Reestruturar a dívida ou passar a pesada "herança" aos nossos filhos e netos?

A resolução do problema da dívida não deve ser guiada pelos populismos fáceis e demagógicos em que a política portuguesa – em todos os órgãos de soberania – se tornou fértil por estes dias.

A recente divulgação do relatório do grupo de trabalho do Governo e partidos que suportam a coligação sobre a sustentabilidade das dívidas externa e pública não traz nada de novo em relação ao conhecimento sobre a situação da dívida pública, em particular quanto à sua composição, detentores, maturidades e taxas de juro. Mais, ao contrário da retórica inflamada da reestruturação da dívida, do discurso do haircut ou do slogan "não pagamos", o documento apenas evidencia um consenso entre os seus proponentes que já se conhecia desde pelo menos o relatório Uma década para Portugal: o de que, para estes, a resolução do pesado problema de dívida pública não passa por uma verdadeira e duradoura consolidação orçamental, reduzindo as necessidades de financiamento, cumprindo as regras europeias, diminuindo a carga fiscal para níveis que tornem o país competitivo, dando-lhe capacidade para reagir a choques assimétricos. Pelo contrário, ele resume-se, tão-só, a tentar obter folga orçamental extraordinária para aumentar a despesa pública no curto prazo transferindo a pesada e crescente herança da dívida para as futuras gerações.

As principais propostas apresentadas para melhorar a sustentabilidade da dívida pública são: (i) a alteração dos critérios de constituição de provisões e política de dividendos do Banco de Portugal; (ii) a alteração das maturidades médias da dívida directa do Estado; (iii) operações de recompra antecipada e troca de dívida, em particular ao FMI.

A proposta de relaxar os critérios adoptados pelo Banco de Portugal (BP) na constituição de provisões para fazer face aos riscos decorrentes da detenção de dívida visa aumentar o lucro contabilístico da instituição no curto prazo, aumentando desta forma a receita corrente do Estado sob a forma de IRC e dividendos, mas não tem qualquer impacto estrutural na sustentabilidade das contas públicas. Para além de constituir mais uma indisfarçável intromissão nas competências, atribuições e autonomia do BP, com o qual os membros do grupo demonstram sem surpresa conviver mal, não é garantido que ela seja aceitável à luz dos tratados europeus que regem a moeda única. A medida evidencia, novamente, que para os proponentes pouco importa uma gestão prudente dos elevados riscos associados à dívida pública portuguesa — por alguma razão a dívida soberana de Portugal só é qualificada como investment grade numa agência de rating —, que as potenciais perdas dela decorrentes logo se pagarão pelas futuras gerações. O que importa é tratar das juras de hoje.

As propostas de alteração das maturidades médias da dívida directa do Estado, que envolvem a transformação da dívida pública detida pelo Banco de Portugal numa perpetuidade (i.e., que não se pague a dívida), o aumento do prazo de pagamento da dívida aos parceiros europeus (de 15 para 60 anos) e a redução, em simultâneo, da taxa de juro de 2,4% para 1% são ou ilegais à luz da proibição do financiamento directo dos Estados pelos bancos centrais, ou não dependem de nós e, portanto, são pouco mais do que inócuas, ou implicam a transferência de uma parte do custo da dívida portuguesa para os contribuintes dos outros Estados-membros da UE, algo que ninguém acredita que estes aceitem de bom grado e cujo impacto será apenas o de aumentar ainda mais o prémio de risco da dívida portuguesa.

Por outro lado, convém recordar que estes empréstimos só começarão a ser pagos em 2026, pelo que qualquer extensão de prazos não terá impacto num futuro próximo. A aposta na redução da almofada de liquidez do Tesouro e no financiamento através de títulos de dívida de curto prazo em detrimento da dívida de médio e longo prazo, procurando tirar partido no imediato da inclinação positiva da curva de rendimentos (yield curve), é precisamente o oposto daquilo que deveria ser uma adequada estratégia de gestão da dívida para um país com um rácio superior a 130% do PIB e quase ausência de poupança interna. Com efeito, esta opção aumentaria fortemente os riscos na gestão da dívida, levaria ao aumento das taxas de juro de curto prazo por pressão do lado da procura de liquidez, exporia a República às oscilações conjunturais no apetite dos investidores e à pressão dos especuladores, obrigaria o IGCP a refinanciar-se em montantes astronómicos todos os anos e não prepara o país para o fim da actual política monetária do BCE. Mais, ao menor sinal de agravamento do risco de incumprimento do país as taxas de juro subiriam fortemente, os aforradores em certificados e bilhetes do tesouro acorreriam a resgatar as suas poupanças, aumentando ainda mais a necessidade de ir ao mercado, que dificilmente conseguiria absorver os montantes de pretendidos. A miopia intergeracional não pode explicar tudo. O relatório defende ainda um reembolso mais rápido ao FMI, política que vinha sendo adoptada desde o fim do programa de ajustamento e que foi afrouxada no ano passado, em que só foram reembolsados cerca de 1500 milhões de euros, em vez dos 6000 milhões de euros previstos.

Qualquer reestruturação que atinja a parcela da dívida detida por agentes económicos nacionais implica perdas consideráveis para o sector financeiro (conduzindo potencialmente à sua nacionalização e a cortes nos depósitos dos depositantes em resultado de processos de resolução), para os famílias portuguesas que decidiram investir a poupança de uma vida em certificados do tesouro e de aforro, para o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, cuja missão é a de oferecer uma reserva financeira para o pagamento das pensões e para o próprio banco central. Uma reestruturação que apenas incidisse sobre investidores estrangeiros condenaria o Estado, os bancos, as empresas e as famílias a perder o acesso aos mercados financeiros por décadas, com custos decorrentes de conflitos judiciais imprevisíveis, e conduziria muito provavelmente à saída de Portugal da zona euro.

Em suma, a resolução do problema da dívida não deve ser guiada pelos populismos fáceis e demagógicos em que a política portuguesa — em todos os órgãos de soberania— se tornou fértil por estes dias. Deve, pelo contrário, respeitar de forma estrita princípios de justiça intergeracional. Nenhuma geração tem o direito de, em nome da satisfação das necessidades particulares de curto prazo, sacrificar o bem-estar global e a qualidade de vida das gerações futuras, a coesão social do país, a igualdade de oportunidades.

CIDADANIA SOCIAL - Associação para a Intervenção e Reflexão de Políticas Sociais - www.cidadaniasocial.pt

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