O periclitante IMI

As probabilidades de imprevistos são tão numerosas quanto politicamente explosivas: o que não é positivo num quadro económico como o actual, que exige o aproveitamento integral das expectativas ou da concórdia social para a reanimação nacional.

Nas vésperas da apresentação da Proposta de Orçamento do Estado (OE), o Governo anunciou a intenção de alterar a tributação do património com vista a um esforço fiscal mais justo através da introdução da progressividade no IMI. Significativamente, para lá da ideia da substituição de uma tributação prevista no Imposto do Selo, a divulgação da medida, tal como no acesso às contas bancárias, não foi acompanhada de informações concretas sobre o funcionamento do futuro imposto ou sobre a sua articulação com os outros impostos portugueses, em especial os do rendimento, como impõe uma perspectiva de sistema.

A história dos impostos confirma que a tributação do património, isto é, dos edifícios e terrenos, é a mais exigente no plano político ou no da execução administrativa. No plano político, porque se entranha na governação do país como nenhuma outra. Influencia as receitas da descentralização administrativa, ou seja, a capacidade de acção do poder local e por aí os serviços ou a gestão do território, incluindo a capacidade para atrair investidores, empresas não-poluentes ou espaços residenciais de qualidade e, bem entendido, os resultados eleitorais. Influencia, igualmente, as políticas de reanimação urbana ou de habitação social, em especial nos grupos socialmente ponderosos e, muito em especial, o custo de morada das famílias ou das empresas, incluindo o equilíbrio económico ou financeiro do mercado de arrendamento. No plano da execução administrativa, a identificação do valor dos imóveis ou a fiscalização das transacções envolve grande complexidade, incluindo tempo.

Tal caleidoscópio de interesses recomenda, por natureza, um percurso transparente, cauteloso e firme. Porém, o percurso já percorrido pelo Governo surpreende negativamente em quatro domínios cruciais num Estado de Direito democrático. O primeiro é o período de tempo proposto para concretizar uma vastíssima tarefa: “Num estalar de dedos: já está... Paguem” ... o que se auto-explica.

O segundo é que o debate está baseado em declarações políticas que se caracterizam por formulações tão genéricas como opacas. Disto é exemplo a “definição do valor global do património” (sic). E o como se apura o “património imobiliário global detido” (sic)? E a função social/económica a que o imóvel está afecto é irrelevante, por exemplo, afecto a casa de repouso, incubadora de empresas? Nada se sabe, posto que não existe um documento que identifique os elementos que permitam, a quem quer que seja, concluir se uma dada habitação, escritório, fábrica ou outra propriedade, arrendada ou não, vai sujeitar o seu proprietário a pagar mais ou menos imposto.

O terceiro é que não se explica como se vai operar em concreto a conexão com a tributação do rendimento que é progressiva, o que não deixa de impressionar dado que esta conexão é estrutural na arquitectura do sistema fiscal português. Inevitavelmente, surge a questão de saber como se vai articular a factura fiscal do património com a factura fiscal do rendimento e vice-versa, em especial nos casos de rendimentos baixos ou até médios mas com património imobiliário valioso que não gere rendimento... E, nos casos em que gera rendimento, se passar a ser detido por uma sociedade permite escapar à progressividade do IMI? O quarto domínio é a crónica transformação do OE em palco de mini reformas fiscais feitas sobre o joelho, o que é uma violação da razão de ser do processo orçamental e factor de instabilidade fiscal.

Outro plano de questões sem resposta respeita ao papel da tributação dos edifícios e terrenos no crescimento económico, em especial na capacidade de atrair e fixar investimento, ou da relação com a lei do arrendamento. Acresce que o impacto na economia, em especial na dinamização do investimento e do crescimento económico, não surge entre as ideais-chave do anúncio da medida o que surpreende dada a periclitante situação das contas públicas.

Devido a tudo o que mencionei afigura-se-me errado que este seja o modo adequado para efectivar uma tributação mais justa dos muito afluentes ou que esta medida tenha prioridade sobre um pacote fiscal para o crescimento e a criação de emprego. As probabilidades de imprevistos são tão numerosas quanto politicamente explosivas: o que não é positivo num quadro económico como o actual, que exige o aproveitamento integral das expectativas ou da concórdia social para a reanimação nacional. Na actual conjuntura acorrentada aos ditames de Bruxelas, à incerteza mundial, destinar três meses para acabar a tarefa, sem explicação prévia, pública e completa das questões nucleares como a do efeito no rendimento das famílias ou das empresas, deixa antecipar uma guinada com custos sociais muito duros que são de evitar a todo o custo.

Advogado, especialista em direito fiscal

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