Cavaco "não tem a humildade de dizer que se enganou"

Há anos fora da política para preparar um doutoramento, Manuel Monteiro volta a comentar a actualidade. Uma das vozes, no passado, contra Maastricht e a adesão ao euro. Por São José Almeida e Sofia Rodrigues (texto) e Daniel Rocha (foto)

Aos 50 anos, Manuel Monteiro doutorou-se em Ciência Política, na Universidade Lusíada, onde é professor. Chegou à universidade e à investigação sobre o sistema político e recenseamento eleitoral depois de ter sido um dos seus actores. Começou na Juventude Centrista, a que presidiu. Entre 1992 e 1998, lidera o CDS, a cujo nome acrescenta Partido Popular, por influência do PP de José María Aznar, em Espanha, e o qualtransforma num partido antifederalista, anti-Maastricht e antieuro. Sai em ruptura com o seu amigo Paulo Portas, que herda a liderança. Em 2003 funda um partido à direita do CDS, o PND, que muitos viram como uma deriva extremista. Em 2008 deixa a liderança e abandona a política, segundo o próprio, para não voltar.

Como vê a vitória de Hollande?

Já não corro a foguetes depois de um acto eleitoral. As eleições francesas são um dos aspectos objectivos da falência da política. Ver governos de direita felizes pela eleição de Hollande é surreal.

Que governos?

As declarações de Rajoy, em Espanha. As declarações do primeiro-ministro, Passos Coelho, que são, para mim, surpreendentes. Se tem ganho Sarkozy, o primeiro-ministro mandaria uma carta dizendo que estamos no caminho certo da austeridade. Ganhou Hollande, o primeiro-ministro mandou uma carta que não se limita à felicitação, mas diz: estamos felizes e vamos trabalhar juntos para o crescimento económico.

Hollande pode fazer frente a um directório da Alemanha na União Europeia (UE)?

Eu, para ser franco, só vendo. Os países da UE têm de reflectir, antes de mais, sobre qual é o fim, qual é o objectivo. O que se quer da UE? Uma UE política, com um governo político? Uma UE apenas para cooperação? Sem discutir com clareza este fim, não vamos ao fundo das questões. Jürgen Habermas lançou o livro [Um Ensaio] sobre a Constituição da Europa. Eu não me identifico com a solução dele...

Habermas é marxista.

Exactamente. Mas identifico-me com o prognóstico. Ele vem defender uma federação para a Europa desestatizada, hoje temos na União Europeia um federalismo executivo, feito apenas pelos governos dos Estados, sem a participação dos cidadãos. Estou completamente de acordo com ele. Pensei, é espantoso como há um senhor, com esta idade...

É um dos grandes filósofos...

E tem a clarividência de nos vir dizer: meus amigos, continuais a andar à volta da mesa, estais todos cansados e não saístes do sítio. Há uma fraude nas eleições europeias e nacionais. Não dizem aos eleitores que a importância dos órgãos políticos nacionais é cada vez menor, face à importância dos órgãos institucionais ou informais a nível europeu.

A crise deve-se à atitude imperial alemã ou à cedência da política perante as imposições dos mercados?

As duas coisas. Como português, da mesma forma que não me agrada ter a senhora Merkel a dizer como é que é, também não me agradava quando era a França e a Alemanha. A Europa não pode ser comandada nem pela Alemanha nem pelo eixo franco-alemão. Não pode haver o apagamento da memória de que esta construção europeia foi sempre feita por um directório.

E os mercados?

Cresci na defesa da ideia de liberdade e do sistema capitalista. E o sistema capitalista em que eu acredito e que eu defendi era um capitalismo em que os banqueiros nos EUA, quando iam à falência, se suicidavam. Agora suicido-me eu, quando eles vão à falência, enquanto depositante.

Os banqueiros já não falem?

O capitalismo em que eu acreditava era o sistema do risco, que arriscava para o bem e para o mal. Agora só arrisca para o [próprio] bem. Este não é o sistema capitalista por que me bati. Não tenho absolutamente nada a ver com isto. Se isto é ser capitalista, vou ali e já venho. Este sistema é provocado porquê? Quem é que efectivamente hoje manda na sociedade? Os cidadãos? Não. Nós temos uma democracia claramente formal.

Os partidos cederam perante os interesses económicos?

Os partidos não mandam e eu comecei a aperceber-me disso quando era líder do Partido Popular. Os partidos têm militantes com a convicção de que mandam e outros que já se aperceberam de que estão ali para tratar da vida, para si e para os amigos. O verdadeiro poder não vai a votos.

Qual?

É o poder de determinado grupo de lóbis disfarçados que continua a determinar para quem vão os negócios em Portugal ou fora de Portugal. É o poder ligado a muitos sistemas de natureza financeira que financiam campanhas eleitorais e que decidem quem vai para ministro da Economia, das Finanças e das Obras Públicas. É o poder de determinadas profissões liberais, nomeadamente na advocacia, que, independentemente de quem seja o Governo, estão sempre nas intermediações. E nas assessorias de privatizações. E o poder dos mercados. Isto acontece porque pretenderam conciliar democracia política e globalização.

Não são compatíveis?

Com esta democracia, é totalmente incompatível. Não podemos ter um mercado global com regras globais, do foro económico, e continuar a ter democracia política a nível nacional com soberanias. Faço hoje uma revisão memorial do que defendi e continuo exactamente idêntico àquele que pensava. E tenho imensa pena de que muitas das pessoas que, em Portugal e fora dele, são responsáveis claras pelo que estamos a passar não tenham sequer a humildade de dizer: "Enganámo-nos, acreditámos neste modelo e enganámo-nos."

Quem?

A esmagadora maioria dos intervenientes políticos, a começar pelo professor Cavaco Silva. É um dos grandes responsáveis por este sistema e este modelo. O doutor Mário Soares sempre defendeu um modelo político e económico totalmente distinto e diferente.

Não se reconhece no momento de Cavaco ou no percurso?

Em tudo. O professor Cavaco Silva, quando chegou à política, recordo-me que foi dito ao país: "Vem aí a tecnocracia." Ou seja, não importa o pensamento, importa o fazer.

Mas isso é discurso dos liberais.

Ele era um falso liberal, porque era um liberal estatista.

O senhor é mais estatista.

Em termos conceptuais, o Estado tem um papel fundamental. Há uma direita, na senda de direita de De Gaulle, que é inevitavelmente estatista. A ideia de que o mercado resolve tudo e que o Estado não serve para nada, jamais alinhei nesse modelo de pensamento. Assumo isso e essa era a minha base de discussão dentro do Partido Popular com pessoas claramente liberais [que defendiam], que o Estado seria uma tabuleta numa rua qualquer, e que apenas pegávamos nela quando estivéssemos aflitos.

E a globalização?

A globalização, tal qual foi pensada e definida, é um ataque claro à sobrevivência da democracia. Não pode haver democracia ou sistema igualitário quando sou visto como consumidor e não como produtor. Em 1994, disse que isto era um erro. Mas foi assim porque a Alemanha queria. A Alemanha, que tinha uma indústria voltada para a exportação. Votei contra no Parlamento Europeu.

O Governo fez reformas...

Não vi nada. Admito que seja eu que esteja a ver mal.

Assinava o acordo com a troika?

Provavelmente não. Se o que o senhor Hollande disse está certo, é a demonstração de que o programa da troika está errado. Não há outra possibilidade em termos conceptuais. Temos um Governo que governa com o programa que foi feito por ele e pelo PS com a troika. E temos um Governo que governa com um programa que foi assinado - mais uma vez um problema de democracia - sem o Parlamento ter aprovado nem que fosse uma pequenina resolução a dizer "o Parlamento está de acordo". Só Jorge Miranda chamou a atenção. E assinámos sem nos perguntarmos se a Constituição permitia aquele programa.

O que pensa do tratado europeu, que já ratificámos, que inclui o limite do défice na Constituição?

Sou totalmente contra. Não apenas por uma questão de fundo, mas por uma questão prática. É uma intromissão no chamado poder constituinte nacional sem precedentes. É vir dizer ao poder soberano popular o que é que a sua Constituição deve ter. Além de que a ideia de que a vida é uma soma de parcelas matemáticas é absurda.

Não aceita que a política se defina com base no défice?

Pode haver momentos em que sabemos que vamos gastar mais, porque temos a perspectiva de que vamos compensar noutros, com um aumento de receitas. É legítimo e normal. Se houver uma catástrofe que implique que o Estado tenha de gastar mais dinheiro, vamos ter de alterar novamente a Constituição? Vamos dizer que é o estado de sítio, o estado de emergência para poder ultrapassar uma norma constitucional? Acho isso um absurdo. É a demonstração clara de que a grande fragilidade nacional é a política. Temos pessoas que correm atrás de uma lata que vai pregada aos carros dos noivos. Se o senhor Hollande quiser incluir no pacto orçamental uma nova cláusula, ainda que seja o contrário do que o pacto define, o que é que se vai fazer?

Como é que vê hoje o CDS?

À distância. Tenho uma parte substancial da minha vida ligada ao CDS e ao Partido Popular. O CDS que eu vi e vivi, na minha perspectiva, não tem nada a ver com o actual CDS. O CDS e o PP, ainda que com registos distintos na UE - o que, aliás, levou Freitas do Amaral a desfiliar-se, quando o PP inverteu o rumo federal que defendera -, não eram partidos do pragmatismo. Eram de valores, de princípios. Não corria atrás de uma qualquer manchete. Tinha consciência de que o que marcava a diferença, provavelmente em relação ao seu grande concorrente chamado PSD, era a identidade de um conjunto de valores. Significava que as possibilidades de ter ministros ou secretários de Estado eram menores, era verdade, mas nós assumimos isso. O CDS é hoje um partido totalmente igual aos demais.

Foi convidado para integrar o Governo PSD/CDS de Durão Barroso e recusou. Porquê?

Tive um daqueles convites que funcionam assim para a história: se tivesse aceitado, ele tinha existido, como não aceitei, os interlocutores dirão eventualmente que esse convite não foi feito. Fui abordado por um antigo presidente da Juventude Centrista, chamado Caetano Cunha Reis, que me disse que ia a pedido dos dirigentes de então do CDS, que são os mesmos, no restaurante Líder, no Porto, em que me foi feita essa proposta. Não poderia nunca aceitar. A ideia de passar por um governo só para dizer que fui ministro ou secretário de Estado nunca me fascinou. Seria uma incoerência total da minha parte. Eu, que não me identificava com os principais interlocutores políticos que ganharam eleições, não podia, só porque me estavam a acenar com um cargo político, dizer: "Aqui estou em nome do país." E tudo o que disse ou escrevi ficou por baixo da mesa. Os intervenientes da política não podem prescindir de uma postura de verticalidade.

Como é que estão as suas relações pessoais com Paulo Portas?

Não tenho relações pessoais com o doutor Paulo Portas.

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