“Temos de tornar mais atractivo" que reformados possam dar formação

Vieira da Silva, ministro do Trabalho e responsável por organizar uma conferência em conjunto com as Nações Unidas sobre o tema do envelhecimento, espera que a Carta de Lisboa, que será aprovada na sexta-feira, permita “dar mais visibilidade” a um assunto que diz muito a Portugal.

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Miguel Manso

Mudar a imagem que a sociedade tem do envelhecimento é o principal objectivo da conferência da Comissão Económica das Nações Unidas para a Europa (UNECE) que vai juntar em Lisboa membros de governos de mais de 30 países. Entre quarta e sexta-feira, investigadores, organizações não-governamentais e entidades públicas vão discutir as prioridades para, ao longo dos próximos cinco anos, colocar o envelhecimento na agenda dos Estados e das instituições internacionais. 

Em 2050, três em cada dez residentes em Portugal terão 65 ou mais anos. Como é que se conjuga um factor positivo – o aumento da longevidade - com as consequências no emprego, saúde e protecção social?
Trata-se de um desafio. A resposta, do ponto de vista geral, não é muito difícil. Passa por termos a capacidade de recuperar dinamismos ao nível da natalidade e de nos transformarmos numa sociedade atractiva que capte imigrantes e que diminua a emigração. Depois, entramos num factor-chave do tema da conferência que é a realização do potencial de uma sociedade com mulheres e homens com mais idade.

Como é que se realiza esse potencial?
Fazendo com que se modifique a imagem que a sociedade tem do envelhecimento. Temos experiências muito interessantes que são as universidades sénior e toda a economia social, um campo onde a transição entre etapas de vida encontra um espaço de realização muito importante do ponto de vista social e económico.

Apesar desses exemplos, quando o discurso se centra muito nos pontos negativos associados ao envelhecimento não é fácil ver os pontos positivos.
A resposta passa por percebermos que essa imagem capta apenas uma parte da realidade. Hoje em dia, nas empresas reconhece-se que a dimensão [da falta] de trabalhadores com qualificações adquiridas ao longo da vida é um problema. É certo que as novas gerações trazem uma formação de base mais elevada, mas quando queremos assegurar a transmissão de conhecimento, cada vez mais se valoriza o papel dos cidadãos com mais idade. Esse é apenas um dos aspectos da revalorização que temos de nos habituar a fazer.

Que incentivos se podem dar às empresas para reterem as pessoas mais velhas? Em que sectores podem ter mais oportunidades?
O incentivo mais importante é a necessidade. Quando falamos em sectores não estamos a falar apenas no espaço mais ou menos limitado das actividades económicas. Ainda recentemente responsáveis de instituições de formação profissional me alertavam para a dificuldade de pessoas que se reformaram continuarem a desempenhar funções de formação em áreas onde são das mais qualificadas. Alguma coisa tem de ser feita em termos legislativos, um dos incentivos é tornar mais atractivo que, depois de uma vida profissional ligada à produção, ao comércio ou à distribuição, haja a possibilidade de prolongar essa actividade numa dimensão de formação.

Qual a percentagem de pessoas que, em Portugal, continuam a trabalhar depois de atingirem a idade da reforma?
Considerando as pessoas com mais de 65 anos temos um pouco mais de um quarto de milhão a trabalhar. É um valor que pode crescer. A acumulação de trabalho com a pensão pode ser feita de várias formas e há toda a dimensão do trabalho não pago, associativo, que é muito importante. Os valores em Portugal [de pessoas que trabalham além idade da reforma] comparam muito bem e são até superiores aos dos países do nosso espaço económico.

Isso não tem a ver com o facto de as reformas serem mais baixas?
Do ponto de vista relativo, não diria que é por as pensões serem baixas, mas porque o nosso nível salarial é mais baixo do que noutros países e, por isso, gera reformas mais baixas. Considerando os 65 anos como média, há muitas pessoas que têm uma grande vontade de continuar uma actividade profissional.

É preciso melhorar os incentivos para que essa vontade se concretize?
Creio que há mais a necessidade de melhorar a percepção sobre o quão importante e positivo pode ser. Temos incentivos adequados, mas há alguns obstáculos ligados à proibição de acumulação de rendimentos de pensões com rendimentos do trabalho. É um tema polémico, porque o senso comum aponta para a ideia de que aceitar que as pessoas trabalhem para lá dos 65 ou dos 70 está a tirar o lugar aos mais jovens. Não é bem assim e estamos a trabalhar para tentar combinar – e é outra das dimensões da conferência – a dimensão intergeracional e mostrar que a possibilidade de pessoas mais idosas se manterem no seu posto de trabalho permite integrar com mais facilidade os jovens. Aí talvez tenhamos que melhorar os instrumentos de incentivos às empresas para poderem contratar pessoas com mais idade e mais jovens de forma articulada.

É uma necessidade que os empresários sentem ou que lhe colocam?
Há dois movimentos. O movimento em as empresas são favoráveis a que se possam “libertar” de escalões etários mais avançados. Mas também há o reconhecimento de que, deixando de contar com determinada pessoa, não há quem a substitua. Nas actividades que exigem mão-de-obra de qualificação intermédia já se sente muito essa fragilidade. Há, contudo, uma zona crítica [que é a faixa etária] próxima mas ainda longe da idade da reforma. Aí tem de haver um esforço do ponto de vista das qualificações e da aprendizagem ao longo da vida.

Como é que se reconhecem as competências dos mais velhos e como se aumentam essas competências?
Uma questão chave são as competências básicas em novas tecnologias. A ideia de que só os jovens são capazes de se relacionar com mecanismos modernos de circulação e produção de informação é falsa, há muita gente capaz de fazer a sua reconversão na utilização das novas tecnologias. Nem sempre é fácil, porque há dificuldades e bloqueios.

A população idosa tem estado fora do debate sobre o futuro do trabalho. Como é que se coloca esta geração também no centro da discussão sobre as oportunidades de emprego num mercado de trabalho dominado pelas tecnologias?
Uma das formas é valorizar as actividades económicas onde é mais fácil integrar as pessoas. A revolução tecnológica que estamos a viver é uma revolução global, mas ela também gera oportunidades de emprego para pessoas com diferentes níveis de qualificações e de preparação. A reflexão sobre o futuro do trabalho ainda é insuficiente em Portugal e temos de colocar dentro do debate a questão etária e das gerações.

O próprio Estado quando tem de alocar recursos à formação fica dividido entre a necessidade de reduzir o desemprego jovem, que continua a ser muito elevado, e de responder à população mais velha, que tem um peso cada vez maior.
Quanto mais sólida é a criação de emprego, menores são os recursos alocados ao subsídio de desemprego e aos apoios à contratação e são libertados recursos para investir no processo de qualificação e de requalificação. É o que estamos a tentar fazer, ainda com um lastro pesado dos anos duros que vivemos. Este desafio do envelhecimento activo veio para ficar. Em três anos não resolveremos o problema. Não é inevitável que a revolução tecnológica nos condene a um escassez estrutural e definitiva de empregos - não tenho essa visão, podem é não ser os mesmos [empregos] e no mesmo sítio. Temos de nos posicionar bem.

Outro dos pontos da conferência tem a ver com a dignidade dos idosos. Dados recentes mostram que em Portugal se vive tanto como nos países mais desenvolvidos, mas como menos saúde. Como é que se lida com este problema?
A conferência é centrada na economia e no social e não tanto na saúde…

Mas o acesso à saúde tem alguma relação com a incidência da pobreza nos mais velhos.
Somos um país com fragilidades do ponto de vista social, mas do ponto de vista comparativo o nível de rendimento dos idosos aproximou-se de forma relativamente rápida do rendimento médio. Em termos relativos – não em termos absolutos – tivemos capacidade de corrigir esse desequilíbrio nos últimos 20 anos. O aspecto que referiu é verdadeiro e é também uma herança histórica e pesada. Quando dizemos que os nossos idosos têm uma esperança de vida praticamente igual à dos de países mais desenvolvidos, estamos a falar de uma população que nasceu na primeira metade do século XX, com um sistema de saúde mais frágil, com episódios complexos de qualidade de vida e esse preço paga-se. A dificuldade que se coloca, e que será abordada na conferência, é que também vivemos o aparecimento de novas fragilidades e aí temos passos a dar.

Que fragilidades?
Fragilidades ligadas às demências, ao Alzheimer e às doenças incapacitantes que são hoje mais visíveis. Há que repensar as respostas sociais ao nível da articulação entre a família e os idosos, ao nível dos equipamentos sociais e ao nível do reforço do apoio domiciliário mais qualificado, para que as pessoas não sejam obrigadas a ir tão cedo para respostas institucionais. Mas também temos de pensar em algumas respostas institucionais.

O que é que se está a fazer?
Temos um modelo e uma estrutura que é potente e é possível modernizar. Se eu tivesse que seleccionar um problema mais exigente em todo este debate diria que para o nosso país esse é dos mais importantes.

O que nos está a faltar?
Algumas respostas mais especializadas que existem em número escasso e um modelo de combate ao isolamento mais ambicioso.

As respostas existentes para o apoio mais básico ao nível institucional parecem ser insuficientes…
Por isso é que temos de renovar o conceito de apoio domiciliário, atrasando as respostas institucionais e dando qualidade de vida às pessoas em sua casa. Temos milhares de beneficiários de apoio domiciliário, mas a maioria é nos aspectos mais básicos (alimentação). É uma área que está a ser trabalhada com a Saúde e já há experiências interessantes de articulação com equipas que têm uma capacidade técnica maior.

Outra das questões da conferência tem a ver com o risco de isolamento da população mais velha. Como é que se fomenta a sua participação e a sua representatividade?
Os textos da conferência referem que temos de reconhecer o direito à autonomia e à independência dos mais velhos. Um risco que corremos, em particular nas nossas sociedades muito competitivas e mercantilizadas, é o de alguma infantilização dos idosos e esse é um erro terrível. Nesta conferência vamos falar do combate à violência sobre os idosos. Ela existe e tem de ser erradicada. Um dos instrumentos é precisamente a valorização da capacidade organizativa. Numa sociedade onde vamos ter um terço da nossa população com mais idade é inevitável que ela se faça ouvir com mais intensidade.

E a Segurança Social?

Por que razão a sustentabilidade da Segurança Social não faz parte dos temas da conferência?
Tem a ver com a natureza deste comité, que se debruça sobre o envelhecimento activo. As mudanças demográficas e o envelhecimento não são apenas relevantes para a Segurança Social. E o que se passa com a sustentabildiade dos sistemas de saúde? E da educação? Todos os sistemas são questionados de igual forma. Construímos um sistema de educação projectado para dar resposta a uma sociedade onde nasciam cento e tal mil crianças por ano, agora está a dar resposta a uma sociedade onde nascem 87 mil. Ou quando desenhámos um sistema de saúde que tinha preocupações com os vários grupos etários de forma equilibrada e agora tem de responder a problemas ligados com as doenças do envelhecimento.

O sistema de Segurança Social pressupõe algum equilíbrio geracional para funcionar.
Seguramente. Não penso que o sistema de Segurança Social seja mais frágil do que os outros, porque tem mais capacidade de auto-regulação. Discutir a sustentabilidade da Segurança Social não é só discutir o envelhecimento, é também discutir a economia, a produtividade, a organização do trabalho, o emprego, a natalidade. É um pouco mais abrangente e hoje há muitos que consideram que o desafio vem mais das transformações tecnológicas do que das demográficas. Não tenho essa opinião, mas é uma opinião legítima.

Qual a sua expectativa quanto à Carta de Lisboa que vai ser aprovada durante a conferência?
Espero que a Carta de Lisboa possa ter a ambição de, no espaço internacional, dar mais visibilidade a este tema [do envelhecimento]. Temos uma agenda para o desenvolvimento sustentável, para as mudanças climáticas, para o terrorismo e para as migrações. A agenda do envelhecimento activo é outra e toca milhões de seres humanos. 

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