Leite dos Açores tem um novo ingrediente: o turismo

Dos produtores, à indústria, passando pela grande distribuição, todos olham para o primeiro leite de pastagem, lançado esta semana, como a oportunidade para dar novo fôlego a um mercado quebrado pelos preços baixos e produtos indiferenciados.

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Paulo Pimenta

Em São Miguel, o brinde foi feito com copos de leite e ao som de um hino às vacas felizes, que vivem numa “ilha feliz”. A melodia e o ritmo entram no ouvido à medida que um grupo de alunos do Conservatório Regional de Ponta Delgada canta o jingle do novo leite de pastagem Terra Nostra, arrecadando palmas entusiásticas no final da actuação. Depois de um ano e meio de investimentos, este leite produzido pela francesa Bel saltou para as prateleiras dos supermercados, vendido como um produto especial, inédito em Portugal, em que o cuidado com o bem estar-animal dita as regras. O programa “Leite de Vacas Felizes” certificou 34 produtores entre os 450 que abastecem regularmente a fábrica da empresa na Ribeira Grande e chegou numa altura de crise na produção, fim das quotas leiteiras, preços baixos e uma crescente desconfiança do consumidor, cada vez mais preocupado com o que come.

Os Açores produzem 30% do leite nacional e são a única região da Europa onde é possível ter os animais ao ar livre 365 dias por ano, alimentados de pastagem natural. Contudo, são poucos os consumidores que conhecem essa característica da indústria regional que, por sua vez, tarda em conseguir promover e valorizar o seu leite. Nas lojas, os preços não estão muito longe dos do continente (há diferenças de seis cêntimos, por exemplo) e com a influência das promoções o leite dos Açores chega a ser mais barato do que o da marca líder de mercado.

“Nos últimos anos, o leite dos Açores ficou um pouco conotado com preço baixo. A indústria, sobretudo a cooperativa, não conseguiu fugir desse paradigma. Foi apanhada num processo complexo e, estando a produção limitada a queijo que também é conotado com uma commodity (como o flamengo e as suas variantes) e a leite sem valor acrescentado visível para o consumidor e com elevados volumes de produção, caiu no ciclo vicioso do preço”, explica Paulo Costa Leite, director-geral da Associação Nacional dos Industriais de Lacticínios (ANIL).

À medida que a crise se agudizou, um novo vocabulário passou a ser usado por produtores, indústria, cadeias de supermercados e governos. Palavras como “valor acrescentado” e “diferenciação” são, agora, uma espécie de mantra repetido por todos.

Ana Cláudia Sá, a directora-geral da Bel que conseguiu convencer a empresa a fazer, nos Açores, o maior investimento de sempre da multinacional em Portugal – dez milhões de euros até 2018 –, recorda que apenas 20% do mercado é “de valor”, ou seja, constituído por leites enriquecidos e funcionais. “Cerca de 80% é indiferenciado, de baixo valor. É por isso que o preço ao consumidor é de, em média, 50 cêntimos, quando o dos leites enriquecidos ronda um euro”, continua, acrescentando que “não são os produtos de preço baixo que estão a crescer [em vendas] mas sim os de valor acrescentado”.

O programa “Leite de Vacas Felizes” deu origem a um produto diferente, recolhido diariamente a frio e embalado em menos de 24 horas na nova linha de produção da fábrica, distinta da que embala o leite convencional. Para já, saem das instalações 60 mil litros de leite por dia e a expectativa é conseguir 26 milhões de litros por ano. O consumidor ditará o aumento ou não da produção.

Paulo Costa Leite acredita que o leite de pastagem “será o novo paradigma para os Açores”. É produzido pelos produtores que cumprem mais de 200 requisitos e se submetem a auditorias constantes e acompanhamento quase personalizado, com infra-estruturas fiscalizadas. A produção, diz o director-geral da ANIL, passa a ser também responsável pelo produto final, ao contrário do que sucede com o leite “normal”, em que a relação com a indústria é de mera comercialização de matéria-prima. “O sucesso deste novo processo pode arrastar os restantes produtos derivados para o patamar superior”, acredita, ressalvando que nem todos terão capacidade financeira para investir num nicho de negócio semelhante.

Quando subiu ao palco durante o lançamento do novo produto, Jorge Rita, presidente da Federação Agrícola dos Açores, desdobrou-se em elogios ao projecto da Bel, que faz do “verde das pastagens” uma marca. O sector, garante, não tem os dias contados. Mais tarde, ao PÚBLICO, disse que a expectativa de retorno é grande “porque pode alavancar outros projectos na região e melhorar o rendimento” de quem produz. A Bel paga mais 10% por este leite aos seus fornecedores. “A indústria durante muitos anos esteve acomodada e adormecida, sem muito valor acrescentado. Acomodou-se ao preço que paga ao produtor, mas já todos percebemos que é preciso fazer diferente”, frisou.

Questionado sobre o número de produtores que serão capazes de cumprir regras mais exigentes e de fazer investimentos nas explorações, Jorge Rita desdramatiza. Não vão ficar muitos pelo caminho “porque há várias formas de produzir”. Uns terão leite convencional, outros, leite de maior qualidade, argumenta.

Eugénio Câmara, com 100 vacas leiteiras, foi dos primeiros a entrar no restrito grupo da Bel e também tem a “expectativa máxima”. “O programa é óptimo, só peca por tardio. Quando as coisas correm bem, não nos obrigamos a ir à procura de mais. Quando se enfrenta um retorno baixo, obrigamo-nos a responder”, elabora. Para conseguir produzir leite de maior qualidade não teve de fazer investimentos avultados porque, diz, “já tinha todas as infra-estruturas” e apostava em melhorias contínuas da exploração. Na prática fornece quase o mesmo leite, mas com mais fiscalizações e auditorias e melhor remuneração. “Criar mais-valias no produto lácteo era uma reivindicação dos produtores. Sentíamos que não se dava o valor merecido”, sustenta.  Se os portugueses não comprarem o novo leite, Eugénio Câmara acredita há todo um mercado à espera. “Na Europa há consumidores que o vão valorizar”, remata.

Ana Cláudia Sá admite que o produto tem “claramente vocação exportadora” e a Bel está a estudar potenciais destinos. “Quando começámos a estudar este produto percebemos que, por exemplo, nos Estados Unidos, o leite de pastagem está a crescer 20%. Faz sentido em Portugal, claro, mas pensamos que tem potencial para exportar. Na Irlanda os animais estão o Inverno todo fechado devido ao mau tempo. Só há um sítio na Europa onde as vacas estão 365 dias ao ar livre que é aqui, nos Açores”, descreve.

Ainda não estão definidos os destinos de exportação, mas a Bel quer aproveitar o aumento do turismo para colocar o leite dos Açores no mapa internacional. A chegada em Março do ano passado das companhias aéreas low cost a São Miguel fez aumentar o número de turistas no arquipélago – mais 59% de dormidas no primeiro trimestre - e o turismo pode ter um papel a desempenhar na promoção do leite. “A intenção é que a comunicação do leite de pastagem seja coincidente com a do Turismo dos Açores, com quem estamos a conversar. Sinceramente, acredito que o turismo pode ajudar a vender o leite de pastagem. Quem vem aqui, só pode depois consumir leite dos Açores”, defende.

O papel do turismo também não passou despercebido a Fernando Moniz de Sousa, director regional da Agricultura dos Açores. “É uma oportunidade para mostrar um pouco o que temos. Cabe a nós mostrar o que temos de melhor”, disse, lembrando que o Governo Regional criou um selo que distingue produtos alimentares e artesanato (a Marca Açores), com o qual quer promover a região.

Pedro Pimentel, director da Centromarca (Associação das Empresas de Marca), recorda que “durante muitos anos, os Açores foram uma região afastada”. A proximidade física “ajuda as pessoas a perceberem o que é a natureza e porque é que a produção pode ser diferente”. Com o turismo há uma dupla vantagem: os turistas consomem produtos locais durante a estadia e quando regressam a casa percebem que o que encontram na prateleira foi feito com “condições naturais e que, à partida, tem tudo para ser de qualidade”. O leite de “vacas felizes” é um regresso à base. O desafio, diz, é “transformar os Açores numa marca”. “Não é só produzir bem, é produzir aqui”.

No final, tudo se resume à escolha do consumidor perante um corredor de leite cada vez mais diversificado e complexo. A Associação Portuguesa das Empresas da Grande Distribuição (APED) defende que “é preciso acrescentar valor ao leite simples”, dar ao consumidor mais opções de escolha, numa altura em que crescem as vendas de bebidas alternativas. “É com gosto que vemos que a fileira do leite tem agentes que se desafiam e desafiam o mercado. São estas as respostas que é preciso dar”, diz Ana Isabel Trigo de Morais, directora-geral da APED.

Certo é que o leite de pastagem ainda é um pequeno nicho num mercado saturado e a enfrentar dificuldades. Ainda esta semana, o Governo Regional anunciou que 58 produtores dos Açores se candidataram a um programa de abandono da actividade criado com o objectivo de tirar do sector 200 agricultores, através de compensações financeiras. Segundo a Federação Agrícola dos Açores, dos 2700 produtores que existem no arquipélago cerca de metade estarão em situação de falência técnica.

O PÚBLICO viajou a convite da Bel

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