O futuro do trabalho e o trabalho do futuro

A individualização das relações de trabalho expressa-se também na fixação dos salários.

Por ocasião da preparação do centenário da OIT, em 2019, o seu Diretor Geral lançou um desafio à escala mundial para a realização de um amplo debate sobre o futuro do trabalho.

Coincidindo com os 100 anos da criação do Ministério do Trabalho, que este ano se relembram, realiza-se hoje em Portugal uma conferência exactamente sobre o futuro do trabalho.

Portugal tem boas razões para desenvolver esta reflexão que, aliás, é já tardia.

O país vive um processo de mudança do seu padrão de especialização económico de enorme profundidade em virtude, principalmente, de uma rutura da natureza da inserção internacional da nossa economia. Em poucas décadas o modelo de integração da nossa economia no espaço internacional mudou radicalmente sob o impacto da integração Ibérica, da pertença à União Económica e Monetária e da exposição às dinâmicas da globalização.

Essa rutura reestruturou a especialização das nossas atividades, redesenhou a geografia do nosso comércio externo e a demografia das nossas empresas.

Mudanças que puseram ainda mais em evidência algumas das fragilidades de longo prazo, como o atraso educativo e de qualificações ou a escassez de fontes de financiamento para o investimento produtivo.

Por outro lado, todas as consequências que a crise financeira de 2008  desencadeou produziram um fortíssimo choque na nossa estrutura económica e de emprego, bem expresso no facto de hoje, apesar da recuperação já concretizada, termos menos meio milhão de empregos.

O mundo do trabalho no Portugal de hoje

Três fatores principais marcam o mundo do trabalho no Portugal de hoje.

Em primeiro lugar, a profunda e resistente dualização das relações laborais com diversas expressões: nos perfis de qualificação, nos níveis salariais, na estabilidade das carreiras profissionais.

Em segundo lugar, a crescente individualização das relações de trabalho expressa numa frágil efetividade da lei e numa desvalorização dos instrumentos de regulamentação de matriz negocial. Essa individualização, com uma história já longa, expressa-se em quase todas as áreas da relação laboral, da fixação dos salários efetivos até à organização do tempo de trabalho.

Em terceiro lugar, um importante peso e papel daquilo a que se tem vindo a chamar de “formas atípicas de trabalho”. De modelos mais formalizados, como o contrato a termo certo utilizado muito para além dos limites da lei, até à persistência de trabalho informal, são diversas e crescentemente criativas as prestações de trabalho que reforçam uma excessiva e perigosa segmentação do mercado de trabalho.

É precisamente esta realidade nacional, do ponto de vista económico, bem como do ponto de vista social e laboral, que está já hoje a defrontar o impacto daquela que alguns consideram ser a mais profunda transformação social desde a revolução industrial. Trata-se da mudança provocada pelo acelerar da revolução tecnológica digital e do seu impacto em áreas como a automação, a reorganização das cadeias de produção e a inovação nos modelos de comercialização e consumo.

Esta torrente de mudanças não é, naturalmente, alheia à nova fase da globalização e do reequilíbrio internacional do poder económico e financeiro.

São igualmente três as implicações que mais comummente se associam em matéria prospetiva a estas dinâmicas. Um profundo impacto nas competências profissionais que são exigidas para permitir às empresas manterem-se competitivas e ganhadoras em mercados abertos e exigentes; um elevado grau de flexibilidade e capacidade de adaptação das mesmas face à inovação permanente e ao encurtamento dos ciclos dos negócios; e uma melhoria da envolvente das empresas em matérias como o ensino e investigação, a capacidade de funcionamento em rede ou qualidade ambiental.

Como sempre acontece em épocas de mudança tecnológica mais intensa, não faltam as vozes que questionam se o progresso na automação não tornará parcialmente dispensável o trabalho humano. Mas convém recordar que, ainda que de forma não linear, o progresso técnico criou sempre mais emprego do que aquele que destruiu.

A relação de trabalho e o modelo salarial de formação de rendimentos e de garantia da sustentação da procura não parecem ter substitutos fáceis que garantam a estabilidade económica e criação de condições para a inovação.

No entanto, o que está longe de ser garantido é o modo como se irá distribuir territorialmente o efeito da mudança. De forma mais crua, nada garante que as zonas onde se criam as oportunidades de desenvolvimento e de emprego sejam coincidentes com aquelas onde esse emprego é destruído.

Esta realidade, para uma economia e uma sociedade demasiado desiguais como a portuguesa é seguramente mais um fator de risco.

O caminho do progresso não se faz sem a proteção social

Três desafios principais se colocam à nossa sociedade para travar o risco de aprofundamento das desigualdades e de estagnação económica.

O primeiro é saber ganhar a linha da frente na qualificação das mulheres e homens do nosso país, desafio agravado pelo atraso que ainda se regista. Repensar a formação contínua e ultrapassar definitivamente as fragilidades do sistema educativo é essencial.

Optar pela resposta mais exigente à necessidade de flexibilidade económica é o segundo desafio. Reduzir a flexibilidade económica a mercados laborais desregulados pode parecer a resposta mais rápida mas não é a mais duradoura nem a mais eficaz.

Em terceiro lugar, reduzir a instabilidade das carreiras profissionais. Não se trata do retorno ao mito, aliás pouco presente na nossa história, do emprego para a vida. Trata-se de compreender que quer do ponto de vista da empresa quer do ponto de vista da sociedade, relações precárias reduzem a produtividade, a capacidade de atrair as competências e de fixar os jovens.

A inovação tecnológica e a alteração das relações sociais, de consumo ou de trabalho que a elas se associam podem parecer inevitáveis e a antecipação do futuro. Mas não são necessariamente caminhos de progresso. A tecnologia e a inovação permitiu a revolução industrial e todos os seus efeitos de acréscimo de bem-estar. Mas verdadeiramente o progresso social só se concretizou quando o império da lei proibiu o trabalho infantil e as longas jornadas de trabalho ou construiu a proteção social.

Também hoje a regulação social do trabalho do futuro estará no centro das opções a construir.

Ministro do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social

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