Portugal populista

Portugal é um país em que o populismo não aparece na sua vertente mais espectacular com o aparato de, por exemplo, as grandes manifestações de extrema-direita. O fenómeno está presente de uma forma difusa mas é cada vez mais preponderante na realidade portuguesa. Propagando-se através das declarações de alguns políticos cujos ecos se transformam rapidamente em propaganda subliminar, ou de forma mais evidente com a produção de certa informação diária, ou ainda através de padrões de comportamento social, o populismo vai-se instalando através dos múltiplos mecanismos mediáticos disponíveis.Um sinal claro de que o populismo existe são algumas intervenções de autor que, ocasionalmente, se têm registado. Embora tratando-se de abordagens diferentes que focam facetas diversas do fenómeno, estas intervenções de autor recentes são de fulcral importância para o entendimento do problema. Para citar alguns exemplos, José Pacheco Pereira tem privilegiado a questão da preservação da memória colectiva e instrumental como uma resistência ao populismo, Manuel Maria Carrilho reivindica para a intervenção política uma dimensão cultural, António Guerreiro insiste em analisar a omnipresença do "kitsch" na comunicação social, considerando que abrange não só os "media" tradicionais, mas que também inclui a edição e a crítica, tanto literária como das artes, e, finalmente, Augusto M. Seabra tem criticado as mistificações das políticas culturais.Apesar destas intervenções, verifica-se que o populismo, uma das mais poderosas formas de desumanização, se vai instalando. Torna-se pois oportuno avaliar a eficácia e o poder que os intelectuais têm na sociedade contemporânea, nomeadamente na sociedade contemporânea portuguesa, na desconstrução deste tipo de violência social, e na orientação de políticas que a evitem. Compreender-se-á então que nem todos os intelectuais estarão interessados nesta desconstrução - há mesmo alguns que colaboram na produção dos mecanismos de populização, em particular, nos meandros da informação - e que a figura do intelectual não implica, necessariamente, a ideia de intelectual comprometido (à melhor maneira de Sartre ou de Chomsky). O seu poder é, portanto, pouco significativo e, se alguma eficácia tem, esta traduz-se apenas na medida em que utilizam paradoxalmente o terreno dos "media" para combater o telepopulismo e o populismo político, correndo permanentemente o risco de soçobrarem no próprio paradoxo. Há outros ainda cuja actividade de desconstrução se faz pela organização de actividades culturais - revistas, jornais, rádios, programas artísticos - cuja recepção é minoritária porque é recebida fundamentalmente pelos já convertidos. Não havendo, propriamente, um populismo organizado em seita ou partido, a que se deve a sua forte implementação? Fundamentalmente, deve-se ao facto de o populismo ser uma actividade financeira e política particularmente lucrativa. Com o populismo, os empresários das revistas lucrativas, dos tablóides, dos programas televisivos mais abjectos têm lucros importantes, tal como os tem a maioria silenciosa - figura charneira na disseminação do populismo - que gere a actividade comercial associada ao futebol. Tem lucros e, consequentemente, tem poder. O populismo é, sem dúvida, uma actividade rentável mas de duvidosa ética. E a sua rentabilidade não é apenas financeira, é também política. Politicamente, não podendo funcionar como proposta ideológica, dados os aspectos caricatos que tem assumido, revela-se sobretudo como um meio de conservação do poder. Para tal contribui, decididamente, a ausência de alternativas políticas nos designados partidos do poder ou, na opinião de Chantal Mouffe, a evidência de que existe entre a esquerda e a direita "uma diferença semelhante à diferença entre a Coca-Cola e a Pepsi". Para esta "diferença" contribui necessariamente o facto de estes partidos serem sustentados pela maior produtora do "kitsch" em todas as suas variantes, uma certa classe média. É no seio da classe média que surge o "kitsch" - o "kitsch" objecto, o "kitsch" artístico, o "kitsch" político... - e o apelo ao populismo. Este chamamento, no seu sentido mais puro, não tem origem nos bárbaros-incultos-desempregados-suburbanos. Os bárbaros-incultos-desempregados-suburbanos são propensos a seguir o populismo, não porque lhes seja rentável mas porque, entretanto, os mecanismos emotivos do comportamento difundidos pela informação populista os condicionaram, i.e., os fizeram absorver os resíduos da relação directa que existe entre os tablóides, as revistas cor-de-rosa, as TV generalistas e os resíduos da forma como exploram o lado mais torpe da condição humana: a vingança, a inveja, o racismo face ao diferente, o enriquecimento fácil e sem escrúpulos, a exposição obscena da vida íntima, a fama instantânea, as efémeras ilusões de poder, etc.Melómanos e gestores culturais insuspeitos seguiram as várias edições do Big Brother, não por interesse sociológico ou antropológico, mas pelo prazer notoriamente "voyeur" de uma certa classe média que aprecia "espreitar" suburbanos em cativeiro. Isto é populismo.A economia, que deveria ter a autoridade de uma ciência social, melhor se traduz entre nós pela caricatura de um mealheiro que se quebra no Natal. Esta visão da economia reflecte uma visão populista da criação de riqueza. Alguns dos nossos bons artistas consentem em participar em programas televisivos deploráveis. Isto é uma forma de implantar o populismo no dia-a-dia, etc., etc., etc...O populismo é, simultaneamente, ligeiro e profundo. Ligeiro na forma primária como se anuncia, na pobreza do seu discurso político, e profundo no modo como toca no mais íntimo dos homens, nas suas emoções, na irracionalidade das suas paixões, na necessidade da crença. É por esta razão que é tão difícil de combater. Em Portugal verificamos que se vai alastrando e que, pouco a pouco, vai isolando o país do mundo - repare-se como o mundo cosmopolita, decisor, está ausente dos telejornais -, vai adiando a escrita da sua história e a sua inscrição na contribuição para um imaginário global.A solução para combater o populismo é a opção pelo cosmopolitismo: uma solução que emana daquilo que é intrínseco à cultura e não do que para ela se projecta. Através da actividade cultural deverá proporcionar-se que aos cientistas seja possível criar ciência, aos investigadores seja possível investigar e aos intelectuais seja possível produzir as relações que geram cultura através de políticas que transformem culturalmente o país. Aos mais cépticos, em especial aos intelectuais, lembro a asserção de Susan Sontag de que não lhes cabe apenas criticar e organizar mesas-redondas, mas que lhes cabe também a responsabilidade de imprimir ideais (na sociedade).António Pinto RibeiroEnsaísta

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