O "caso" de Barrancos ou o sentido contemporâneo dos direitos culturais

Há duas semanas que os West Side Boys, uma milícia anárquica e sanguinária da Serra Leoa, detinha cinco soldados britânicos como reféns. Ontem, o Reino Unido atacou, recuperando os cativos, mas o preço foi alto: 25 mortos entre os "Boys", um entre os britânicos. A Serra Leoa continua mergulhada na confusão - mesmo entre os capacetes azuis que a deviam proteger.

O "caso" de Barrancos faz parte daqueles acontecimentos a que Marcel Mauss, há já perto de um século, chamou fenómenos sociais totais, no sentido em que neles se condensam, de maneira singular, vectores múltiplos de constituição das sociedades. A primeira dimensão a destacar é a mediática. "Barrancos", enquanto "caso", começou por ser uma manifestação dos modos como os meios de comunicação contribuem decisivamente para a construção da realidade social. Enquanto "caso", o de Barrancos não tem tanto a ver com um costume local mas, de início, com a projecção mediática desse costume local. O costume local já lá estava. Passou a ser "caso" quando foi alvo de reportagem televisiva, a qual o seleccionou de entre muitos outros, lhe sublinhou certos aspectos, o desinseriu do seu quadro de existência habitual e o transportou para uma escala de visibilidade completamente diferente da do seu contexto de produção próprio. Os significados de que se revestiu neste novo âmbito passaram a ser necessariamente outros.Com esta liga-se uma segunda dimensão: a de Barrancos como um "caso" de relação entre culturas, nas formas paradoxais em que tal tem tendência a ocorrer hoje em dia. O "caso" de Barrancos tornou-se um "caso" por um costume local ter sido activamente considerado como desgostante ou inaceitável por alguns, de outros locais, com outros costumes, porventura tão pouco apreciáveis para as gentes de Barrancos como o inverso. Costumes locais há-os os mais variados e heterogéneos. Muitos são completamente desconhecidos de terceiros. Quando, por uma qualquer circunstância, se depara com eles, podem ser facilmente considerados estranhos ou repelentes, com frequência incompreendidos ou mal aceites. Os exemplos são inúmeros, e não é preciso ir procurá-los longe. É o que acontece com práticas alimentares ou lúdicas, formas de falar ou de vestir, rituais ou cerimoniais, etc., etc. No sentido que as ciências sociais lhe dão, é o que se chama a diversidade de culturas. Uma cultura é um modo de entender o mundo e a existência, de dar forma às emoções e aos sentimentos, de praticar a vida com os outros. Não admira, pois, que, ao longo da história da humanidade, a pertença a uma cultura tenha significado muitas vezes uma grande incompreensão das outras. Hoje há uma valorização e uma procura alargada do diverso e do exótico. Mas há também a tensão que com frequência se estabelece entre diferentes padrões de sensibilidade e gosto. O que é relativamente novo, é a coexistência de múltiplas referências culturais, em regime de entrecruzamento e sobreposição, num quadro de relacionamento social em que se pretende assegurar essa coexistência segundo uma ética da universalidade de direitos e, portanto, de reconhecimento da idêntica dignidade das diferenças - à excepção das que comprometam, precisamente, aquela universalidade de direitos e dignidade. O "caso" de Barrancos é bem ilustrativo das dinâmicas, emergentes e contraditórias, que agitam esta dimensão normativa das sociedades.Numa formulação canónica, é corrente referir-se, no processo de construção da modernidade, a institucionalização progressiva de três gerações de direitos: primeiro os direitos cívicos, depois os direitos políticos e, mais tarde, os direitos sociais. Este enunciado é apenas um esquema simplificado. Em Portugal, a maior parte deles é uma aquisição recente e incompleta. Mas o que aqui importa sublinhar é a emergência de uma quarta geração de direitos, designáveis por direitos culturais. O "caso" de Barrancos é um caso de direitos culturais. Não se trata de defender as tradições em si mesmas, muito menos "a tradição". As próprias populações de Barrancos têm-se exprimido nesse vocabulário, à falta de outro. Mas o que está em causa é o surgimento e a difusão de uma noção e de um sentimento novos. Não tanto o da cultura própria enquanto experiência vivida, particularista. Isso sempre existiu. Mas o do reconhecimento, enquanto direito, da possibilidade de indivíduos e grupos desenvolverem práticas culturais específicas e aderirem a identidades culturais próprias. Ou, por outras palavras, o reconhecimento dessa possibilidade particular enquanto direito universal.O "caso" de Barrancos não é só protagonizado pelos barranquenhos e pelos média. Quem efectivamente o torna num "caso" são os opositores activos às práticas culturais locais. Entre eles são distinguíveis posições de dois tipos, sociologicamente bastante diferentes, mas conjunturalmente aliadas. Uma é a dos que se lhes opõem em termos de não reconhecimento ostensivo da pertinência dos direitos culturais das populações. Para eles, os gostos e as sensibilidades devem obedecer a um padrão único, por sinal o deles próprios. Acham que têm o direito, ou mesmo a missão, de impor aos outros os seus próprios gostos e preferências. E uma vez que uma lei o determina, usam o aparelho jurídico, para além dos limites do razoável e do proporcional, para fazer valer a pretensão, de cariz autoritário, de anulação da diversidade cultural.Outros, atacam as práticas identitárias de Barrancos em nome, por paradoxal que pareça, dos direitos culturais. Mas, neste caso, os direitos culturais são os daqueles que desenvolveram uma sensibilidade de outro tipo na relação com os animais. Resumidamente, é uma sensibilidade urbana. Sente-se agredida com o que vê, à luz da sua própria matriz cultural urbana, como espectáculo de violência bárbara e gratuita. Dela está por completo ausente aquilo que caracteriza a dos barranquenhos, um misto de familiaridade prática, utilitária, com os animais e de respeito pela sua alteridade irredutível, em alguns deles não domesticável. Como se percebe, neste confronto a questão da legalidade é em grande medida apenas pretextual. Se não houvesse lei, os que se opõem à festa de Barrancos requerê-la-iam. Aliás, do ponto de vista da legalidade, facilmente se pode reconhecer a existência no país de muitas outras situações merecedoras de maior prioridade, incluindo no que diz respeito aos animais.As posições em confronto são, como se viu, bastante assimétricas, o que reconduz a uma outra dimensão importantíssima do "caso", a das desigualdades sociais. Os barranquenhos não fazem qualquer proselitismo dos seus costumes locais. Não pretendem impô-los a ninguém. Para eles, o que está agora em causa é a defesa do direito não só aos seus próprios gostos e práticas, mas, para além disso, perante o modo como a questão foi desencadeada contra eles, o direito a serem tratados como portadores de igual dignidade humana e igual estatuto de cidadania cultural. Para os do campo oposto, pelo contrário, o que guia a sua acção é um intuito de imposição a outrem, de padrões únicos de gosto, sensibilidade e prática cultural.Claro está que os direitos culturais incluem o da possibilidade de defender certas preferências relativamente a outras, e de procurar promover mudanças nesse sentido. Mas uma coisa é defender critérios e gostos, outra é impô-los a terceiros. A não ser que o "caso" de Barrancos revele, afinal, que, apesar de toda uma retórica de emancipação (aliás, em casos como este, estranhamente aliada a veleidades de prepotência autoritária das mais grosseiras), se reeditem, no novo palco de afrontamento social que é o da afirmação de direitos culturais, a atracção fácil pelo exercício da hegemonia por parte de elites sociais, agora em grande medida culturalmente constituídas, sobre os que menos recursos e privilégios têm na sociedade.* sociólogo, professor universitário

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