Uma mente brilhante

Miguel Beleza contribuiu de modo relevante para a modernização do sistema financeiro português. Mas deu-me sobretudo o privilégio de ser seu Amigo.

Conheci-o há 31 anos, no seu gabinete de trabalho do Fundo Monetário Internacional em Washington. Recebeu-me com a afabilidade dos velhos conhecidos. Porque, de facto já nos conhecíamos bem, sem nunca nos termos encontrado. Pelas ideias que ele, no FMI e eu, no Ministério das Finanças defendíamos e discutíamos. Mas essa conversa em pessoa, que foi a primeira, deixou logo a marca indelével da sua inteligência, da certeira rapidez com que argumentava, do economista brilhante que era. Sempre provocante, sempre frontal, sempre cordial.

Pouco tempo depois, Miguel Beleza regressaria ao nosso País como administrador do Banco de Portugal, tendo eu o privilégio de ser o seu principal interlocutor no Ministério das Finanças, sobretudo enquanto Secretário de Estado do Tesouro de Miguel Cadilhe. Esse foi um período de grandes transformações e grandes reformas, designadamente no percurso que nos levou de um sistema de regulação financeira obsoleto e administrativo até um sistema moderno e assente nos mecanismos de mercado, plenamente conseguido no início dos anos 90. Foi esse o período decisivo para que se passasse de um regime de política monetária em que as taxas de juro e de câmbio eram fixadas administrativamente e o principal instrumento de controlo monetário eram os limites de crédito, para um regime de controlo monetário indirecto assente nos mecanismos de mercado. A cooperação entre o Banco de Portugal - cuja independência se viu reforçada nesse período - e o Ministério das Finanças foi exemplar e pessoalmente muito aprendi com as muitas interacções que tive com Miguel Beleza. Julgo poder dizer que foi também um dos seus períodos profissionalmente mais realizados.

Fui depois seu Secretário de Estado, na sua relativamente breve passagem pelo Ministério das Finanças. Mas tempo suficiente para mostrar a sua convicção de que o nosso País poderia continuar e aprofundar o processo de convergência e modernização que tinha sido encetado e gozar de uma estabilidade financeira duradoura. Fui também testemunha do brilho e da pertinência com que participou nos “fora” europeus e na discussão das condições que acabaram por conduzir à União Económica e Monetária, contribuindo decisivamente para que o nosso País fosse uma voz altamente respeitada. Não me surpreende, porém, que mais tarde tenha referido que não tinha apreciado especialmente a experiência de ser Ministro, por ser demasiado política. Até o seu imbatível sentido de humor parece ter sofrido… Eu também não gostei de ser Ministro, dez anos mais tarde…

A nomeação como Governador do Banco de Portugal significou a possibilidade de voltar a exercer plenamente as suas capacidades notáveis de economista e de se centrar nas questões mais técnicas da política monetária e da supervisão bancária. Era também, estou certo, o concretizar de uma legítima aspiração, a de chegar ao topo do “seu” Banco de Portugal, instituição pela qual nutria um indisfarçado afecto. Infelizmente, as circunstâncias levaram a que essa tarefa fosse bruscamente interrompida ao fim de praticamente dois anos.

Depois disso, apesar dos contributos sempre pertinentes que foi dando, com independência e frontalidade, para a formação de um pensamento económico nacional, julgo poder afirmar que o País não voltou a saber aproveitar as suas qualidades ímpares de inteligência e sabedoria. E, entretanto, passaram 23 anos…

Dele ficarão, certamente, muitas boas memórias. Entre elas, a graça inigualável com que dizia as coisas mais sérias. Como a divisão dos investimentos em duas grandes categorias: os estratégicos e os rentáveis!

Vi-o, uma última vez, na apresentação do livro que Carlos Alves e eu escrevemos sobre a banca e a economia portuguesa. Deu-me esse gosto e o privilégio da presença de alguém que contribuiu de modo relevante para a modernização do sistema financeiro português. Mas que me deu sobretudo o privilégio de ser seu Amigo. 

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