Não há vida para além do défice

O cumprimento do défice passou a ser a grande bandeira do governo mais à esquerda que Portugal já teve desde Vasco Gonçalves.

Ontem foram divulgados os números do défice para o primeiro semestre do ano, e eu fui fazer uma ronda pela comunicação social para verificar como a notícia foi dada. DN, TSF, Jornal de Notícias, Correio da Manhã, SIC e, num primeiro momento, o PÚBLICO, optaram pelo título “Défice cai para 2,8% no 1º semestre”. A utilização do verbo “cair” é factual – o défice cai quando comparado com os 4,6% obtidos no primeiro semestre de 2015 – mas também é generosa para com António Costa, porque o défice está acima da meta para 2016. Para cumprir os 2,2% (número do Governo) ou os 2,5% (número de Bruxelas) num segundo semestre em que os rendimentos vão ser repostos, em que o IVA da restauração baixa e em que as 35 horas regressam à função pública, é preciso um magnífico milagre ou uma aldrabice à moda antiga. O PÚBLICO actualizou depois o título para “Portugal regista pela primeira vez desde 2008 um semestre com défice abaixo de 3%”. E a TVI escreveu “INE em sintonia com Costa: défice abaixo dos 2,5%”.  

Um título nunca é anódino. A Renascença não se quis comprometer com verbos: “Défice de 2,8% no primeiro semestre do ano”. O Observador preferiu “baixar” a “cair” e acrescentou um “mas”: “Défice baixa para 2,8%, mas está acima da meta”. E o Jornal de Negócios assinou o título mais negativo para António Costa e Mário Centeno: “Governo acima da meta europeia com défice de 2,8% no semestre”. As diferenças semânticas batem certo: muitos dirão que estes são os meios mais à direita, e por isso preferiram olhar para a metade vazia de um copo meio cheio. Como os caros leitores bem sabem, eu pertenço à facção “copo meio vazio”, já que acredito que a maior parte das políticas deste governo são um desastre para o país. Contudo, o que me parece mais importante neste assunto não é discutir se o copo está meio cheio ou meio vazio, mas o facto de termos passado a discutir exclusivamente este copo. Ou seja, o copo do défice, como se nada mais interessasse.

Esta discussão é extraordinária. Como o crescimento estagna, o investimento afunda e as exportações fraquejam, só sobra o défice, a derradeira bóia de António Costa. Se ficar perto dos 2,5%, fará grandes festejos e conquistará mais 12 meses a oxigénio. Mas lembram-se do lamento de Jorge Sampaio acerca da necessidade de haver vida para além do défice? (Sampaio queixou-se posteriormente de ter sido mal citado, jurando ter dito que havia vida, sim, “para além do orçamento” – o que no contexto da época era exactamente o mesmo.) Durante os anos em que o PS esteve na oposição, António Costa concordou com ele. E quando se locupletou com a legislatura fê-lo em nome do crescimento, prometendo um “programa de fisioterapia” para a economia. Mas a sua fisioterapia resume-se hoje a um único exercício: esfalfar-se para atingir um défice que lhe permita manter aberta a torneira do financiamento europeu para 2017.

Não vejam isto como uma queixa, atenção. Ter um défice acima de 3% seria trágico. Quero apenas sublinhar, com a devida ironia, o facto de o cumprimento do défice ter passado a ser a grande bandeira do governo mais à esquerda que Portugal já teve desde Vasco Gonçalves. Claro que António Costa preferia orgulhar-se de outros números – só que não tem para os mostrar. E como é preciso continuar a proclamar a magnificência das suas políticas, neste momento já vale tudo. Incluindo transformar a velha e maldita obsessão pelo défice numa nova e fogosa paixão.

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