Os "cucos" da tecnologia vão mudar a nossa relação com a banca

É preciso reinventar o modelo de negócio da banca tradicional, diz o fundador do Saxo Bank. A convergência para os telemóveis dará o empurrão a quem resistir.

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Nuno Ferreira Santos

Kim Fournais, fundador do Saxo Bank, era o último orador da manhã no ciclo de conferências que a Web Summit dedica ao futuro dos serviços financeiros. Foi o único banqueiro a sério no palco, mas nem por isso fugiu ao tema preferido dos diferentes oradores – dar pancada na banca tradicional. Quem esperava um dinamarquês à defesa, acabou por se surpreender com um empreendedor de longa data a jogar ao ataque. “A banca tradicional tem de mudar. Todo o modelo [de negócio] precisa de ser repensado; 99% dos bancos fazem tudo igual, baseados numa máquina que é antiga” – e isto não serve ao mundo que nasceu depois da crise bancária mundial de 2007 e 2008.

As críticas à banca tradicional são conhecidas. Quem é cliente sabe de cor, mas Mike Laven, fundador da Currencycloud tinha feito questão de recordar os pecados da indústria financeira aos presentes na FIL – onde nesta terça-feira arrancou o primeiro dia da Web Summit 2016, em Lisboa): falta de transparência na informação aos clientes; estruturas e processos pesados que atrasam a prestação de serviços; e falta de vontade ou até incapacidade para inovar.

O co-fundador do Saxo Bank percebeu as mensagens que durante toda a manhã foram sendo passadas por diferentes oradores. E respondeu-lhes sem hesitar, até porque lidera um banco relativamente recente (25 anos de história), pequeno (sediado na Dinamarca) e que nasceu precisamente da vontade de inovar, lançando uma plataforma electrónica de gestão do negócio que se provou ser acertada no seu tempo. Mas esse tempo é passado e a sociedade de hoje precisa de novas respostas, advertiu.

“O crash de 2008 acelerou a necessidade de mudança que as pessoas já sentiam em relação às instituições a quem confiaram o seu dinheiro”, vincou Kim Fournais. Ou seja, o problema bancário já existia antes, mas a banca tradicional foi resistindo. Porém, oito anos volvidos, é impossível continuar a fazer como a avestruz e meter a cabeça na areia, e as muitas empresas fintech (serviços de tecnologia financeira) que nasceram entretanto ou estão agora a lançar-se acabarão tomar o lugar daqueles que não se adaptarem. Estas startups farão à banca tradicional aquilo que os cucos fazem para ter filhos: põem os seus ovos dentro de ninhos alheios e acabam por substituir o incumbente.

Exemplos não faltam nesta Web Summit. Tem uma empresa e precisa de crédito para financiar o seu fundo de maneio? Fale com a Kabbage. A sua empresa precisa de pagar a produtores e fornecedores de forma expedita e mais barata do que o sector tradicional? A Payoneer quer falar consigo. É apenas um cidadão que não consegue ter um cartão de crédito ou um empréstimo? Fale com uma das muitas plataformas digitais de P2P lending.

Smartphone, território privado

A verdade é que o sector tradicional não dorme – ou nem todos, pelo menos. Um terço da força laboral do Goldman Sachs são engenheiros, salienta Mattias Ljungman, que fundou há uma década uma empresa que trabalha com esse gigante do sector tradicional. O mesmo Goldman Sachs fez, aliás, avultados investimentos na aquisição de empresas fintech nos últimos meses, como o confirma qualquer pesquisa no Google. Porquê? Porque a tecnologia está a mudar a relação da sociedade com o dinheiro. E a existência da bitcoin ou qualquer outra moeda digital é apenas a ponta do icebergue.

Para ir ao fundo da questão, Yuval Tal, da Payoneer – que processa pagamentos entre empresas de diferentes geografias de uma forma mais rápida e sem os custos associados à banca tradicional – propôs à plateia uma breve reflexão: “Imaginem que vos peço que entreguem o vosso telemóvel a um amigo ou conhecido. Quantos de vocês autorizariam que ele ou ela verificasse o que têm guardado no vosso smartphone? Provavelmente ninguém. E porquê? Porque o telemóvel é hoje o que temos de mais privado nas nossas vidas. E por isso acho que a banca já percebeu que, por exemplo, fazer parcerias com as empresas de telecomunicações – que são quem nos vende o equipamento e o serviço – pode ser uma saída, um caminho para o futuro da indústria”.

Para os muitos empreendedores na plateia, estava ali uma palavra de conforto: não desistam, se a vida não parece fácil, porque mais cedo ou mais tarde, todos os bancos transformarão o seu modelo de negócio. Mesmo que, como dizia Mike Laven, os bancos só usem a palavra colaboração “quando estão a perder” – e por isso mesmo Mike era um dos cépticos sobre a possibilidade de empresas inovadoras virem salvar a banca tradicional –, a banca “não consegue fazer esta mudança sozinha e por isso terão de recorrer a startups”.

Opinião diferente tem Claire Calmejane, directora de Inovação do Lloyds, uma das maiores instituições financeiras do Reino Unido. Para esta responsável, a inovação virá de dentro – as startups serão catalisadoras mas competirá às próprias instituições adaptarem-se a um mundo que está a convergir para as plataformas móveis, sobretudo smartphones.

Fatia a fatia

Globalmente, o sector fintech representa ainda muito pouco do negócio. Em 2016 terá receitas de 3600 milhões de dólares, segundo números avançados na conferência de abertura dedicada a este tema. Pelo contrário, a banca tradicional tem receitas anuais que se descrevem em biliões. Ainda assim, “há muita coisa a acontecer ao mesmo tempo”, destacou Mattias Ljungmann, cuja empresa, a Atomic, se tem concentrado agora na venda de seguros.

Afinal, a banca não é a única indústria incumbente; os seguros são outro exemplo – e em Portugal, quem tem carro e um seguro obrigatório acabou de saber que a declaração amigável de acidentes em papel será substituída em breve por uma aplicação móvel. Outro sinal da convergência? Neste mesmo dia fica-se a saber que em breve se poderá levantar dinheiro numa caixa multibanco sem cartão de débito.

Para Samir Desai, fundador da plataforma Funding Circle, que gere um sistema de empréstimos P2P (peer-to-peer) em que pessoas emprestam dinheiro a pessoas, sem recurso a bancos, o sistema regulatório actual não permite substituir totalmente a banca, pelo menos no curto ou médio prazo.

Porém, como refere Brett Meyers, que fundou e preside a outra plataforma do género, a CurrencyFair, o mundo exige cada vez mais celeridade, eficiência e transparência. “Quando faço uma chamada, posso saber imediatamente quanto me custou. A mesma facilidade não existe quando faço uma transacção bancária”, exemplifica. Como reagir a isto? O banqueiro do Saxo Bank, que emprega hoje em dia 500 developers, falou em nome próprio, mas não deve ter deixado dúvidas a quem o ouviu: ou a banca muda ou morre. Até porque, como resumiu Edward Robinson, jornalista da Bloomberg – que cobre a área fintech a partir de um dos locais mais dinâmicos neste sector –, a banca, os seguros e todo o sector financeiro eram edifícios verticais que agora estão a perder pisos ou, noutra metáfora usada, são como um emaranhado de esparguete que está a perder a sua massa para empresas que surgem para fazer o mesmo, de forma mais eficiente e adequada à sociedade digital.

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