Habitação

O problema da habitação é também um problema de saúde?

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No concelho do Porto, há 26 unidades funcionais de saúde. Cada ponto vermelho representa a sua localização

Se ajustarmos o tamanho de cada ponto à taxa de casos identificados de AVC por unidade funcional de saúde (2019), percebemos que, dentro de um mesmo concelho, há grandes diferenças

Nos utentes da Unidade de Saúde da Foz do Douro, esta taxa é de 1,1%

Já na Unidade de Saúde Azevedo, em Campanhã, é de 2,4% (mais 1,3 pontos percentuais)

A taxa média nas unidades funcionais de saúde da Região Norte ronda os 1,4%

Fomos procurar perceber o porquê desta diferença. E identificamos uma forte correlação entre o risco de AVC e as condições de vida e habitabilidade

O mapa mostra, em tons quentes, as áreas com maior concentração de baixos níveis de escolaridade e rendimento, elevado risco de pobreza e más condições de habitabilidade (INE)

São também as áreas com maior prevalência das chamadas “ilhas” — algumas caracterizadas por sobrelotação e ausência de infraestruturas básicas — onde moram cerca de 10 mil pessoas

Segundo a OMS, as condições de vida representam cerca de 30% das desigualdades de saúde, sendo as questões de habitabilidade um dos factores com maior peso

Como tornar a política de habitação uma política de promoção de saúde?

Há um ano que a palavra “pandemia” entrou no léxico diário do cidadão comum. A saúde pública ganhou uma maior relevância, ficar em casa foi (e ainda é) a melhor forma de nos protegermos. A preocupação com as pessoas que em casa não têm condições para viver ou para se proteger aumentou – ainda que, às vezes, por razões mais egoístas do que altruístas. Os problemas trazidos pelas carências habitacionais agravaram visivelmente os receios com a saúde pública. Mas a pandemia, é, afinal, uma sindemia, ainda que a opinião pública não tenha despertado para ela como despertou, à força, para a covid-19.

O vírus espalhou-se e cruzou-se com outras doenças e problemas de saúde, como as doenças crónicas não transmissíveis (diabetes, obesidade, hipertensão e outras), mas também com as desigualdades económicas e sociais. “[São] factores que interagem entre si aos níveis biológico, psicológico e social, aumentando a interacção negativa que leva ao agravamento das várias situações em presença, constituindo-se o que se designa por ‘sindemia’”, explica Isabel Loureiro, professora catedrática de Saúde Pública, que integra a equipa do Programa Bairros Saudáveis, uma iniciativa governamental que surgiu em resposta à pandemia, ou melhor, à sindemia de covid-19.

Foi graças a esse programa que conseguimos cruzar informações entre os dados mais recentes do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e os dados das unidades funcionais das administrações regionais de Saúde do Norte e de Lisboa e Vale do Tejo. Em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública e o Centro de Estudos em Arquitectura e Urbanismo da Universidade do Porto foi possível tratar estatisticamente os dados e encontrar correlações alarmantes entre condições de habitabilidade e rendimento e condições de saúde e de doença. Os mapas juntam informações que estão presentes na vida das pessoas, mas não necessariamente nos discos rígidos dos organismos públicos que tratam delas.

Os níveis de análise são múltiplos. Não devemos falar de causa-efeito, do género “quanto mais pobre mais doente”, mas também não assumimos os resultados como coincidências. A correlação mais preocupante foi encontrada entre taxas de analfabetismo, risco de pobreza e baixa escolaridade: quanto mais frágil for o tecido socioeconómico, mais casos há de doenças como a diabetes, a insuficiência cardíaca, a doença obstrutiva coronária ou riscos de acidente vascular cerebral (AVC). E o contrário também é certo. As zonas com maiores rendimentos (e rendas) são onde se verifica menor incidência destas patologias.

Ao PÚBLICO a directora da Escola Nacional de Saúde Pública, Carla Nunes, avisava em Outubro que a pandemia estava “a bater mais nas pessoas mais frágeis”. E é pela coesão social e pelo combate à pobreza que todas as políticas têm de começar — a política de habitação também.

O Bairros Saudáveis é um pequeno programa com uma dotação orçamental de dez milhões de euros, que terá o mérito de demonstrar que as políticas públicas podem estimular a participação comunitária e confiar na capacidade de as populações interpretarem as suas necessidades e encontrarem soluções para as colmatar, tendo algum apoio financeiro para o efeito. Recebeu 774 candidaturas, e os territórios de baixa densidade, onde vive 20% da população portuguesa, foram responsáveis por 30% das candidaturas.

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) propõe um investimento de 250 milhões de euros para a “Eliminação das Bolsas de Pobreza em Áreas Metropolitanas” e financiar operações integradas em comunidades desfavorecidas nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. O PRR está a ignorar que as fragilidades do tecido social vão muito para além destas áreas metropolitanas. Se se consultar o mapa com a localização das candidaturas ao Programa Bairros Saudáveis, é possível verificar que os territórios particularmente vulneráveis se situam em todo o Portugal continental.

“O programa não conseguirá resolver as desigualdades sociais e a pobreza, porque isso depende de macropolíticas e de políticas transformativas ao nível social. No entanto, constitui um estímulo para que as populações mais vulneráveis, frente às suas realidades, sejam capazes de encontrar, em conjunto, formas de as melhorar, alavancando recursos e fortalecendo os laços de solidariedade e a coesão social”, diz Isabel Loureiro. É, pois, um exemplo, limitado e experimental, mas que já revelou capacidade de mobilizar a energia das pessoas e comunidades a quem se dirige. Através de iniciativas como esta, as políticas públicas deixam de encarar os destinatários como “públicos-alvo”, mas sim como sujeitos e parceiros das respostas a construir. Isto implica uma enorme mudança de paradigma na relação entre os cidadãos e a administração central, regional e local.

Olhar para tudo, mas de perto

Se, para Isabel Loureiro, saúde não é apenas falta de doença, a alimentação condigna não é apenas falta de fome. E, como acontece com as dificuldades de acesso à habitação, as carências não se limitam, necessariamente, às situações de pobreza e precariedade extrema – mas têm aí um impacto especialmente severo. Sara Rocha, membro da Realimentar – Rede Portuguesa pela Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, destaca que “a pobreza alimentar é uma dimensão específica da pobreza”. “É a dificuldade de adquirir e consumir alimentos em quantidade suficiente e de qualidade adequada. Factores como o aumento do custo de vida e as despesas com habitação, electricidade, a par com salários baixos e precariedade laboral, têm um impacto muito significativo na capacidade de aceder a uma alimentação adequada”, enumera.

Sara Rocha sublinha a dimensão sistémica do problema, frisando que as condições de vida de todos, especialmente dos grupos vulneráveis, são resultado de uma construção social mais alargada. Questionada sobre os problemas mais prementes, refere três. Primeiro, a falta de dados que impossibilita um debate informado e substantivo em torno das carências, percebendo quem fica de fora. Segundo, a dificuldade de agir dentro de um quadro estável capaz de sobreviver aos ciclos políticos e de guiar a acção a nível local — “É fundamental haver uma lei de bases da Alimentação”, alerta. Terceiro, a dificuldade de construir um espaço em que quem está no terreno, que conhece bem as limitações das famílias, possa expô-las e participar na melhoria da situação.

Estas preocupações não andam muito longe das de Helena Amaro, advogada, actualmente a fazer um doutoramento na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto nas áreas de Forma Urbana, Padrões de Mobilidade e Mobilidade Social. A investigadora, que também alerta para a necessidade de uma mudança de paradigma, não poupa críticas ao “maior investimento público em habitação” inscrito no PRR de que falámos no terceiro trabalho da série — 1251 milhões de euros em subvenções para financiar a solução para 26 mil famílias em carência habitacional e 186 milhões de euros para criar a Bolsa Nacional de Alojamento urgente e temporário. “É partir de uma premissa errada — recuperar o ponto onde estávamos —, em vez de assumir uma ruptura e mudar o que estava mal”, afirma.

Helena Amaro tem desenvolvido muitos estudos em torno da relação entre mobilidade e rendimento. “Primeiro faz-se um conjunto de casas onde o terreno é mais barato, depois é preciso arranjar um meio de transporte para que as pessoas possam ir trabalhar. Os layers de decisão estão todos ao contrário”, contesta. A investigadora argumenta que, uma vez que a habitação e as políticas de mobilidade são duas das principais dimensões em disrupção na paisagem,

deviam estar articuladas com uma política pública de paisagem, a partir da qual se definiam todos os planos, convocando, como também reclama Sara Rocha, quem habitualmente não participa nestes debates. Neste caso, geógrafos, sociólogos e paisagistas.

Segundo Helena Amaro, a não resolução destes problemas atinge todos e não apenas quem com eles sofre directamente: “A factura do que não investimos em habitação ou mobilidade acabará por aparecer em outras rubricas orçamentais, nomeadamente nas da saúde pública.” Esta afirmação é partilhada uma vez mais por Sara Rocha, que destaca que, já antes da crise sanitária decorrente da pandemia de covid-19, o Serviço Nacional de Saúde gastava grande parte do seu orçamento a tratar doenças como a obesidade, hipertensão, vários tipos de cancro e doenças crónicas, cardiopatias e diabetes, associadas a um padrão alimentar que resulta de um sistema globalizado, insustentável e prejudicial. Esta situação é inevitável?

Alguns exemplos ilustram bem tanto a paisagem descrita, como a possibilidade real de se iniciar uma mudança de paradigma. É o caso das chamadas “ilhas” do Porto, estruturas habitacionais localizadas no interior dos quarteirões e compostas por casas diminutas, de aproximadamente 20m2 e precárias condições de habitabilidade. Estas casas, originárias da Revolução Industrial, subsistem ainda em grande número — 957 “ilhas” dão actualmente alojamento a cerca de 10.370 pessoas. Falamos de uma população envelhecida, com poucos rendimentos e baixas qualificações literárias, para quem as “ilhas”, embora precárias, permitem viver no centro da cidade. Mas qual o preço a pagar pela localização?

Um estudo realizado em 2019 a partir de uma parceria entre a Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto e o Plano Local de Saúde do Agrupamento de Centros de Saúde do Porto Oriental dá-nos três dados relevantes. Entre os inquiridos, 27% estavam expostos a amianto, 89% não tinham isolamento térmico e 46% não tinham sanita com autoclismo. Em comparação com os dados da Região Norte, estes moradores apresentavam um risco oito vezes superior de desenvolver um AVC e 1,9 vezes de sofrer de problemas respiratórios. A relação entre as condições de vida e a saúde era atribuível à habitação em até 88% dos casos de AVC e 48% dos problemas respiratórios identificados. A totalidade destas situações seria evitada, se a reabilitação e qualificação das casas fosse garantida.

Ilha de São VictorAdriano Miranda
Ilha de São VictorAdriano Miranda
Ilha de São VictorAdriano Miranda
Ilha de São VictorAdriano Miranda
Ilha de São VictorAdriano Miranda
Ilha de São VictorAdriano Miranda
Ilha de FrancosFernando Veludo
Ilha das TopadasPaulo Pimenta
Ilha das TopadasPaulo Pimenta
Ilha das TopadasPaulo Pimenta
Ilha das TopadasPaulo Pimenta
Ilha das TopadasPaulo Pimenta
Ilha das AntasAdriano Miranda
Ilha BelavistaAdriano Miranda
Ilha BelavistaAdriano Miranda
Ilha BelavistaAdriano Miranda
Ilha BelavistaAdriano Miranda
Ilha Beco do PaçoPaulo Pimenta
Ilha Beco do PaçoPaulo Pimenta
Ilha Beco do PaçoPaulo Pimenta
Ilha Beco do PaçoPaulo Pimenta
CampanhãPaulo Pimenta
CampanhãPaulo Pimenta
CampanhãPaulo Pimenta
CampanhãPaulo Pimenta

Para perceber as implicações desta intervenção na habitação, recorremos a um segundo estudo encomendado em 2017 pela Câmara Municipal do Porto. Teoricamente, a estratégia para qualificar as casas é simples: aumentar as suas áreas, garantir iluminação e ventilação natural em todos os compartimentos, reduzir as barreiras arquitectónicas e diminuir o número de fracções.

Mas se os ganhos na redução das desigualdades e do risco de doença e de pobreza são claros, a dificuldade de concretização é notória. Do lado dos proprietários, é preciso assegurar o acesso ao financiamento para custear obras tão profundas. Do lado dos inquilinos, é preciso ter em mente que 37% deles tinham uma taxa de esforço com a habitação inferior a 30%. O previsível aumento das rendas decorrente da intervenção faria com que o número de agregados com uma taxa de esforço superior a 40% mais do que duplicasse, chegando pelo menos aos 63% do universo total. Como acautelar este cenário?

A harmonia das partes dissonantes

Os anos de 1877 e 1871 marcam dois acontecimentos relevantes para a nossa história. O primeiro refere-se ao momento em que a Câmara Municipal do Porto encomendou ao militar Augusto Telles Ferreira a sua célebre carta topográfica, que, publicada em 1892, registava a existência de uma grande quantidade de “ilhas” na cidade, dando conta da dimensão do fenómeno. O segundo diz respeito à primeira medida de habitação social que se conhece, que entrou em vigor há precisamente 150 anos, no dia 28 de Março de 1871. Na sequência de uma grave crise económica e social, muitos inquilinos do XI Arrondissement, um bairro integrante da Comuna de Paris, deixaram de ter condições de pagar a renda e arriscavam-se a ser despejados. Influenciado pelo pensamento de Pierre-Joseph Proudhon, e defendendo a decisão como uma questão de justiça social, o presidente da comuna impediu que as rendas de habitação continuassem a ser cobradas, aceitando pagar um terço das rendas aos proprietários mais carenciados.

Estes dois acontecimentos servem-nos para questionar até que ponto a resolução do problema habitacional passa por inventar coisas novas ou recorrer ao passado para um novo entendimento. A própria história das “ilhas”, que nos serve aqui de referência, é cíclica, marcada ora por tentativas de erradicação, ora de valorização. Nenhuma das duas alternativas se conseguiu impor no terreno, perpetuando, 150 anos depois da génese deste fenómeno, condições de vida precárias para cerca de 5% da população portuense. Contudo, alguma coisa parece estar a mudar.

Nas palavras de Pedro Baganha, vereador do Urbanismo da Câmara Municipal do Porto e também presidente da Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) portuense: “É mais racional intervir reabilitando estes tecidos do que mandar estas pessoas para a periferia da cidade. A estratégia agora tem de ser reabilitar estes núcleos. A Rua de S. Vítor [onde coexistem várias ‘ilhas’ contíguas] não se compreende se não tiver esta densidade, vivência e relações de vizinhança. O que tem de ser erradicado é a miséria. Não as ‘ilhas’”, insiste.

A mudança de paradigma, da total erradicação a uma visão integrada, remonta a 2014, tendo sido desenvolvidas várias experiências que as consagram como parte da solução e não como parte do problema. Por um lado, inicia a reabilitação das “ilhas” de propriedade municipal, de que é exemplo a feita na ilha da Belavista. Por outro, há um reconhecimento da importância destes núcleos na Estratégia Local de Habitação do Porto, viabilizando o acesso a financiamento para novas intervenções no âmbito do programa Primeiro Direito. Finalmente, em conjunto com o Centro de Estudos da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, desenvolvem-se estratégias que permitam passar das políticas às práticas e viabilizar a operacionalização (e a sustentabilidade) desta mudança de paradigma.

O maior entrave a ultrapassar, recorda Baganha, é que das actuais 957 “ilhas” apenas três são municipais. Todas as outras são privadas, têm situações diversas e pedem soluções distintas. “Há ‘ilhas’ que têm mesmo de ser erradicadas, outras podem ser alvo de adaptação, e a maior parte delas passará por uma questão de salubrização daquelas condições de vida”, afirma o vereador. E em muitos casos os proprietários têm condições de pobreza tão difíceis quanto os seus inquilinos. Mas, se a esmagadora maioria das “ilhas” são privadas, a câmara não pode intervir neste património e alguns proprietários são tão carenciados como os inquilinos, como assegurar simultaneamente o financiamento das intervenções e a permanência dos moradores?

Quando a SRU foi municipalizada, foram alterados os estatutos da empresa municipal para que ela incorporasse habitação acessível e o problema específico das “ilhas”. Na frente aberta em torno da intervenção nas “ilhas”, em conjunto com a Faculdade de Arquitectura, o município chegou a um conceito de intervenção que, defende o vereador, é, pela primeira vez, viável a todos os níveis. “Há uma componente expressiva de financiamento a fundo perdido; e a componente de empréstimo acabará por ser paga com as rendas a cobrar.” A estratégia, portanto, deverá agir tanto do lado da oferta, como do lado da procura.

Para garantir o acesso a financiamento, que viabiliza a melhoria das condições de habitabilidade e a qualificação do território, a câmara assumirá o papel de intermediário entre os proprietários que queiram reabilitar as suas “ilhas”, através do programa Primeiro Direito e o IHRU. O caminho parte do trabalho desenvolvido no terreno por algumas juntas de freguesia e entidades do terceiro sector, como o programa Habitar Porto, “dando assistência técnica (arquitectónica e burocrática), apontando caminho aos proprietários”. “Teremos uma equipa técnica que diz logo qual é a expectativa de uma obra que pode ser aprovada pela câmara municipal. E identificando os destinatários finais dessas casas — que é uma das imposições do programa Primeir