[Sinal de espera...]
— Estou?
— Miguel?
— Sim.
— Olá.
O
meu
nome
é
Joana
Gonçalves,
eu sou
jornalista
do
jornal
PÚBLICO.
— Olá,
boa
tarde.
— Boa
tarde.
Estou a
ligar-lhe
porque
li
o testemunho
que nos
enviou
em resposta
ao artigo
“Como
está
a enfrentar
a subida
dos
preços?”.
Há
quanto
tempo
é que
começou
o segundo
trabalho
como
estafeta
na
Uber Eats?
— Deixe-me
só…
Dê-me
só
um
minutinho
que
estou
a chegar
agora
aqui
a
casa.
Só
um
bocadinho,
por
favor.
Portanto,
terá
sido
em meados
de
Agosto,
mas
mais
efectivamente,
no início
de
Setembro.
Eu
sou
assistente
técnico,
portanto
tenho
um
ordenado
base
de
757 euros,
que
dá
pouco
mais
de
700 euros
líquidos
por
mês.
A
minha
esposa
faz
exactamente
o
mesmo
que
eu,
portanto,
e ganha
o
mesmo
que
eu.
Eu,
normalmente,
acordo
por
volta
das
7h00
da
manhã.
Levo o
meu
miúdo
à
escola
e
entro
às
8h30
e
saio
às
16h30.
Depois,
a
partir
das
19h30
até
às
21h30,
mais
ou
menos,
vou
para
a
Uber [Eats].
É
cansativo,
acaba
por
ser
cansativo,
não
é?
Acaba
por
ser
um
bocadinho
cansativo,
mas
infelizmente
foi
a
opção
que
eu
tive.
Cerca de 238 mil trabalhadores, em Portugal, acumulam dois ou mais empregos
Miguel tornou-se estafeta para cumprir o sonho do filho
Para garantir as aulas de piano do filho, Miguel faz entregas à noite. São 84 euros a mais no orçamento de quem já tem de fazer contas à vida.
Minutos antes de anoitecer, Miguel Ginja espreita pela janela da sala as nuvens que cobrem a ponte da Arrábida. A dança de um bando de gaivotas sobre o telhado da moradia em frente denuncia o início de uma noite fria e chuvosa. Hoje veste dois casacos, antes de se aventurar pelas ruelas do Porto para recolhas e entregas que lhe abrem o apetite e atrasam o jantar.
A ideia foi-lhe proposta pelo irmão no início de 2020. Miguel estava ainda desempregado. “Fiquei um bocadinho reticente no início, confesso”, conta. Agora, já com um emprego, como assistente técnico no sector público, decidiu avançar e, desde Agosto, acumula dois trabalhos. “A necessidade aguça o engenho e eu fiz-me à estrada.”
O primeiro mês foi um teste. Satisfeito com o rendimento extra, em Setembro começou “mesmo a sério”. De segunda a sexta entrega refeições, entre as 19h30 e as 21h30. Ao fim-de-semana acrescenta ao horário nocturno as entregas de almoço.
“Apesar de eu ter um trabalho, pelo qual estou agradecido, o ordenado não é alto e tinha de arranjar alguma coisa mais para continuar a assegurar este gosto que o Tomás tem pelo piano”. Miguel é um dos 238 mil trabalhadores que, em Portugal, acumulam dois ou mais empregos, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) relativos ao terceiro trimestre de 2022. Há um ano eram menos 30 mil, agora representam quase 5% do total da população empregada.
Pela paixão do filho, Miguel retomou a sua
Sentado junto ao sofá da sala, num pequeno banco, o filho de Miguel e Yolanda responde com um olhar de esguelha ao ouvir o seu nome na conversa guiada pelo pai. Tomás, nove anos, toca viola de arco no Conservatório de Música do Porto (CMP).
É dedicado e “tem uma óptima professora”. Mas se pudesse escolher qualquer instrumento para o acompanhar em todas as composições seria o piano. Foi, aliás, essa a primeira escolha no momento do ingresso na escola de ensino especializado de música, “só que, devido à falta de vagas, não conseguiu”.
“O bichinho ficou” e foi por ele que Miguel decidiu fazer o esforço de acumular um segundo emprego. Desde Agosto passado, às 40 horas semanais de trabalho acrescem 18 horas de entregas de refeições e compras de supermercado. Nesta aventura para assegurar o sonho do filho retomou uma paixão antiga: andar de mota.
“Aliar o valor que recebo da Uber Eats ao gosto que tenho por andar de mota dá-me vontade de continuar”, explica. “Vou tentar prolongar este segundo trabalho, porque faço-o com gosto e sinto-me valorizado pelas pessoas a quem entrego as refeições.”
No sábado em que grava esta conversa recebeu três gratificações, apenas no horário de almoço. Espera-lhe ainda um segundo turno e sabe que “ao fim-de-semanas as entregas rendem sempre mais”. Uma motivação para largar o conforto do sofá e fazer-se à estrada, com uma temperatura abaixo dos dez graus.
Em 2022, um assistente técnico da função pública recebia 757 euros brutos
Desde Janeiro de 2023, Miguel passou a receber 861 euros
Pelas estimativas de Miguel, as entregas garantem-lhe um complemento semanal que varia entre os 120 e os 150 euros líquidos, já descontados os gastos em combustível. Este valor é suficiente para pagar os 84 euros de mensalidade das aulas de piano do filho e equilibrar o orçamento familiar, que sofreu “um aumento extraordinário nos últimos meses”.
A prioridade são as aulas de piano, mas Miguel não esconde que parte do rendimento extra está já a ser guardado para “precaver os tempos futuros”. Os 705 euros que recebe de ordenado, semelhante ao da mãe de Tomás, deixaram de ser suficientes para suportar as contas da família. “Sinto-me muito mais confortável agora que tenho um segundo rendimento. É óptimo, é uma segurança”, garante.
Miguel paga 84 euros de mensalidade por uma aula de piano por semana
Com as entregas como estafeta Miguel recebe, em média, 450 euros extra por mês
Entre a porta de casa e a mota, estacionada no pátio do prédio, Miguel ajeita as alças da mochila que em breve vai carregar mais um jantar. Já está online e os pedidos começam a cair.
Antes de acelerar em direcção à primeira recolha da noite, sorri para o telemóvel que o guia pela cidade. “Uns ganham e outros gastam.” E enquanto houver quem tenha para gastar, Miguel vai continuar.