Pequeno contributo para esclarecimento do caso Altice

Por fim, o Governo também é actor desta peça. Um actor algo inesperado, diga-se, porque se trata de uma empresa privada, na qual o Estado não detém já qualquer participação.

O mecanismo jurídico da transmissão de estabelecimento tal como previsto na actual legislação coloca uma série de questões de difícil resolução a todos quantos são chamados a lidar com o tema: às empresas que dele querem lançar mão, aos trabalhadores por ele afectados e, finalmente, ao intérprete ou julgador quando se depara com uma situação concreta. De facto, são diversas as questões jurídicas que se colocam nesses casos: qual o real sentido de “empresa”, “estabelecimento”, “unidade económica” ou “parte de empresa ou estabelecimento”? Qual o sentido de “transmissão, por qualquer título, da titularidade” de qualquer das realidades atrás mencionadas? Sobre todos estes temas, existe profusa doutrina e, também, jurisprudência resultante de decisões dos nossos tribunais.

Não cabe, no entanto, analisar o que diz uma ou outra. O que importa é tentar perceber se o que está actualmente a acontecer na Altice (assim se designando todas as empresas do ex-universo PT) é anormal face ao que acontece diariamente em empresas espalhadas pelo país e se fere ou não a legislação em vigor.

Ponto prévio: existe uma questão moral por detrás das opções tomadas pela Altice que não interfere na presente análise, embora seja importante, determinante, até, deixando-se, no entanto, o tema para outro momento. Declaração de interesses: o signatário assessorou diversos quadros da Altice no processo de transição da ex-PT.

Existem três actores nesta peça: Altice, trabalhadores e Governo. A primeira tem tomado decisões agressivas, por vezes até ilegais atento o quadro normativo em vigor. Fá-lo na convicção de que: (i) parte dos trabalhadores não irá actuar judicialmente contra a empresa; (ii) parte dos que a demandarem chegarão a acordo judicial, sem qualquer condenação daquela; (iii) quando não for possível o acordo, existe a bem conhecida aleatoriedade das decisões judiciais, o que, no final, até poderá traduzir-se por decisões favoráveis à empresa; e (iv) finalmente, num pequeno grupo de casos, existirá condenação da Altice, tal resultando numa condenação em valor muito inferior ao risco inicial. Como se vê, esta empresa, como tantas outras, sabe bem que, desde o início do processo até ao respectivo fim, existe um efeito “peneira” que não deve ser desprezado. Diga-se que esta actuação da Altice não é única e, quem lida com empresas, sabe perfeitamente que todos os referidos itens integram a chamada gestão de risco. Não existe, pois, uma especial perniciosidade da Altice nesse aspecto. No caso específico da transmissão de estabelecimento, a empresa, tanto quanto é público, embora com algumas alegadas irregularidades, tem agido grosso modo dentro da lei. Foi, de resto, essa a conclusão preliminar da ACT que foi tornada pública. Já saber se a decisão de transmissão se integra numa estratégia de, a prazo, despedir os trabalhadores transferidos é um outro tema. Na verdade – uma vez mais, sem fazer juízos de valor sobre o caso concreto –, a lei não impede que o empregador que constituiu uma empresa para onde transferiu parte da sua força de trabalho, venha a encerrá-la num futuro mais ou menos próximo. Repare-se bem que, num qualquer contexto hipotético, uma situação dessas pode suceder, seja porque, por exemplo, o negócio correu mal, seja porque não se concretizaram determinadas expectativas, sem que daí decorra qualquer fraude à lei. O problema não está, assim, na decisão em si, mas na intenção da mesma: tem a Altice a intenção real de despedir os trabalhadores agora transferidos, findo um certo período de tempo após a transferência? Em resumo, saber se existe ou não fraude à lei. Ora, a resposta a essa pergunta não decorre directamente da lei nem da interpretação que à mesma possa ser dada, sendo esse o motivo pelo qual a ACT a remeteu, e bem, para os tribunais, escusando-se a emitir opinião.

Por outro lado, existem os trabalhadores que são, como sempre acontece nestes casos, meros destinatários das decisões dos seus empregadores. Quanto a eles, diga-se desde logo que não parece legítimo tentar impedir ou condicionar uma decisão estratégica empresarial com base numa alegada eternidade dos contratos de trabalho. É, de resto, precisamente porque o legislador entende que essa eternidade não existe que criou mecanismos como o despedimento colectivo ou a extinção de postos de trabalho, através dos quais se visa pôr termo a contratos de trabalho por motivos de ordem objectiva relacionados com vicissitudes empresariais. Porém, isso não significa que não devam ser salvaguardados, até ao limite, todos os direitos dos trabalhadores, os quais podem consistir em meras indemnizações pela cessação lícita do vínculo laboral, ou em indemnizações agravadas devidas a uma cessação ilegal e, por isso, ilegítima. Mas essa análise, que é técnica e obedece à produção de prova, compete, em última instância, aos tribunais do trabalho e não aos intervenientes ou aos comentadores de serviço que vão dando a sua opinião à laia de comentários objectivos e imparciais. Efectivamente, só os tribunais poderão julgar se, em face das circunstâncias concretas de cada caso (i.e. perante as provas produzidas), houve ou não ilegitimidade na decisão da empresa ao lançar mão do mecanismo da transmissão de estabelecimento.

Por fim, o Governo também é actor desta peça. Um actor algo inesperado, diga-se, porque se trata de uma empresa privada, na qual o Estado não detém já qualquer participação. Em todo o caso, estas altercações em torno da Altice têm levado o Governo e os partidos da oposição a pronunciar-se, tendo sido mesmo noticiado que o primeiro pondera alterar o regime legal da transmissão de estabelecimento. Ora, isso pode levantar diversas questões que, mais do que simplificar a situação, podem agravá-la de sobremaneira. Em primeiro lugar, é pacífico na comunidade jurídica e aprende-se no primeiro ano de qualquer faculdade de Direito que não devem existir leis-medida, ou seja, alterações legislativas feitas por causa de uma situação concreta. Isto tem uma razão evidente: devendo a lei ser geral e abstracta, o que num determinado caso poderá parecer justo pode tornar-se rapidamente injusto noutra circunstância qualquer. É por essa razão que a prudência manda que, quando existe uma turbulência relevante susceptível de impor uma alteração legislativa, o legislador deva deixar assentar a poeira para melhor poder ponderar sobre a decisão a tomar. Em segundo lugar, caso viesse a existir uma alteração ao regime da transmissão de estabelecimento, colocar-se-ia o problema da aplicação da lei no tempo. Partindo-se de mais um princípio jurídico estável – o da irretroactividade da lei –, seria necessário saber qual a lei aplicável ao caso: a do momento em que os actos foram praticados pelo(s) agente(s) (actual lei) ou a do tempo em que viessem a ser proferidas as decisões judiciais? Por último, a verdade é que, embora parecendo razoável que os trabalhadores transferidos gozem de uma espécie de imunidade durante um certo período de tempo posterior à transferência, impedindo-os, por exemplo, de ser despedidos (que é o que tem sido aventado como principal alteração à lei), essa solução poderia ser perniciosa porque, sem mais, desconsideraria todas as situações em que os empregadores tivessem agido de boa-fé, não tendo, por razões absolutamente legítimas, conseguido manter a decisão de transferência oportunamente tomada. Pergunta-se, assim, se, nesses casos, o ónus deveria impender sobre os empregadores. Crê-se que não.

Em resumo, a situação em apreço deveria obrigar todos os principais intervenientes a recuarem um passo em vez de quererem falar ao mesmo tempo. Existem, sem a mais pequena dúvida, diversas questões complexas a resolver – e, desde logo, a da legitimidade das decisões da Altice –, as quais, na falta de acordo, deverão ser resolvidas em sede própria, i.e., nos tribunais. Dizer isto parece um simples lugar-comum, mas, como todos os lugares-comuns, nele existe um fundo de verdade: num Estado de Direito onde mais senão nos tribunais deverão ser resolvidas as contendas quando as diversas partes em conflito não se entendem? A resposta parece óbvia e algo elementar, mas infelizmente está longe de o ser.

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