O economista contra o economicismo

té à morte, e mesmo depois dela, o economista brasileiro Celso Furtado prolonga a sua vocação da incomodidade, agindo sempre em coerência com a defesa de uma concepção de desenvolvimento baseada no primado do social sobre o económico e da política sobre o livre curso do mercado. "Os nossos desafios são de natureza política, e não propriamente económica", afirmou Furtado, ao dirigir-se numa cerimónia oficial, ao Presidente Lula da Silva em Julho de 2003. "Ainda que os obstáculos sejam muito e crescentes, o que importa é privilegiar, como vem sendo feito, os objectivos sociais e libertar o Estado da obsessão economicista que o marcou nos anos recentes".O "fundamentalismo mercantil" é o alvo do seu último texto (prefácio a um livro do economista Ignacy Sachs), onde Furtado afirma que, no futuro, "causará espanto" a situação actual de países como a Argentina e o Brasil. "Como explicar - questiona o investigador - que uma economia com a vitalidade da brasileira, que, nos primeiros três quartos do século XX, beneficiou de um ritmo de crescimento superado apenas pelo do Japão, se tenha conformado com uma taxa de decrescimento (crescimento negativo, para usar o eufemismo da moda) no correr deste último decénio?". Para o antigo ministro dos presidentes João Goulart e Sarney, essa situação explica-se pela necessidade de satisfazer a exigências dos que arbitram as taxas de juros exorbitantes que, na prática, acabam por absorver "mais que a totalidade da poupança nacional".Celso Furtado assinou, com personalidades afectas ao PT, um abaixo-assinado dirigido ao Presidente Lula contra a demissão do seu amigo e discípulo Carlos Lessa da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social. Esta foi a sua derradeira intervenção cívica. Lula telefonou a Celso Furtado, a quem terá explicado que, embora se considerasse forçado a demitir Lessa devido às críticas públicas formuladas pelo gestor ao Governo e ao presidente do Banco Central, permanecia fiel à inspiração desenvolvimentista tão cara ao seu interlocutor. O afastamento de Carlos Lessa era desejado pela "ala liberal", preponderante no Governo de Lula, devido à sua oposição à redução do "crédito direccionado" (bonificado, mais barato), enquanto forma de estimular sectores da economia considerados estratégicos na perspectiva do desenvolvimento (a agricultura e a construção civil). A " ala desenvolvimentista" do PT considera a permanência dos programas de estímulo a sectores industriais estratégicos como o objectivo fundamental, enquanto os "liberais" entendem o crédito bonificado deve terminar, de forma a que possa existir mais dinheiro emprestado a taxas negociadas no mercado, o que levaria os bancos a reduzirem os "spreads". Terminou o século XXJurista, formado na Universidade do Brasil, e economista, doutorado pela Sorbonne, Celso Furtado foi um dos principais teóricos do desenvolvimento do seu tempo. A sua obra teve repercussão não só na América latina, mas por todo o mundo. Iniciou a sua actividade profissional e cívica nos anos 50, na época de Getúlio Vargas, no ambiente de entusiasmo pelo desenvolvimento que então tomou conta Brasil e noutros países da América Latina. Foi o primeiro ministro do Planeamento do seu País, com o presidente João Goulart. A ditadura instaurada em 1964 não poupou Furtado. Retirou-lhe os direitos cívicos. É impressiva a forma com o próprio Furtado conta o modo como tomou conhecimento da sua exclusão da vida pública. Encontrava-se, na capital, recolhido em casa de sua irmã. Por coincidência, ou talvez não, estava a ler o romance "A Peste", de Camus. Brasília ainda se encontrava em construção, sendo, no dizer do economista, um "simples acampamento", que se "prestava maravilhosamente como cenário para um assalto de animais malignos". Neste ambiente, tomou conhecimento pela rádio de que lhe tinham sido retirados os direitos cívicos: "Entre os nomes que constituíam o pelotão da frente, figurava o meu. Cassado de direitos! Proibido de ocupar-se da coisa pública! Provavelmente, a acusação fora a mesma feita a Sócrates: perverter a mocidade!"Forçado a exilar-se, esteve primeiro nos Estados Unidos, onde foi professor em Yale. Mais tarde foi convidado a leccionar na Universidade de Paris, primeiro, na Faculdade de Direito e Ciências Sociais e, mais tarde, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. De regresso ao Brasil, após a ditadura, Celso Furtado exerceu o cargo de ministro da Cultura do Presidente José Sarney (1985-89), tendo introduzido no Brasil, o sistema de incentivos fiscais na área cultural. Muito crítico em relação à política do seu colega Fernando Henrique Cardoso, opôs-se, sem ambiguidades, às privatizações. Apoiou a candidatura de Lula da Silva mas mostrou-se, até ao fim da vida, contrário às cedências do Governo à política monetarista do FMI.Ligações a PortugalO interesse científico pelas teorias do desenvolvimento em Portugal esteve ligado, desde os anos 50, à obra de economistas como Francisco Pereira de Moura e Jacinto Nunes. "À orientação keynesiana desses autores juntar-se-ia, mais tarde, uma forte influência de Celso Furtado, que viria, aliás, a receber o título de doutor honoris causa pelo ISCEF" (1987), escreveu Eduardo Paz Ferreira. Seria, aliás, o próprio Eduardo Paz Ferreira, então jovem jornalista do "República", a entrevistar o economista brasileiro, quando visitou Portugal, no rescaldo da Revolução de Abril, por iniciativa de certos elementos do MFA e do economista Mário Murteira, ele próprio teorizador do desenvolvimento. Paz Ferreira, hoje professor de direito económico na Universidade de Lisboa, recorda que, no ambiente de radicalismo revolucionário de então, Celso Furtado, com saber feito de competência teórica e experiência prática, recomendava prudência e moderação, decepcionando, porventura, alguns dos seus admiradores mais exaltados. Orienta-se no mesmo sentido o depoimento de Mário Murteira que o convidou a visitar Portugal, pouco depois do 25 de Abril, por incumbência de "alguns capitães de Abril, que desejavam ouvi-lo "sobre 'estratégias de desenvolvimento'. Também aqui ressurge a visão de um "conselheiro" tranquilo: "Assisti a algumas reuniões - afirma Murteira - em que Celso apresentava a sua visão 'estruturalista' do desenvolvimento do Terceiro Mundo, afinal moderada e sensata, por comparação a outros economistas terceiro-mundistas da época." As duas faces da despedidaO Brasil viveu com emoção o adeus a Celso Furtado. Três dias de luto oficial. Elogios quase unânimes de quase todos os quadrantes políticas e das grandes personalidades do mundo intelectual. Mas, ao mesmo tempo, o desaparecimento de Furtado foi recebido com alguma ambiguidade. O desfecho do caso Lessa, as ausências da cerimónia fúnebre dos antigos presidentes Sarney e Fernando Henrique Cardoso (de quem fora colega universitário e companheiro de exílio) e do presidente em funções, Lula da Silva e a aparente desvalorização de alguma imprensa de referência revelaram algum mal estar em face do seu legado político e intelectual.Se um certo mal-estar pauta o unânime reconhecimento da grandeza da personalidade e da obra de Furtado, esse sentimento é também reflexo da oportunidade que lhe foi negada de aplicar o seu projecto de desenvolvimento. O facto de lhe ter sido confiada a pasta da Cultura, embora signifique o reconhecimento da sua dimensão de humanista, deve ter sabido a fraca recompensa.O desconforto na homenagem a Celso Furtado é também resultante inevitável de uma época em que a própria ideia de desenvolvimento foi desvalorizada e em que a profissão e a área científica a que dedicou a sua vida foram colonizadas por visões dogmáticas e unilaterais. Por tudo isso, vale a pena recordar aqui as palavras irónicas de Gilson Schwartz: "Celso Furtado é um economista completamente fora de moda. Ninguém no mercado financeiro está interessado no que ele tem a dizer. Ele não abriu seu próprio banco, não virou gestor de informações privilegiadas nem abriu firma de consultoria para repetir o óbvio sobre a conjuntura económica. Não arranjou emprego público para nenhum parente. Ou seja, para os padrões actuais de cidadania e mesmo de actuação de 'grandes' economistas no Brasil, ele é um perdedor".

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