Pré-históricos invadem vinha

Quem eram estas gentes contemporâneas dos faraós do Egipto que habitaram o povoado dos Perdigões, junto a Reguengos de Monsaraz? Por que razão se terão ido embora? Fascinados, os arqueólogos começaram a tentar desvendar o modo de vida destes pré-históricos alentejanos.

Há cerca de três anos a empresa vitivinícola proprietária da Herdade do Esporão, a Finagra, comprou 200 hectares de terreno ao pé de Reguengos para plantar vinha. Por ali haviam já sido identificados, numa área restrita, um conjunto de menires, tendo mais tarde, na década de 80, sido detectado um povoado pré-histórico de contornos mal definidos.O que ninguém percebeu até 1996 foi que esse povoado soterrado pelo tempo ocupava nada mais nada menos do que 16 hectares - 12 situados na recém-adquirida propriedade da Finagra, a Herdade dos Perdigões, e os restantes nos terrenos circundantes, pertencentes a particulares. "Trata-se do maior povoado do período Calcolítico conhecido em Portugal e um dos maiores da Península Ibérica. Mesmo a nível europeu, não existem muitos destas dimensões", explica um dos responsáveis pelo projecto de investigação que está em fase de arranque, Miguel Lago. O Calcolítico é uma fase da pré-história que corresponde às primeiras manifestações da metalurgia, surgidas a par da continuação do trabalho da pedra. Na Europa Ocidental coincide com o início da sedentarização e com o momento em que o homem começa a "domesticar" a terra.Depois de ter arrancado um olival que se estendia por quase toda a herdade, a empresa vitivinícola fez uma lavra, para a seguir poder plantar vinha. Além de uma quantidade fora do normal de vestígios arqueológicos, a movimentação das terras deixou à vista umas misteriosas manchas de terra escura. Fotografias aéreas revelaram aquilo de que já se suspeitava: as manchas definiam os contornos de delimitação do povoado - fossos, eventualmente muros -, assinalando locais de acumulação de sedimentos.Foi por esta altura que a Finagra começou a dizer adeus às videiras naquele local. Obrigada, por lei, a pagar, ainda por cima, uma escavação arqueológica de emergência para determinar o potencial valor patrimonial do sítio, acabou por ver 12 dos seus 200 hectares transformados em reserva arqueológica.Quem passa nos Perdigões nada vê para além dos menires - que poderão ser anteriores ao povoado, mas que os seus habitantes também usaram como espaço sagrado. E não se sabe se o panorama alguma vez vai ser diferente do actual para o grande público. "Dada a grande extensão do povoado, torná-lo visitável exigiria um investimento brutal", diz Miguel Lago. A empresa arqueológica dirigida por este arqueólogo, à qual foi entregue a escavação de emergência, chegou a alvitrar possibilidade de criação de um núcleo museológico. Até agora nada foi decidido.Mas afinal quem eram estas gentes contemporâneas dos faraós do Egipto e o que as levou a fixarem-se junto a Reguengos? Os arqueólogos, antropólogos, arqueozoólogos e arqueogeólogos que integram a equipa de investigadores a trabalhar nos Perdigões não sabem bem. Ignoram, inclusivamente, quando é que eles chegaram e por que razão terão decidido partir. O que se sabe é tão-somente que devem estado por aqui entre o ano 3000 e o ano 2000 antes de Cristo.Quem quer que tenha escolhido o local para ali fundar uma povoação fez uma escolha acertada a vários níveis. A rocha daqui, por exemplo, é uma rocha branda, mais fácil de escavar do que a granítica existente no resto da região, permitindo a construção de estruturas na pedra. Por outro lado, esta é uma zona muito irrigada por linhas de água, portanto com grandes potencialidades agrícolas. Será que os homens e mulheres desta sociedade agro-pastoril já nesta altura canalizavam a água através de condutas de pedra? É provável. Por fim, a localização discreta do povoado, virado para nascente, para Monsaraz, também não deixa de espantar os arqueólogos. Em vez de ter sido construído no topo de um monte, como era habitual por razões de defesa, foi espalhado num vale pouco profundo - passando completamente despercebido a quem se aproximasse vindo de oeste.A circundar a aldeia existe um fosso com uma largura de nove metros. "É provável que associado a ele também houvesse muralhas", faz notar o arqueólogo.São várias as pistas que apontam para este ter sido um povoado muito complexo ao nível da organização. Um artigo publicado na "Revista Portuguesa de Arqueologia" refere que a concepção arquitectónica do sítio "incorpora noções de monumentalidade e geometria". Mas ainda se desconhecem factos tão básicos como o tipo de habitações utilizadas. Seriam abrigos na rocha ou cabanas? A dúvida persistirá enquanto não forem realizadas mais escavações. O que se sabe já é que os habitantes dos Perdigões faziam uma distinção muito clara entre os espaços domésticos, os sagrados e o exterior da sua aldeia. "O que implicou certamente repercussões no ambiente social no vale e para além dele", defende o referido artigo.Quer a grande quantidade quer o tipo de vestígios ligados à actividade metalúrgica parece indicar que as operações de fusão também seriam aqui realizadas. Foram recolhidos cadinhos e moldes e ainda lâminas, punhais, entre outros artefactos.Para além de muitos objectos em cerâmica - alguns deles, segundo Miguel Lago, com formas únicas -, foram encontradas pontas de seta e alguns ícones muito peculiares. É o caso de um minúsculo coelho em osso. Mede 3,5 centímetros e é impressionante pela perfeição com que está esculpido, bem distante dos objectos toscos deste tipo que habitualmente se associam a este período. Poderia ser um símbolo de fertilidade.Terminada a escavação de emergência, os investigadores preparam agora um projecto de investigação subsidiado pelo Instituto Português de Arqueologia, pela Fundação Gulbenkian, pela Câmara de Reguengos, pela Finagra e pela própria empresa de arqueologia de Miguel Lago. O objectivo é estudar a necrópole dos Perdigões, que, ao contrário do costume, foi erigida dentro do próprio povoado, a este do seu centro.Durante a escavação de emergência foi desenterrado um "tholo", espécie de versão mais evoluída das sepulturas colectivas que são as antas. Lá dentro havia um número incontável de ossadas.A arqueóloga Cidália Duarte, que também faz parte deste projecto, diz que aparentemente foram encontradas mais mulheres que homens. Mas é difícil determinar as idades com que morreram os adultos. Além de ossos humanos, foram ali depostos alguns esqueletos que se supõe serem de felinos e de raposas. Estes "tholos" - deverá haver sete ou oito no cemitério pré-histórico - foram feitos com lajes de xisto. Não se detectam indícios de ocupação humana deste povoado nem em épocas anteriores nem posteriores. Ninguém percebe porquê. Alguns habitantes de uma localidade próxima ouviram falar numa grande batalha que terá ocorrido precisamente neste local. A musealização dos Perdigões é, neste momento, uma hipótese remota. Aos interessados na matéria resta esperar pela realização de uma exposição sobre a necrópole e pela publicação de trabalhos nas revistas da especialidade.

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