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— Alô?

— Eu chamo-me Joana Bourgard e sou jornalista do jornal PÚBLICO.

— Ah, sei, sei. Enviou-me um e-mail.

— Sim, estou a ligar-lhe por causa do testemunho que nos enviou para a página especial “Contas à vida”.

— Sim, senhora.

— Já conseguiu arrendar o quarto extra que tem em casa?

— Não, não. Não, porque precisa de reformas e no momento eu não tenho como fazer algumas melhorias para colocar aquilo em ordem para alugar.

— A sua casa é arrendada, ou...

— É alugada, sim. Alugada e tive recentemente um reajuste do valor do aluguer. E não tive o correspondente reajuste no salário. Por isso é que está mesmo, mesmo muito difícil.

— E referiu que neste momento paga algumas contas a crédito, não é?

— Exactamente, eventualmente tenho que ir ao supermercado e quando chega esta última, os últimos dez dias do mês, algumas vezes tenho que recorrer, realmente, ao cartão de crédito. No momento está em 1.500€.

O valor mediano das rendas em Portugal atingiu um novo máximo no final de 2022

Aos 60 anos, Clara vai dividir casa para “não cair no abismo”

Um aumento de 150 euros na renda desequilibrou o orçamento de Clara, que vive há mais de dez anos no mesmo apartamento. No final de 2022, o valor mediano dos novos contratos de arrendamento foi o mais elevado de sempre.

Na sala, onde amontoou toda a mobília do quarto que vai arrendar, Clara, nome fictício, recorda uma canção. “Conhece o Chico César?”, questiona com a voz embargada, antes de recitar de cor cinco versos. A música - De uns tempos para cá - foi lançada em 2006, mas nunca como agora a repetiu tantas vezes. “É um lembrete de que tudo é transitório e por mais que o dinheiro seja importante e me faça falta, tenho muitas outras coisas boas na minha vida”, justifica.

Chegou a Portugal em 2000, depois de uma primeira visita à Expo-98. “Fiquei encantada”, conta, numa voz baixa. “Não saí do Brasil por estar numa situação de desespero ou infeliz, eu vivia com a minha mãe e tinha um emprego razoável. Eu vim porque queria saber como era viver longe de casa.”

Quando chegou, com a filha de dez anos, instalou-se no Porto, onde morava o irmão. Nos primeiros tempos foi com ele que dividiram casa. “Eu cheguei em Maio de 2000, depois de um processo de divórcio. Consegui logo um emprego, mas muito precário, e em Novembro assinei o meu primeiro contrato, com a empresa onde até hoje continuo.”

O irmão trabalhava no sector cultural e “estava satisfeito”, mas as coisas começaram a piorar em 2010 e, dois anos mais tarde, regressou ao Brasil. A filha saiu, entretanto, do país. Como a mãe, também ela quis conhecer a vida longe de casa. Agora, vive em Espanha. Clara ficou. “Gosto muito da cidade por ser assim pequena. Acho-a muito tranquila”.

O Porto continua a “encantar” e apesar de uma infância passada em casas sempre “aos magotes”, como garante ser a experiência da maioria dos “nordestinos”, não foi a solidão que motivou a procura de um novo inquilino.

A renda do apartamento onde vive desde o regresso do irmão ao Brasil, há mais de dez anos, subiu, pela primeira vez, em Janeiro e vai voltar a aumentar em Julho. “Eu sempre paguei 300 euros e nunca falhei um mês, mas os preços nesta zona foram aumentando e em Dezembro o senhorio contactou-me com uma proposta de aumento, ajustado ao mercado”, explica.

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Clara não escondeu o desconforto e informou o proprietário de que não conseguiria pagar o valor que lhe foi inicialmente proposto. Acabaram por chegar a um “acordo”: um aumento de 150 euros, faseado. Nos primeiros seis meses do ano a renda fixa-se nos 400 euros e a partir do segundo semestre terá de pagar 450 euros, se quiser manter a casa.

“Fazendo as contas na ponta do lápis”, aos 60 anos e com um ordenado próximo dos 850 euros, sozinha não consegue suportar o aumento desta despesa. Pagos todos os custos fixos, sobram-lhe menos de 100 euros por mês e teme que qualquer imprevisto possa fazer ruir um orçamento, “equilibrado à beira do abismo”.

O futuro caiu-lhe “como uma pedra na cabeça”

Sentada num sofá preto colocado, provisoriamente, no quarto onde dorme, Clara desdobra o último recibo de vencimento. No verso da página lêem-se anotações a lápis, “renda: 400 euros; luz: 66 euros; água: 22 euros; internet: 69 euros”. No fim da lista, “dois cartões de crédito: 300 euros”.

Assim que chega à última linha, pousa o papel sobre o colo. Justifica apenas esta despesa e fá-lo porque, assegura, não se sente confortável em recorrer a crédito. “Eu pago todas as minhas despesas e uso estes cartões para comer, para a alimentação.” Começou a usá-los com este fim depois da pandemia, numa altura em que teve de recorrer às poupanças e viu a conta esvaziar. Hoje a dívida chega aos 1.500 euros.

“De momento, não tenho como pagar e o valor que abato mensalmente acaba por não desaparecer porque continuo a ter de usar o cartão para me alimentar”. Neste desafio de equilíbrio de contas, o aumento da renda aproximou-a do ponto de ruptura.

Em 2022, foram celebrados mais de 90 mil novos contratos de arrendamento habitacional

O maior número de que há registo

“Quando você tem 20 ou 30 anos, falta tanto para a reforma que você pensa: ‘quando eu chegar lá já vou ter conseguido tanta coisa’. Mas se não se prepara todos os dias para aquele futuro que não consegue descortinar ainda, o futuro cai como uma pedra na sua cabeça”, desabafa.

Clara prepara-se para recuperar da queda e o sub-aluguer de um quarto foi a solução que encontrou. Acredita que “não será difícil” encontrar um novo inquilino e o senhorio não se opôs, mas para isso terá de fazer obras no quarto, que ficarão a seu cargo. “Vou aguardar pelo reembolso do IRS e pelo subsídio de férias para avançar”, esclarece.

Para quem vive “no fio da navalha”, como descreve, “é impossível” não sentir empatia pelos estudantes que procuram quarto para estudar e não encontram alternativas que consigam suportar. Foi a pensar neles que Clara decidiu pedir um valor suficiente para se “manter à tona”. “Não quero ter lucro, só quero conseguir fazer frente às minhas despesas. Quanto baste para sobreviver. Já nem peço para viver, apenas sobreviver”.

O valor mediano das rendas atingiu, no final de 2022 o preço mais elevado de sempre

Um aumento de 10,6% em relação ao ano anterior

Nesta batalha tem encontrado alguns aliados. Está sempre atenta “ao que a cidade tem para dar” e este ano conseguiu um talhão do projeto "Horta à Porta”, para produção agrícola. Paga 60 euros anuais para utilizar o espaço comunitário. “É terapêutico e daqui a uns meses vou começar a recolher os frutos, que podem ajudar-me também a poupar em alimentação”.

Mais de duas décadas depois de ter escolhido Portugal para viver, Clara recorda desafios, numa altura em que mais um lhe bateu à porta, mas não se arrepende da viagem. “Ser emigrante é muito difícil no começo, mas o português tem uma coisa: quando é amigo, é amigo até debaixo de água. E eu sei que se algum dia as coisas afundarem, tenho amigas que me vão dar a mão”.