Portugal importa 30 por cento dos alimentos por produzir poucos cereais

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A queda da produção de cereal é compensada pelos hortofrutícolas Pedro Cunha/ arquivo

No dia 28 de Janeiro deste ano, o agrónomo e ex-ministro da Agricultura Armando Sevinate Pinto foi ao supermercado e, na banca da fruta e dos legumes, tomou nota da globalização.

Lá estavam morangos ou mamão do Brasil, cogumelos da Holanda, espargos do Peru, beringelas da Espanha, nêsperas da Guatemala, amoras do México, mirtilos do Chile, romãs da Turquia ou pimentos do Uganda. Sim, também havia maçãs e pêras de Portugal, mas esta "babel" hortofrutícola que se encontra nas grandes superfícies está na origem daquilo que o também ex-ministro Gomes da Silva designa por "mito urbano". De acordo com esse "mito", Portugal deixou de ter agricultura, importa tudo o que produz, abandonou terras, estoirou as ajudas europeias na compra de jipes ou de casas em Cascais e é hoje um sector marginal e incapaz de ajudar o país a sair da crise.

Verdade? Nem tanto. A agricultura nacional nunca foi capaz de garantir abastança. Todos os anos, o país tem de importar quase um terço das suas necessidades alimentares, uma factura que, em 2009, quase dava para construir o novo aeroporto de Lisboa (a diferença entre o que exportou e o que importou rondou os 4000 milhões de euros). Mas, feito o registo, será que, como se ouve dizer com frequência, a dependência externa se agravou? Não agravou. Mais: se a produção global estagnou e a necessidade de importar comida se manteve foi principalmente por causa da redução brutal da área e da produção de cereais. Sem essa redução, o sector agrícola não seria hoje visto como um patinho feio da economia, mas talvez como um herói da competitividade nacional.

Uma questão recorrente

O problema dos cereais é velho de 200 anos. O facto de ser a base da alimentação humana confere-lhe sensibilidade política e todos os governos desde o liberalismo tentaram o mito do auto-abastecimento - a "Campanha do Trigo" de Salazar, lançada em 1929, destacou-se tanto pelo fracasso dos seus fins como pelos danos ambientais que causou. Quando os preços no mercado mundial atingiram um pico em 2008 e voltaram a subir em Junho de 2010, esperava-se que os agricultores reagissem. Nem isso. Em 1990, por exemplo, dedicaram cerca de 424 mil hectares (um hectare é equivalente à área de um campo de futebol) à cultura de trigo e do milho; mas, em 2009, essa área estava já reduzida a 157 mil hectares. Em termos de produção, as quantidades reduziram-se para um terço. E o país tem de comprar lá fora 75 por cento dos cereais que consome.

Para a maioria dos especialistas, as condições do solo e do clima impedem grandes ambições. "Não tenhamos ilusões a esse respeito", diz Arlindo Cunha, doutorado em Economia Agrária e ex-ministro da Agricultura. Francisco Avillez, professor universitário jubilado, acredita que as novas áreas de regadio que estão a nascer no Alqueva podem aumentar áreas de produção, mas sem grande impacte nas contas gerais da cultura. António Serrano, ministro da Agricultura, admite que a produção se eleve, mas dificilmente poderemos produzir mais de um terço dos grãos do que consumimos.

O factor PAC

Esta convicção alargada depende, em última instância, de um factor principal: a Política Agrícola Comum (PAC). Sem terem de semear para receber subsídios, muitos agricultores constataram que entre o que investiam e recebiam na colheita não era compensador; daí ao abandono de terras mais pobres foi um passo.

Mas se é evidente que há uma crise grave nos cereais, nas outras culturas a situação é mais favorável. A agricultura foi capaz de se adaptar aos mercados e aproveitar a sua feição mediterrânica para suprir as perdas. Se é verdade que, medido em preços correntes (não actualizados pela inflação), o valor da produção de cereais caiu de 343 milhões de euros em 1986 para 155 milhões em 2009, os hortícolas aumentaram de 371 para 1094 milhões, as frutas de 586 para 1082 milhões, o azeite de 590 mil euros para oito milhões e o vinho de 342 para 678 milhões de euros. Ou seja, hoje, o sector hortofrutícola, no qual o país tem vantagens comparativas (é, por exemplo, capaz de produzir legumes dois meses antes dos holandeses ou belgas), já representa um terço do valor final da produção da agricultura.

O mesmo com menos terra

E este desempenho que contraria os "mitos urbanos" torna-se ainda mais notável se considerarmos que a área agrícola é hoje muito menor. E que é trabalhada por quase metade das pessoas que a cultivavam em 1986. Gomes da Silva nota que o desaparecimento de explorações foi mais veloz que a redução da área utilizada, o que triplicou a área média das propriedades e reforçou a sua competitividade. Regra geral, os agrónomos dizem que as terras abandonadas eram "pobres" ou "marginais", incapazes por isso de sustentar uma produção agrícola moderna. Francisco Avillez chama também a atenção para o facto de, em muitos casos, não se poder falar de "abandono de terras", mas da sua "extensificação". Por exemplo, quando um agricultor deixa de semear batatas e passa a cultivar forragens para alimentação de bois e vacas. Armando Sevinate Pinto, que foi alto-funcionário da Comissão Europeia e ministro da Agricultura com Durão Barroso, vai no mesmo sentido e diz: "Não conheço um único hectare de terra boa que esteja fora de produção".

Redução persiste

Há quem não partilhe o optimismo. Em causa, receia o ministro da Agricultura, pode estar já o abandono de áreas agrícolas boas. Os dados estatísticos parecem dar-lhe razão, ao revelarem que a redução da área agrícola persistiu na década passada, quando, entre 2003 e 2007, desapareceram 30,6 por cento das explorações (a maior razia na UE a 27) e sete por cento das terras agrícolas (pior só na Roménia e na Eslováquia, enquanto em Espanha a ocupação agrícola cresceu 1,6 por cento no período).

Se é verdade que a produção agrícola, em valor bruto de produção, estagnou, mas não caiu, ao contrário do que é ideia corrente, pode acreditar-se que o sector "tem margem para reduzir a dependência externa de alimentos", diz António Serrano. "Se nos deixarmos de apostas erráticas, podemos aumentar as exportações em 15 por cento e reduzir as importações em 25 por cento", diz Sevinate Pinto. "Temos de organizar os sectores e seguir os bons exemplos, como o das frutas e legumes", considera António Serrano.

Ainda assim, todas as expectativas, todas as projecções se baseiam na crença de que se manterá um nível de protecção do sector no âmbito da PAC, que, além de ter canalizado para Portugal no último ano cerca de 800 milhões de euros em ajudas ao rendimento, mantém uma protecção alfandegária contra a concorrência externa. Se, como lembra Francisco Avillez, a pecuária nacional tiver de concorrer com a da Argentina ou do Brasil, se os cereais se abrirem à máquina produtiva dos Estados Unidos, então pouco haverá a fazer.

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