O mundo virtual de Trump... e Mexia

A decisão de Trump em rasgar o Acordo de Paris e a notícia da investigação a Mexia ilustram a crescente promiscuidade entre negócios e política.

Que tem a ver a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris com a investigação judicial aos presidentes da EDP e EDP Renováveis (além de outros dois arguidos ligados à área da energia) anunciada anteontem? Apenas uma coincidência no tempo entre o acontecimento internacional mais relevante e a notícia mais inesperada da actualidade nacional na semana que passou. E, no entanto, apesar de uma coisa não ter rigorosamente nada a ver com a outra, há algo de estranhamente perturbador e simétrico entre elas.

Ambas ilustram, de facto, a crescente promiscuidade a que hoje assistimos entre o mundo político e o mundo dos negócios, com as suas bolhas tóxicas poluindo a atmosfera do senso comum e do interesse público. Ora, enquanto isso acontece, vai-se agravando a insensibilidade e o sentimento de impunidade dos que vivem nesse novo mundo virtual, avesso às evidências científicas, ao escrutínio democrático ou às regras de transparência que devem presidir ao funcionamento das sociedades civilizadas. E, nesse “admirável mundo novo”, o que prevalece é o salve-se quem puder.

A decisão de Trump sobre a saída do Acordo de Paris constitui não apenas uma perigosa regressão civilizacional, no que se refere à preservação do ambiente e do clima, como também uma grosseira estupidez que só aproveita — se aproveitar... —, no curtíssimo prazo, a interesses económicos já condenados pela evolução tecnológica global. Mas que seja a primeira potência do mundo a adoptar esse caminho acentua a natureza absolutamente irracional e suicidária do gesto de um Presidente centrado sobre a irrisória pequenez do seu umbigo.

As reacções veementes — e espera-se que consequentes — a essa irracionalidade, quer nos Estados Unidos quer a nível europeu e mundial, traduzem uma tomada de consciência dos riscos que Trump e o que ele representa fazem correr à América e ao planeta inteiro. Pode ser que a vacina Trump efectivamente funcione, mesmo que ele, depois desta jogada patética pela sobrevivência, consiga ainda escapar aos percalços políticos e judiciais que o espreitam, já nos próximos dias, devido às relações do seu círculo íntimo com a Rússia de Putin. 

António Mexia não é Trump — e parece óbvio que será alguém bem mais inteligente e avisado do que o actual Presidente americano —, mas a sua recente história político-empresarial aponta para uma soberba de comportamento que o tornaria inimputável face às regras legais e éticas vigentes. Isso explica a sua capacidade de navegação entre as águas difusas do consulado de Sócrates para assegurar as “rendas excessivas” do sector eléctrico nacional — resultando nos preços de electricidade mais altos da Europa — e garantir-lhe um estatuto de gestor não apenas principescamente pago como também com uma influência desmedida na sociedade, especialmente na área cultural. Ou seja, essas “rendas excessivas” negociadas por Mexia tornaram-se possíveis através das redes de influência que ele e outros investigados neste caso conseguiram movimentar junto do poder político, numa réplica patente do caso PT/BES. Nada de surpreendente, afinal, no Portugal marcado pelo selo socrático.

António Mexia soube argutamente resguardar-se dos custos da exposição política directa depois da sua passagem pelo fugaz Governo de Santana Lopes. Construiu habilmente o seu império energético sobre as areias movediças do chamado “sistema”, evitando chamuscar-se nas chamas das fidelidades políticas (como terá acontecido, aliás, com outros arguidos neste caso). É também isso que, para além da radical diferença de escala entre os Estados Unidos e Portugal, o diferencia de Trump.

Mas a curta diferença de um dia entre a decisão de Trump em rasgar o Acordo de Paris e a notícia da investigação a Mexia — e seus confrades na rede eléctrica — serve para lembrar como são evidentes as conexões perversas entre o mundo dos negócios e a política. Nada que não soubéssemos, afinal...  

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