 1975O Homem no Arame, 1979Além do Quadro, 1983Este Tempo, 1991Seta Despedida, 1991PóstumosA Flor que Havia na Água Parada, 1998Havemos de Rir, 1998

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