Para quando a accountability pública em Portugal?

Accountabiltity é um termo da língua inglesa, sem que na língua portuguesa se consiga encontrar uma tradução que abarque a totalidade do seu amplo significado apenas numa única palavra. Um dos seus significados é a obrigação de quem ocupa um determinado cargo, preste contas de forma fidedigna e principalmente responsável, quer no âmbito público quer no âmbito privado. A prestação de contas passa assim a ser vista de uma forma transparente e confiável, bem como um ícone para a boa governação, tanto no setor público como no setor privado.

Estamos assim, perante situações que podem ser mensuradas, calculadas e, por conseguinte, ser alvo de avaliação, quer em termos quantitativos quer em termos qualitativos. É pois, possível e desejável premiar ou penalizar o desempenho, caso este seja o mais adequado ou inadequado.

Para o caso do setor público, um dos autores de referência na literatura de ciência política (Guillermo O`Donnell), estabelece uma diferenciação espacial entre accountability vertical e accountability horizontal. A distinção entre ambas reside no facto de quem efetua o monitoramento, o acompanhamento e a fiscalização dos governantes e representantes (1) dos cidadãos.

No tocante à accountability horizontal, cabe aos decisores políticos e ao próprio setor público estabelecer esses procedimentos. Quanto à accountability vertical, o monitoramento, o acompanhamento e fiscalização recai um pouco em cada um de nós, ou seja, sobre os cidadãos e também sobre a imprensa independente. Somos todos e cada um de nós, os responsáveis por estabelecer formas de controlo ascendente sobre os governantes e sobre os nossos representantes. Sobre os recursos públicos que são confiados para gerir, devem ser prestadas contas e escrutinados os desempenhos. Pessoalmente não concordo com esta divisão, pelo simples facto de ser muito redutora. De fora ficam outros tipos importantes de controlos, como sejam entre outros os controlos judiciais e o legislativo.

No tocante à imprensa independente, espera-se que esta pelo menos estimule a sociedade a refletir sobre os comportamentos dos governantes e representantes, bem como contribuir para o ampliar da forma como estes efetuam a prestação de contas públicas, quer de uma maneira formal, quer informal. A correta informação ajuda a formar consciências e torna a mudança de comportamentos e de atitudes mais fácil de implementar.

Mais tarde surgiu o conceito de accountability diagonal, que se refere ao controlo sobre os governantes e representantes levado a cabo por terceiros, dentro das próprias instituições do estado, não ligados hierarquicamente ao visado, mas com poderes de inspeção e de audição.

A accountability pública refere-se a questões do domínio público, como a utilização de fundos públicos, o exercício da autoridade pública ou a gestão de instituições públicas, bem como a atenção prestada ao potencial abuso de poder. Estende-se ainda a organismos privados que exercem prerrogativas públicas ou recebem financiamento público. Estamos, portanto, a falar de um leque alargado de organizações e de pessoas, a quem deve ser exigida a obrigação de explicar e justificar a sua conduta, sendo que muitos deles nem estão sujeitos aos controlos previstos por eleições democráticas.

As funções públicas devem ser desempenhadas atendendo aos recursos utilizados, à legislação, regulamentos, políticas, estratégias e diretrizes, cuja observância é imperativa. Responsabilidade pública implica, portanto, ser responsabilizado ou elogiado em público. Existem países que procuram levar a accountability pública tão a sério que inclusivamente disponibilizam aos seus cidadãos licenciaturas nestas matérias.

Importante é, o facto de que cada vez mais os cidadãos portugueses estão conscientes que devem controlar e fiscalizar as ações dos seus representantes e governantes. Mas o grau dessa consciencialização ainda é baixo, logo existe um longo caminho a percorrer.

Quando os cidadãos são informados, podem agir para louvar, condenar, alterar ou mesmo interromper as intenções dos governantes e representantes. Os cidadãos usufruem de um controlo suplementar sobre os assuntos que os afetam.

Como muitas vezes na realidade o que deveria ser não o é, existem exemplos de mobilizações de cidadãos, que efetuam o percurso contrário, ou seja, em vez de esperarem pelas iniciativas dos governantes em prestar uma transparente accountability pública, vão eles à sua procura. É caso para dizer que se “Maomé não vai à montanha a montanha vai ter com Maomé”.

Nos EUA (apenas para citar um exemplo entre muitos) surgiu uma importante iniciativa que partiu dos cidadãos. Designa-se por “Public accountability iniciative”. Trata-se de uma organização sem fins lucrativos, que vive de donativos da sociedade civil e que investiga as relações potencialmente promiscuas entre o governo do país, os governos dos diferentes estados e o setor empresarial, nomeadamente investigar a existência de quaisquer relações entre o poder e a corrupção.

Tudo começou com a construção de uma base de dados que agrega informações importantes, como relacionamento entre políticos, entre estes e empresários e financiadores das respetivas campanhas, informações sobre empregos anteriores dos funcionários nomeados para a Casa Branca, contratos governamentais, etc. Com esta iniciativa os cidadãos dos Estados Unidos, procuram investigar potenciais situações de corrupção, dado que mesmo naquele país não existe uma adequada cultura de accountability pública.

A accountability pública é essencial ao processo democrático, já que se traduz numa clara prestação de contas daqueles que exercem o poder. A errada ou inadequada utilização de fundos públicos deve forçosamente ser passível de responsabilização. Todo o processo de utilização de fundos públicos deve ser claro e transparente. A falta ou a insuficiência de transparência pode levar à corrupção e esta sem sombra de dúvidas mina as bases da democracia.

Uma adequada accountability pública pode ajudar a garantir que a legitimidade dos governantes permaneça intacta ou até mesmo reforçar essa legitimidade. Os governantes e os nossos representantes deveriam ser os primeiros interessados neste sistema, já que teriam a oportunidade de explicar e justificar as suas intenções e opções, promovendo a confiança e a aceitação da sua autoridade por parte dos cidadãos.

Nas últimas duas décadas, numerosos investigadores académicos provenientes de diversas ciências socias debruçam-se sobre este tema, chegando à conclusão de que em muitos países existe um claro deficit de accountability pública, havendo ainda muito a fazer para colmatar estas lacunas.

Mas para quando é que em Portugal, os cidadãos saberão que os recursos públicos estão a ser bem geridos e as utilizações indevidas sancionadas? Por este andar nunca. Penso que para bem de todos valerá a pena pensarmos nisto.

Associado do OBEGEF – Observatório de Economia e Gestão de Fraude

 

(1) Como representantes consideramos todos aqueles que não sendo formalmente governantes, tratam de questões de domínio público e com acesso a fundos públicos.

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