Quem decidiu que o Banif perdia acesso ao BCE e ditou o seu fim?

Responsáveis do Banco de Portugal e do Governo falam de "retirada do estatuto de contraparte" do BCE ao Banif, mas isso não está escrito em nenhum documento oficial conhecido. O único que existe fala em "suspensão", o que é muito diferente.

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O governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, é ouvido na terça-feira no Parlamento ENRIC VIVES-RUBIO

Há um mistério por resolver sobre o fim, abrupto, do Banif. Todos os responsáveis, desde o ministro das Finanças ao governador do Banco de Portugal (BdP), referem um facto que terá estado na origem da decisão de aplicar ao banco a medida de resolução a 21 de Dezembro de 2015. O facto é a retirada do estatuto de contraparte ao Banif, decidida pelo Banco Central Europeu (BCE) quatro dias antes.

Com essa decisão, o banco ficaria impossibilitado de aceder ao financiamento normal do BCE, mas não perderia a assistência extraordinária de liquidez que, por exemplo, mantém em funcionamento, desde há algum tempo, os bancos gregos.

O PÚBLICO consultou a volumosa correspondência entre os governos de Passos Coelho e de António Costa, o Banco de Portugal e as autoridades europeias entre 2012 e 2015 e aí verifica-se que o único registo escrito desta decisão não fala, nunca, em perda do estatuto de contraparte. Fala apenas em "suspensão". O que é bastante diferente, uma vez que pressupõe uma decisão temporária.

E o tempo, neste caso, era decisivo para o objectivo que todos, em Portugal, pareciam partilhar: uma venda lucrativa, ou pelo menos não ruinosa, do Banif. Numa altura em que cada dia era importante para negociar uma venda do banco, esta notícia decretou uma urgência que retirou às autoridades portuguesas qualquer margem negocial.

A 17 de Dezembro, os dois vice-governadores do BdP, José Ramalho e Pedro Duarte Neves, notificaram o ministro das Finanças socialista, Mário Centeno, das deliberações tomadas na véspera "pelo Conselho do BCE", “de congelar o nível de financiamento do Banif junto do Eurosistema, no valor em que se encontrava em 15 de Dezembro de 2015 (1155 milhões)”. Frankfurt tomou nesse dia outra decisão: “Suspender o estatuto de contraparte do Banif a partir da próxima segunda-feira [21 de Dezembro] no caso de o banco não ter sido entretanto vendido e não ter entrado em resolução.”

Mas nem o actual Governo nem o BdP, nas várias intervenções realizadas a propósito do Banif, se referem alguma vez ao termo "suspensão". Falam sim, de "retirada" ou "perda" do estatuto de contraparte do Banif (isto é, de acesso ao financiamento europeu). A 22 de Dezembro, um dia depois da resolução, Mário Centeno explicava que “o Conselho de Governadores do BCE retirou o estatuto de contraparte ao Banif com efeitos a 21 de Dezembro". E Carlos Costa confirmava que “o banco tinha perdido o estatuto de contraparte a partir de segunda-feira seguinte".

A referência a uma "suspensão", em vez de "retirada" ou "perda", não é irrelevante. Ainda que as duas "figuras" apareçam reguladas (na última alteração do quadro regulamentar da politica monetária de 2015) de forma pouco diferenciada, têm significados distintos.

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Nem o Governo nem o Governador do BdP, Carlos Costa, nas várias intervenções realizadas a propósito do Banif, se referem alguma vez ao termo "suspensão" Enric Vives-rubio

A medida de “suspensão” aplica-se a bancos onde se prevê que a situação prudencial ou o incumprimento que levou à decisão possa ser ultrapassado, enquanto o termo “retirada” se destina a casos sem possibilidade de recuperação. É a diferença entre um banco com dificuldades, mas vendável, e um caso perdido.

Há ainda outra implicação importante: quando se dá a exclusão do estatuto de contraparte, as dívidas da instituição ao Eurosistema migram imediatamente para os bancos centrais. O que, como se sabe, não aconteceu. Ambas as deliberações têm de ser comunicadas pelo BCE formalmente, por escrito e fundamentadas. 

O caso do BES

Este tema esteve também em debate na Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES, que no final de Junho de 2014 foi alvo de uma suspensão do estatuto de contraparte, mas com os empréstimos do BCE a serem congelados, altura em que o banco passou a ser financiado pelo mecanismo extraordinário de liquidez disponibilizado pelo Banco de Portugal (conhecido pelo acrónimo em inglês ELA).

A obrigação de reembolso pelo BES de todo o financiamento do Eurosistema, cerca de 10.000 milhões de euros, só viria a ser decretada a 3 de Agosto, data da resolução. Há, portanto, diferenças face ao Banif: no BES, o BCE aplicou primeiro, em Junho, a medida de limitação do recurso ao Eurosistema, e só em Agosto é que pediu o reembolso dos 10.000 milhões. No Banif, a carta do BdP enviada a Centeno a 17 de Dezembro fala apenas em congelamento do acesso ao BCE.

O BCE recusou prestar depoimentos verbais ou por escrito à Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES. Os esclarecimentos do BCE teriam grande relevância, dado que o sistema financeiro português está hoje sujeito à supervisão única de Frankfurt, cujas decisões têm enorme impacto nos contribuintes (que nos casos BES e Banif arriscam perdas de cerca de 8000 milhões). E que são apresentados pelo executor, o Banco de Portugal. Nada disto ajuda a tornar menos opaca a decisão do BCE.

Com esta ameaça de Frankfurt (ainda que difusa) nas mãos, o Governo recebia novas exigências sobre o Banif, desta vez de Bruxelas.

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Em meados de Dezembro, Carlos Costa participou na reunião do Conselho de Governadores do BCE que tomou a decisão de suspender o estatuto de contraparte do Banif Reuters/Kai Pfaffenbach

O ultimato 'burocrático'

Cerca de um mês e meio antes da resolução do Banif, de 20 de Dezembro, a Comissão Europeia escreveu às autoridades nacionais a fixar o final de 2015 como data-limite para o dossier ficar fechado. Uma imposição acompanhada de um aviso: a instituição corria o risco de ser atirada para o bail-in, ou seja, o resgate por meios internos, recurso aos accionistas, obrigacionistas e depositantes com mais de 100 mil euros. 

A missiva foi enviada a 12 de Novembro de 2015, ainda antes da posse do actual Governo, pelo número dois da Direcção-Geral de Concorrência Europeia (DGCom), Gert Jan Koopman, com destino à ex-secretária de Estado das Finanças Isabel Castelo Branco e ao vice-governador do Banco de Portugal José Ramalho. E com conhecimento do director-geral do Banco Central Europeu (BCE), Ramón Quintana. “Como todos sabem, a DGCom continua a ter sérias dúvidas acerca de viabilidade do Banif”, pelo que mantém reservas a uma nova ajuda estatal. E pede que lhe sejam entregues até à primeira semana de Dezembro soluções credíveis, até porque, “e como bem sabem, em 2016 entra em funcionamento” o mecanismo do bail-in.

O ultimato era claro. O responsável europeu lembrava aos destinatários da sua carta que havia outro problema em jogo, bem mais relevante: o Novo Banco. Este estava num impasse, depois de a primeira tentativa de venda ter falhado em Setembro.

Os contactos decorrem num contexto de tensão entre a administração da instituição financeira liderada por Jorge Tomé e os técnicos da DGCom que, ao contrário da opinião do BCE, sempre consideraram o Banif inviável. Um braço-de-ferro que se prolongou por três anos e se acentuou quando, a 31 de Dezembro de 2014, o banco não conseguiu pagar ao Estado os 125 milhões da última tranche do empréstimo, entrando em incumprimento. A situação levou a DGCom a abrir uma investigação profunda ao Banif, pela decisão de injectar fundos no valor de 1100 milhões de euros.

Gert Koopman, que se dirige à secretária de Estado e ao vice-governador de modo muito informal, com um “dear José, dear Isabel”, evocava um encontro “ao mais alto nível” que estivera agendado para aquela semana de Novembro para tratar do Banif, e que fora cancelado. Para este responsável, o adiamento da reunião suscitava “sérias preocupações sobre o calendário para algum tipo de ajuda estatal” ao Banif, e ao Novo Banco, que tivesse de receber luz verde de Bruxelas.

Nas semanas seguintes, a iniciativa da DGCom seria acompanhada de outras pressões, que se acentuaram à medida que se aproximava o início das férias de Natal dos funcionários europeus, como consta da leitura da documentação que chegou há dias à comissão parlamentar de inquérito dedicada à intervenção e resolução do Banif.  

Críticas de Costa a Tomé

Antes, a 12 de Dezembro de 2015, já Carlos Costa fizera chegar a Mário Centeno e à comissária da Concorrência, Margrethe Vestager, uma carta que sela, praticamente, o destino do Banif. Aqui, há uma curiosidade: o ministro português teve de ler a informação em inglês.

Nessa carta, que é também subscrita pelo vice de Carlos Costa (e responsável pelo Fundo de Resolução) José Ramalho, e por António Varela (representante do Estado na administração do Banif e que integrava o conselho de administração do BdP), o regulador deixa claro que “não vê alternativa que não aplicar uma medida de resolução” caso falhe a venda voluntária do banco e a Comissão decida que a ajuda do Estado foi ilegal. 

A resolução, explica Carlos Costa, visa “salvaguardar a estabilidade financeira e minimizar os custos para os depositantes”. Dada a situação, prossegue o governador, o único mecanismo alternativo seria a retirada de licença ao Banif, que teria como consequência a “liquidação”. Porém, o fecho do banco acarretaria “elevados custos para o sistema financeiro”, o que, repete o regulador, tornava a resolução na “única solução que salvaguarda a estabilidade financeira”.

Há exactamente três anos, Carlos Costa pensava exactamente o contrário. Nessa altura, o Banco de Portugal recusava a resolução do Banif, em nome da mesma “estabilidade” do sistema financeiro, tendo proposto ao Governo uma injecção de capital público de 1400 milhões. Apesar da “surpresa” de Vítor Gaspar perante essa posição, o Governo da altura acabou por recapitalizar o banco com 1100 milhões.

A saída dos depósitos

Na carta de 12 de Dezembro de 2015, o governador salienta os principais problemas do banco e faz referência a uma “redução diária de fundos”, ou seja, a uma fuga de depósitos, ainda antes de surgir a notícia da TVI que tem sido apontada como causadora de uma vaga de levantamentos de dinheiro dos depositantes. A notícia, que surgiu num rodapé do canal TVI 24 no domingo 13 de Dezembro à noite, avançava que o Banif podia vir a ser “intervencionado” na semana seguinte. Mas a carta, enviada pelo Banco de Portugal para o Governo e para a Comissão, de dia 12, a véspera, já refere que o Banif “enfrenta restrições de liquidez tais que, num curto período de tempo, pode pôr em risco o normal fluxo de pagamentos”.

António Varela classificou a notícia da estação como “criminosa”, por ter acelerado a fuga de depósitos, mas aparentemente o alegado “crime” já estava a acontecer antes da notícia. E era do conhecimento das autoridades, mesmo que a outro ritmo.

Também relevante é a forma como o Banco de Portugal acusa a gestão do Banif de “inabilidade para implementar medidas correctivas” para resolver a “posição debilitada de capital” do banco.

O Banco de Portugal não esteve disponível para responder às questões do PÚBLICO, durante dois dias.

Quatro dias depois da carta em questão, Carlos Costa participou na reunião do Conselho de Governadores do BCE que tomou a decisão de suspender o estatuto de contraparte do Banif. Mas por alguma razão que só o Banco de Portugal, o BCE e o Governo poderão esclarecer, a suspensão foi interpretada como perda definitiva. Isso e o "ultimato" da DGCom para fechar o assunto até final do ano, com a ameaça de envolver alguns depositantes, deram origem a uma perda nas contas públicas que pode chegar aos três mil milhões de euros.

Um valor suficientemente alto para justificar algum rigor formal por parte das autoridades. Até ao momento, todas as audições realizadas na comissão de inquérito ao Banif permitem concluir que a acção das autoridades europeias não ajudou a encontrar uma solução menos onerosa para os contribuintes portugueses. Jorge Tomé, Luís Amado e António Varela coincidem, apesar de todas as diferenças e divergências que têm, noutro ponto: a forma como decorreu a resolução permitiu ao Santander adquirir o Banif com menores custos (pagou 150 milhões).

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