Solidariedade quanto baste para salvar o euro

Até onde tem a União Europeia de avançar em termos de integração para salvar o euro?

Os economistas nunca se contaram entre os entusiastas do euro. Joseph Stiglitz, americano e prémio Nobel da Economia, escreveu que há um consenso entre os da sua profissão sobre as falhas da moeda única. Os países europeus têm economias demasiado diferentes para partilharem a mesma moeda. Em tempos de crise, os governos nacionais precisam de desvalorizar para não caírem numa espiral de austeridade. O problema poderia resolver-se, se a União Europeia fosse mais como os EUA — um governo federal, com orçamento próprio, com poder para cobrar impostos e transferir dinheiro para facilitar o ajustamento dos países em crise. Sem isso, avisam os economistas para desespero dos políticos, mais tarde ou mais cedo, a zona euro acabará por se desintegrar.

Em The Political Economy of Monetary Solidarity: Understanding the Euro Experiment, Waltraud Schelkle rompe com o dito consenso. A professora de Economia política na London School of Economics argumenta que desvalorizações cambiais não são grande ajuda para economias em crise e que economias diferentes, que crescem e encolhem a ritmos e tempos diferentes, têm vantagem em partilhar a moeda para se apoiarem nas horas más. Para que os benefícios da união monetária se realizem é preciso que os Estados se comprometam com mecanismos de partilha de risco numa união monetária. No limite, esses mecanismos implicam transferências de uns para outros e algumas regras partilhadas. Mas não precisam de ir tão longe quanto a utopia dos Estados Unidos da Europa.

A comparação entre as instituições da zona euro e os EUA é constante ao longo das quase 400 páginas do livro. Num dos capítulos iniciais, em que faz diversas referências a um artigo de Vítor Gaspar sobre o mesmo assunto, Schelkle passa em revista a história das instituições que suportam o dólar e mostra como a sua evolução se caracterizou por avanços e recuos, e em resposta a crises. Os EUA precisaram de 150 anos, até à Grande Depressão dos anos 1930, para encontrar uma fórmula que estabilizasse o dólar, que pudesse ser aceite pelos estados federados, que tal como os Estados europeus tinham visões diferentes sobre política monetária e enorme relutância em partilhar riscos entre si.

Ao contrário do que é comum dizer-se, a fórmula americana não permite uma partilha completa dos riscos. Por exemplo, Washington está proibida de resgatar os estados federados como a Califórnia ou o Ohio — algo que Bruxelas fez durante a crise do euro com Portugal e outros quatro Estados europeus, ainda que sob duras condições.

A análise da crise do euro é o segundo passo no esforço de Schelkle para desmontar o consenso dos economistas. A crise não se explica apenas por referência a choques “assimétricos” nas economias dos chamados “PIIGS”, nem por uma incompatibilidade natural entre o modelo de crescimento dos países do Norte e os do Sul. Começou nas fraquezas particulares de cada país: a dívida pública na Grécia, a dívida privada na Irlanda, Espanha e Chipre, a competitividade em Portugal. Mas foram os riscos endógenos à união monetária, em particular os riscos criados pela integração financeira, que a alimentaram.

Schelkle põe em evidência o ciclo vicioso em que a falência dos bancos e o défice e a dívida dos Estados se reforçam mutuamente, e por qualquer ordem. Até a França e a Alemanha teriam sucumbido, se a Grécia não tivesse recebido apoio para pagar aos bancos franceses e alemães que lhe tinham emprestado dinheiro. Foi a partilha — contrariada — de riscos que evitou isso mesmo.

Pode olhar-se para esta análise como um ajuste de contas entre académicos preocupados com definições e a capacidade das suas teorias explicarem a realidade. Mas as diferenças de perspectiva não são inconsequentes. Elas determinam as respostas à pergunta: até onde tem a UE de avançar em termos de integração para salvar o euro?

Schelkle recusa a ideia de que sejam necessárias volumosas transferências fiscais entre os países, e aponta para o exemplo americano, em que as transferências sociais do Estado federal contribuem de forma limitada para a estabilização económica. O mesmo resultado poderia ser alcançado com uma velha proposta da Comissão Europeia para a criação de um “resseguro de desemprego europeu”. Os Estados nacionais continuavam a pagar o subsídio de desemprego, mas recebiam um valor predefinido e proporcional a contribuições passadas, quando o número de desempregados excedesse um certo limite. Esses pagamentos seriam limitados no tempo, para colocar pressão nos governos para forçarem o ajustamento estrutural, na medida do necessário, no mercado de trabalho.

Por outro lado, a finalização da união bancária deveria ser uma das prioridades para os políticos europeus. Os bancos não têm lugar na teoria convencional dos economistas, mas a história das crises do dólar e do euro prova que, enquanto a responsabilidade por gerir e recapitalizar os bancos falhados estiver nas mãos dos Estados nacionais, a união monetária está demasiado incompleta.

Num dos capítulos mais originais do livro, Shelkle rejeita uma outra ideia partilhada por muitos economistas: a de que o movimento de trabalhadores de um país em crise para um país em crescimento acelera o ajustamento e deve ser facilitado numa união monetária. Esta ideia também esteve no centro do debate político em Portugal, quando o primeiro-ministro Passos Coelho foi acusado de encorajar os jovens a emigrar.

A emigração pode ser boa para o indivíduo, diz Schelkle. Mas o impacto nos Estados é negativo, especialmente nos países de partida. Os migrantes são normalmente jovens qualificados. A sua saída reduz a produtividade e o potencial de crescimento da economia e acelera o processo de envelhecimento da população. Nos países onde as pensões são pagas pelas contribuições dos trabalhadores no activo, como em Portugal, a sua saída coloca pressão sobre as contas da Segurança Social. O impacto económico e demográfico nos países de destino é positivo, mas os efeitos sociais e políticos são negativos. Os imigrantes ficam com trabalhos de segunda categoria e competem directamente com as classes de trabalhadores pouco qualificados, aumentando a desigualdade por via da redução dos salários e do desemprego. Frustrados, os últimos tendem a mobilizar-se nas eleições contra os partidos tradicionais, votando nos que propõem a introdução de limites à imigração e à integração política. O referendo do “Brexit” foi, para muitos, um exemplo disso.

É possível que os políticos europeus não tenham força, vontade nem mesmo tempo para pôr em prática estas políticas. A crise cavou um fosso entre os Estados do Sul e os do Norte. Com os primeiros com o desemprego alto, os bancos frágeis e uma montanha de dívida, é mais difícil que os segundos concordem em entrar num acordo de partilha de riscos. Mas isso é a política. Livros que revêem, criticam e aprofundam as teorias sobre a união monetária ajudam os políticos a identificar e a medir os riscos que têm de ser mais bem controlados para que o euro funcione.

Schelkle mostra que as propostas para uma integração fiscal muito aprofundada — que, para além de dinheiro alemão para Portugal, traria regras mais apertadas sobre a forma como gerimos o nosso Orçamento — não são necessárias e, em certa medida, não chegam para resolver o problema do euro. A solução passa por um equilíbrio na integração fiscal, financeira e monetária, que se ajusta às circunstâncias políticas. Se o passado é guia para o futuro, o euro não vai ser reformado de uma vez e para sempre. Tal como o resto da UE, a moeda única viverá sob a maldição de Monnet: “A Europa vai ser forjada em crises e vai ser a soma das respostas a essas crises.”

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