Saïdia em ritmo despacito entre o mar e a montanha

Encostado à Argélia há um canto de Marrocos que é uma espécie de “Portugal dos Pequenitos”. Em Saïdia, os resorts à beira-mar são a principal atracção. Mas há mais do que praia e nós fomos descobri-lo.

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Rui Gaudêncio

Tivéssemos ficado para a cerimónia de boas-vindas do Hotel Be Live Saïdia, que inclui chá servido a preceito, e teríamos logo conhecido o “Che de Saïdia”. É uma espécie de mestre de cerimónias, que na verdade é de Tânger: boina à Che (Guevara, bem entendido, “símbolo da liberdade, não de revolução”), barba branca abundante, óculos de sol que raramente tira, calças e túnicas largas, lenço sempre em volta do pescoço com as pontas a cair sobre o peito. É o anfitrião dos turistas portugueses nesta estância balnear do Nordeste de Marrocos – “foram os portugueses que fizeram Saïdia”, declara – e tem muito trabalho, ou isto não fosse uma espécie de “Portugal dos Pequenitos”, como dirá alguém.

Chegamos a Saïdia no primeiro charter com partida do Porto da temporada. Horas antes havia saído o de Lisboa. O destino é o aeroporto de Oujda e daí são 45 minutos até à beira-mar marroquina encostada à Argélia. Aliás, o arame farpado que tantas vezes vemos a rasar a estrada marca a fronteira entre os dois países. E a gasolina que se vende em bidões na beira da estrada vem do outro lado da fronteira, contrabandeada. A paisagem, monótona, começa a salpicar-se de árvores, atravessam-se povoações adormecidas, entramos em zonas agrícolas e estamos em Saïdia.

A primeira visão é de casas e prédios (poucos andares) a crescerem, a segunda de casas e prédios concluídos. Construção, muita, a que se vê nesta estância balnear criada quase de raiz: esta zona, a Oriental, era a mais esquecida e pobre do país até que o governo a decidiu tornar numa zona turística. Foram disponibilizados 36 milhões de euros e a pequena localidade de Saïdia passou de 1500 habitantes para quatro mil. Números que se inflacionam no Verão, claro (média de 75 mil), com veraneantes e funcionários de resorts e hotéis.

Por enquanto, nem sequer podemos ver Saïdia no seu auge: a temporada está a começar, os resorts estão a meio gás. E chegamos em pleno Ramadão, o que significa, por exemplo, que os famosos cabarets de Saïdia estão fechados. A própria marina, a curta distância dos resorts, que tem lojas de roupa, restaurantes, cafés, está fechada, como que abandonada. Excepto no que às actividades náuticas diz respeito.

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DR

E a elas iremos logo na primeira manhã. Porque as férias num resort podem enformar-se numa rotina, mas também podem proporcionar escapadelas. Há sempre várias excursões disponíveis (pagas à parte) e nós aproveitaremos duas – a Fez (fazemos batota e passamos uma noite) e ao Vale do Zegzel. Nos outros dias, ficamos mais perto e, claro, aproveitamos as comodidades do hotel: as duas piscinas, uma cheia de música e de actividades, a outra mais tranquila; a praia (apenas cruzamos uma rua quase sem movimento motorizado e já lá estamos – no mar avançamos metros com água morna pela cintura); os bares, os restaurantes; deixamos de lado o spa, o ginásio, o ténis e o teatro.

Na primeira manhã, então, a marina, onde nos espera um passeio de catamarã. A quase ausência de vento embala-nos bem despacito (não, não é por acaso que escolhemos o espanhol: a canção homónima será ubíqua nesta semana em Saïdia). Por isso, quando desembarcamos, voltamos ao mar, desta feita numa lancha rápida. A segunda manhã é dedicada ao golfe, no Saïdia Med Golf, 18 buracos. Hakim e Zidane são os professores de serviço no que é a iniciação do grupo no desporto. O almoço na Club House é um banquete e bom exemplo da gastronomia do país: começamos com as saladas ricas em variedade, passamos pelo tajine (de frango) e ainda temos carne com alperce e ameixa antes do sortido de sobremesas.

Na segunda tarde atrevemo-nos numa das actividades disponibilizadas pelo hotel (mas não incluída no regime tudo-incluído). Já tínhamos visto os dromedários na praia, pacatos, a posar para fotos. Agora, vamos num passeio. Durante quinze minutos, Mohammed conduz a minicaravana de quatro dromedários presos uns aos outros. São tão dóceis, excepto um ou outro capricho, que Mohamed vai falando ao telemóvel enquanto os conduz. Já está habituado, afinal nunca fez outra coisa na vida – fá-lo há 15 anos e tem 34. Trabalha entre Saïdia, quatro meses, “enquanto os hotéis estão abertos”, e Marraquexe, cidade natal. E enquanto passeamos nos altivos dromedários, há quem se aventure nas motos de água; pelo areal passam vendedores que não insistem e há quem ofereça pinturas de hena.

Ao sexto dia vemos uma Saïdia que não é só uma estância balnear com 14 quilómetros de praia. O nosso guia é Mohammed Melhaoui, consultor de turismo sustentável e professor universitário de ciências ambientais na Universidade de Oujda. É ele quem nos conduz à reserva natural, bem ao lado dos hotéis, onde o futuro Centro Ambiental já se ergue, em madeira, mas ainda espera o interior. Estamos numa área protegida com 600 espécies botânicas em três mil hectares, que inclui a foz do rio Moulouya, trilhos pedestres e equestres, torres de observação de aves – “Entre Novembro e Janeiro está cheio de flamingos rosa a caminho de ‘África’”, exemplifica Mohammed. “Agora há alguns, mas só se vêem bem cedo.” Como não é “bem” cedo, ficamo-nos pelos patos, alfaiates e gaivotas prateadas.

Se seguíssemos a costa iríamos até Tânger, mas o desvio é para o interior. Estamos a poucos quilómetros da montanha, 1500 metros de altitude, sublinha Mohammed, o nosso destino. Passamos Madagh, pequena cidade rural e grande centro sufista, e paramos em Berkane para ver os seus habitantes protegidos, as cegonhas. Os ninhos são presenças quase fantasmagóricas nos ramos das árvores de escassa folhagem e até no topo dos minaretes se instalam nesta que é capital marroquina dos citrinos – o laranja é a cor predominante, em táxis, autocarros, edifícios e o fruto merece escultura em metal.

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Rui Gaudêncio

Cidade para trás, Vale do Zegzel para diante. Se antes tínhamos laranjeiras, agora temos nespereiras. Aqui as montanhas têm cor laranja, as paredes são propícias a escaladas e os vales mesclam flora endógena e agricultura disposta em socalcos (além das nespereiras, espreitam oliveiras, amendoeiras, romãzeiras). Vão-se avistando minaretes e algumas casas e é neste entorno que chegamos aos montes Beni Snassen.

Neles desenha-se a Gruta do Camelo, a mais excêntrica das formas do topo das montanhas. Descoberta durante o Protectorado Francês (1912-1956), está finalmente preparada para receber visitantes: longa escadaria exterior e várias interiores, iluminação, música, controlo de temperatura e humidade. Enquanto não abre ao público, Hamdaoui, idade indeterminada, é o seu guardião. Os praticantes de espeleologia terão um circuito próprio, os outros circulam sem dificuldades pela gruta calcária descobrindo grandes galerias, vendo afloramentos de rosa de calcário brilhantes como cristais ou de “mosaicos” naturais.

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Rui Gaudêncio

Na pequena aldeia de Zegzel (120 habitantes), aos pés da gruta, almoçamos em casa de uma das famílias que abrem a porta a forasteiros. Num pátio, à sombra de nespereira já despida de frutos, as mesas esperam as saladas generosas e os tajines de cordeiro que acabam de cozinhar diante de nós – para sobremesa, fruta, incluindo as “últimas nêsperas da temporada”.

Pelos vistos ainda há algumas destas. Na estrada, Mohammed compra-as a dois rapazitos. “Pediram 10 dirhams, se tivessem pedido 20 daria. Ajudar os mais pobres é um dos pilares do Islão, sobretudo no Ramadão”, afirma. O destino agora é Tafoughalt, aldeia de montanha que surpreende pelo colorido do casario – à entrada, o anúncio da construção de um resort de montanha. Não temos muito tempo, o suficiente para percorrer o pequeno mercado, cheio de sacos de especiarias mais ou menos reconhecíveis, ervas aromáticas, cereais, laranjas selvagens muito perfumadas, bancas de frutos secos, artesanato e mel. Este é, aliás, um dos produtos-estrelas de Tagoughalt, que se enche ao fim-de-semana graças à fama dos restaurantes (e dos tajines).  O regresso a Saïdia faz-se pelo outro lado da montanha. Numa hora estaríamos novamente à beira-mar, não fora o desvio pelo centro equestre Club Yassmin, onde os passeios a cavalo se fazem no meio de pomares de laranjeiras.

A última noite em Saïdia tem cheirinho (mais) intenso a Marrocos – há reforço de especialidades locais no buffett e animação especial. Com as luzes das lanternas a desenhar os caminhos do hotel, onde os motivos árabes incluem torres à laia de minaretes, a atmosfera é feérica. Ouvimos pela primeira vez a reggada, o estilo de música típico de Berkane. É o Rif que se entranha definitivamente.

A Fugas viajou a convite do Turismo de Marrocos em colaboração com a Solférias, os hotéis Be Live e a Société de Developpement de Saïdia (SDS)

 

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Sérgio Azenha

 

Em Fez, “portugueses tesos”

A mais antiga das cidades imperiais possui a maior medina de Marrocos, onde se fundou a mais antiga universidade do mundo. Estes são alguns dos pergaminhos que fazem de Fez, Património da Humanidade, uma paragem incontornável no país. Os portugueses são velhos conhecidos.

Há sempre algo de mágico quando escutamos o muezzin chamar para a oração. Mas na medina de Fez quase passa despercebido perante as vozes que se multiplicam nas suas ruas, ruelas, becos apertados. O mais belo que escutámos foi ao pôr do sol, já na varanda do hotel, com a medina no horizonte.

Fez é conhecida precisamente pela medina, mas há cidade fora desta e é nesta duplicidade que fazemos a nossa incursão de menos de dois dias pela que é a mais antiga (fundada em 789) das quatro cidades imperiais marroquinas. O primeiro chamamento, não há como evitar, é mesmo a medina, neste caso 350 hectares de área divididos num dédalo de nove mil ruas (cerca de 30 quilómetros) e 120 mil habitantes permanentes distribuídos por 14 mil edifícios – 15 quilómetros de muralhas rodeiam-na. É uma zona totalmente autónoma, tem desde bancos a escolas, entre outros serviços e equipamentos públicos; é um museu ao ar livre, é um bazar imenso; é casa, é trabalho, é escola, é lazer.

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Sérgio Azenha

Não temos ilusões. Não vimos grande parte da medina, porém deu para lhe sentir o pulso. De cidade e de museu, sendo que ambos se confundem. A nossa primeira abordagem é mais académica, ou não tivéssemos como guia um arquitecto, que nos espera na porta Bab Boujloud, uma das principais, para nos mostrar o trabalho de reabilitação que está a ser feito. Os locais onde nos leva são icónicos deste labor: estão concluídos, embora nem todos já a funcionar. Uma das primeiras paragens é a madrassa Bouinania, construída no século XIV para receber estudantes de todo o mundo. É uma das cinco que foram recuperadas e em breve voltará a receber estudantes, como uma espécie de residência universitária. A ideia da restauração das madrassas é “mostrar a tolerância do Islão” e a Fez chegavam estudantes de todo o mundo. Outra das passagens é o Kissariat Al Kifah, o mais antigo mercado da medina que cheira a novo: foi recuperado e ainda tem poucas lojas abertas. “Quisemos recuperar este espaço histórico para manter o comércio e incentivar os jovens a não deixar a medina.” Um antigo fondouk (hospedaria) faz parte do itinerário. Já está preparado para receber actividades de artesanato feito por mulheres, numa homenagem-resgate ao passado do local. Nos séculos XIII e XIV era entreposto para a compra e venda de mulheres – agora, quer dar uma nova imagem das mulheres na sociedade marroquina.

Também visitamos uma das casas sinalizadas para reabilitação: no rés-do-chão, uma loja de tecidos, para cima, residência que o dono se oferece para mostrar. Do terraço temos a primeira visão “aérea” da medina, que se pinta de bege, embora a cor da cidade seja o azul. O mausoléu de Moulay Idriss (fundador de Fez), com o seu telhado piramidal verde, destaca-se, ao lado de um minarete, também ele com pormenores verdes, que pertence à universidade mais antiga do mundo, Quaraouiyine, fundada no ano 859 (curiosamente por uma mulher; nos séculos seguintes Fez vive o apogeu, com a construção de madrassas e mesquitas – paralelamente a luxuosos palácios – que a tornaram um ícone cultural e capital espiritual do país). Ao aceitar a visita caímos numa armadilha comum: no final é-nos pedido dinheiro pelo que julgáramos ser cortesia. Atiram-nos pela primeira vez um desdenhoso “portugueses tesos”, assim mesmo, em português.

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Sérgio Azenha

É na nossa segunda incursão pela medina, desta vez com o guia Abdul, “para abreviar”, brinca, que avançamos para os curtumes Chouara, que reivindicam ser os mais antigos do Norte de África (900 anos). O raminho de hortelã oferecido à entrada da loja vai mesmo parar às narinas, tal a intensidade do odor das peles a secar com a “ajuda” de excrementos de pombos. No último andar pairamos sobre o mosaico de tanques escavados (dizem que pelos fundadores da cidade) que vistos de cima parecem favos de uma colmeia irregular: uns são brancos, do amoníaco e cal usados para o primeiro tratamento das peles; outros são coloridos, vermelhos, castanhos ou amarelos, usados para tingir a pele. É um cenário intensamente fotogénico, mas somos apressados para a explicação do processo – “Só trabalhamos com animais que comemos”, retemos (vaca, cabra, cordeiro e dromedário) –, que é apenas a ponte para o pragmatismo da venda dos produtos: casacos, malas, as típicas babouches. “Portugueses tesos” escutamos novamente à saída.

Já ouvimos a piada-imagem-de-marca dos guias em Fez: “Se encontrarem marroquinos de olhos azuis ou verdes não se admirem, são filhos de turistas que se perderam.” E vamos seguindo Abdul pelo bairro dos tecidos, onde o barulho seco e regular dos teares é habitual, passando pelo das ourivesarias e pelo meio atravessando ruas tão estreitas, por vezes cobertas, que mais parecem corredores. E se os veículos motorizados são proibidos, os burros (carregados com alforjes contemporâneos, como grades de Coca-Cola) e os carros de mão são comuns – e impacientes, como os transeuntes na sua vida normal. Menos normal é a proposta de Mohammed, não mais de seis anos, que se senta à porta de uma loja com uma gata-bebé, a Linda: “Compra a Linda”. Na Praça Seffarine, território de latoeiros, o martelar ritmado e os artesãos a trabalhar no exterior dão-nos ideia de que recuamos no tempo. O bairro da comida é uma esquizofrenia de cheiros – dos doces tradicionais carregados de mel às inevitáveis especiarias, da carne (não se admire se vir a cabeça de um dromedário à porta de um talho) ao peixe, passando pelas frutas, é todo um mundo à parte.

Fora da medina, uma visita a Fez não se faz sem uma paragem no Palácio Real. Aviso de Abdul: não tirem fotos aos guardas reais. As máquinas viram-se para a fachada principal, trabalho de azulejaria impressionante a rodear grande porta de bronze feita por artesãos da medina na década de 1960 (contrastando com a vetustez do complexo que começou a ser construído no século XIII). Como o tempo aperta, Abdul é pouco complacente com “a família”. Avançamos pela rua que divide o bairro andaluz do bairro judeu. Fez foi o porto de abrigo de muitos muçulmanos expulsos da Península Ibérica com a conquista de Granada e de judeus sefarditas. Se estes agora se concentram em Casablanca, Fez preserva um dos maiores bairros judaicos dos país, sinagoga e cemitério incluídos.

Afastamo-nos do aglomerado da cidade para chegar a Borj Sud, fortaleza numa colina do lado sul da medina que tem uma irmã do lado norte. A entrada na torre está vedada, mas a vista sobre a cidade é imperdível. Falta-nos comer “a” cidade Património Mundial da UNESCO. A cozinha típica, fassi, é-nos servida no Palais La Médina, que até é fora da medina. Não faltam os tajines, mas destacamos uma

das entradas, espécie de chamuça com massa mais fina recheada de arroz com flor de laranjeira – sabor a canela e reminiscências de sonhos. Os portugueses, de Natal, num cenário das mil e uma noites.

A Fugas viajou a Fez a convite do Turismo de Marrocos em colaboração com a Solférias.

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