“Já é tarde para tomar medidas que corrijam o défice deste ano”

Subir Lall, chefe de missão do FMI a Portugal, defende que o foco do Governo tem de já estar em 2017 e que aí, para cumprir a meta do défice, “todas as opções têm de estar em cima da mesa”.

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miguel manso

O responsável pelos relatórios de análise a Portugal feitos regularmente pelo Fundo Monetário Internacional está preocupado com o baixo crescimento potencial da economia e não concorda com a aposta do Governo nos impostos indirectos como forma de cumprir as metas orçamentais do próximo ano. Numa entrevista feita por telefone, Subir Lall defende que “a partir de determinada altura, aumentar os impostos já não nos leva muito longe” e avisa que “os impostos, incluindo os impostos indirectos, são já bastante elevados em Portugal”.

Temos actualmente um abrandamento da economia. Na vossa opinião, quando é que este abrandamento começou a acontecer? A origem está nas medidas tomadas pelo novo Governo?
É capaz de ser bom voltar àquilo que nós dizíamos no início de 2015. Nessa altura previmos que se ia verificar uma recuperação cíclica, por causa de factores como os preços do petróleo baixos e as taxas de juro mais baixas e a depreciação do euro. Mas avisávamos que, com o tempo, o efeito desses factores cíclicos iria desaparecer e o potencial de crescimento estrutural iria voltar a ser o factor determinante. O que agora vemos que aconteceu é que o efeito desses factores cíclicos positivos de uma forma geral desapareceu muito mais rapidamente do que mesmo nós tínhamos antecipado. Portanto foi logo em meados do ano passado, certamente antes das eleições, que vimos o investimento a travar muito bruscamente.

O actual Governo diz que agora também há factores temporários, como a interrupção da produção na Galp, a prejudicar a economia. Pensa que isso é determinante?
Bem, também noutros anos houve interrupções de produção na Galp. São em geral efeitos temporários de pequena dimensão para os quais é difícil fazer uma estimativa relevante de qual o impacto global. Também há Angola. Nesse caso, a questão é que o que está por trás do abrandamento angolano é, em larga medida, a redução dos preços do petróleo. E esse é um factor que, para Portugal, é positivo. Se se olhar para a dimensão dos efeitos resultantes da descida do preço do petróleo e de Angola, eles eliminam-se um ao outro. O efeito positivo do petróleo compensa o efeito negativo do abrandamento angolano. Além disso, há outros factores positivos, como uma recuperação da economia europeia ou a explosão do sector do turismo que se deve também ao desvio de turistas de outros destinos.

E o impacto do "Brexit"?
Foi muito reduzido. Quando estivemos em Lisboa, em Junho, já tínhamos uma estimativa que apontava para um impacto máximo de apenas 0,1% do PIB.

O que temos agora é o normal para a economia e o que tivemos antes, até meados de 2015, era um crescimento temporário?
Sim, o que existe é um problema estrutural com o crescimento. Estamos numa situação em que estamos a chegar ao que nós pensamos ser o crescimento potencial de médio prazo da economia, que é bastante baixo, na ausência de novas reformas. Sim, é isso. A recuperação cíclica desapareceu e ficámos com o nível de crescimento que se pode considerar normal, dadas as características estruturais da economia.

Se este ritmo de crescimento é o melhor que conseguimos em circunstâncias normais, isso não significa que aquilo que foi feito durante o programa da troika foi um fracasso?
É preciso ter em conta que fazer mexer a agulha para um crescimento potencial mais elevado exige muitas reformas. Se se olhar para Portugal durante a década anterior à crise, a economia não cresceu muito, penso que em média não foi mais do que 0,7% ao ano. Portanto, até se pode dizer que o crescimento, mesmo assim, é agora maior do que aquele que existia antes da crise. E nós desde o início que dizemos que os processos de reformas duram entre cinco e dez anos porque têm de ser feitos de uma forma que é aceitável para a sociedade. Não é razoável pensar que um programa de três anos pudesse fazer subir o crescimento potencial de 0,7% para 2% ou 3%. Portanto, não diria que o programa foi um fracasso. O programa era suposto iniciar o processo, mas não podia realisticamente conclui-lo.

Uma coisa que aconteceu em simultâneo com o programa da troika foi o agravamento do problema de diminuição da população, em parte devido à emigração. Isto não contribui também para reduzir o crescimento potencial da economia?
É verdade que a emigração, quando centrada na população mais jovem, pode ter um efeito negativo no potencial de crescimento da economia. Mas há dois aspectos importantes. As pessoas tomam a decisão de emigrar com base nas suas expectativas de evolução da situação económica no país no médio prazo. E em 2010 e 2011 havia muita incerteza e assistimos a um aumento grande da emigração. Eu sei que há pessoas que pensam que a emigração foi um resultado do próprio programa, mas o que eu pergunto é: será que as expectativas económicas seriam melhores sem o programa? Dito isto: penso que quando as expectativas económicas melhorarem, vamos poder assistir a uma reversão da tendência de emigração das gerações mais jovens. E mais uma vez, acredito que se houver reformas, essas expectativas vão melhorar. Na decisão de emigrar, isso é mais importante do que a estimativa de crescimento para este ano, por exemplo.

Não vamos ter uma geração perdida?
Não, de maneira nenhuma. Acredito que as pessoas vão voltar.

O FMI continua a pedir muitas reformas e o Governo apresentou um Plano Nacional de Reformas muito extenso, com muitas reformas. Mas não são aquelas reformas que vocês querem, é isso?
É claro que acolhemos muito bem as propostas que o Governo faz no Plano Nacional de Reformas. Mas nós focamo-nos nos temas cruciais da política económica e na resolução daquilo a que chamamos “estrangulamentos”. Por isso, estamos mais centrados em temas como a política salarial, as pensões, a reforma da Administração Pública, o sistema financeiro e outros temas como a energia. São áreas chave de estrangulamento do crescimento económico em que gostaríamos de ver mais progressos. Isso não quer dizer que todas as outras áreas em que o Governo quer mexer não sejam importantes.

E as reformas do Governo não podem substituir as outras?
As reformas têm de ser abrangentes, precisam de cobrir também as áreas que referi. É claro que, todas juntas, as reformas propostas pelo Governo teriam algum impacto, mas gostaríamos de vê-las mais detalhadas e especificadas, com um calendário definido.

Numa das áreas a que o FMI dá mais importância, o Governo prepara-se para iniciar as negociações para um novo aumento do salário mínimo. O que acharia de mais uma subida?
O objectivo tem de ser, em simultâneo, aumentar o emprego e os rendimentos. E a melhor forma de fazer isso é aumentar a procura de força de trabalho. Só os empregadores privados é que podem aumentar essa procura para a economia como um todo. Apenas se sentirem um bom ambiente para investir, eles irão contratar mais pessoas e pagar-lhes mais. Esse é o caminho a seguir. Se, pelo contrário, a procura de força de trabalho se mantém igual ou se cai porque os custos de trabalho subiram mais que a produtividade, isso vai fazer cair o emprego. É por isso que somos muito cautelosos no que diz respeito a aumentar o salário mínimo mais do que a produtividade.

Mas no segundo trimestre, a taxa de desemprego caiu em Portugal...
Quando se olha para os dados, nota-se que o emprego, na verdade, caiu em cada trimestre desde o terceiro trimestre de 2015 e o primeiro de 2016. E no segundo trimestre, em que há uma subida, há factores de carácter sazonal que explicam parte dos resultados, como o aumento do emprego na agricultura. Além disso, durante muito tempo, tem-se assistido a um declínio no volume de força de trabalho disponível. As pessoas ou estão a sair da população activa ou  deixaram de procurar emprego. Se isso não tivesse acontecido, a taxa de desemprego teria sido mais alta

Portanto, também aqui está a prever uma evolução futura negativa, a descida do desemprego a terminar?
Estamos bastante preocupados com as forças estruturais no mercado de trabalho. Prevemos uma descida muito mais moderada da taxa de desemprego ao longo dos próximos anos e, depois da descida acentuada que se registou no segundo trimestre, consideramos difícil que se consiga manter essa tendência. É por isso que não somos favoráveis a um aumento do salário mínimo. Isso não cria empregos.

Ao nível do orçamento, o Governo diz que a execução até Julho está a correr de acordo com o planeado. É isso que o FMI observa?
Do lado da receita, o desempenho está a ser mais fraco do que aquilo que está previsto para a totalidade do ano. A previsão no OE é de um crescimento de 4,9% e até agora o aumento é menor. Será precisa uma aceleração forte da receita para se conseguir chegar ao objectivo no fim do ano. Isso será particularmente difícil com uma economia que não está a crescer rapidamente. De acordo com as nossas previsões, deve crescer 1% este ano, quando o OE tinha como base 1,8%.

As despesas não podem compensar?
Nos primeiros sete meses do ano, a despesa cresceu efectivamente menos do que o previsto para o total do ano. Nota-se que claramente há um controlo forte do Governo sobre a despesa. Mas pensamos que uma parte disto é explicada pelo facto de o orçamento ter sido aprovado mais tarde, tendo os serviços adiado algumas despesas. Além disso, uma boa parte da contenção está a ocorrer no investimento.

O Governo diz que a contenção é para manter…
A compressão da despesa vai ser muito difícil de manter. Há vários factores a contribuir para isso: a decisão de mudar para uma semana de 35 horas de trabalho a meio do ano, as reversões dos cortes salariais na função pública, a necessidade de realização de investimento público. Tudo isso vai aumentar a pressão sobre a despesa ao mesmo tempo que a receita deverá continuar com um desempenho mais fraco. É por isso que prevemos um défice próximo de 3%.

A Comissão Europeia prevê 2,7%, o que faz do FMI a instituição mais pessimista…
Penso que isso está relacionado com o facto de a Comissão estar a prever um crescimento mais forte da economia, de 1,5%, enquanto nós apenas apontamos para 1%. Mas devo sublinhar que a nossa previsão de crescimento está completamente em linha com o consenso das estimativas que existem neste momento nos mercados.

As reservas orçamentais que existem no OE não serão suficientes para fazer face a esses riscos?
Dão um pouco mais de confiança, mas a questão é: chegará para compensar a diferença que se irá registar face ao objectivo? Marginalmente, é útil, mas tendo em conta a diferença entre a meta do OE de 2,2% e os 3% que estamos a prever, as reservas não chegam para cobrir todo esse montante.

A Comissão Europeia está a pedir mais medidas para que o défice chegue pelo menos aos 2,5%. Acha que isso ainda será possível?
Quando estivemos em Lisboa em Junho já tínhamos avisado que se estava a chegar a uma altura tardia do ano para que se tomassem medidas adicionais. Agora já estamos a meio de Setembro. Já é tarde para tomar medidas que corrijam o défice deste ano. Não consigo conceber quais as medidas que possam nos últimos três meses do ano compensar o diferencial existente. O foco deve estar agora em 2017 e em perceber o que é preciso fazer para aplicar medidas realistas que garantam um ajustamento apropriado para o próximo ano e os seguintes.

Mas preocupa-o o efeito que uma discussão acesa entre o governo português e as autoridades europeias pode ter, por exemplo, nos mercados?
Não quero especular sobre isso porque não somos parte dessa discussão. Mas é óbvio que os mercados não gostam de incerteza e vimos isso em Fevereiro quando houve um acréscimo de volatilidade.

No OE 2017, o Governo parece estar a focar-se num aumento dos impostos indirectos, em detrimento dos impostos directos. No passado, o FMI defendeu esse tipo de opção. E agora?
Em termos gerais, é verdade que os impostos indirectos têm vantagens relativamente aos impostos directos. Mas olhando para o contexto actual, a grande questão é a de saber de onde é que pode vir o crescimento económico e a única resposta é do sector privado. Os impostos, incluindo os impostos indirectos, são já bastante elevados em Portugal. A taxa de IVA é em geral bastante alta. É por isso que achamos que a reforma da despesa seria uma forma preferível de atingir as metas orçamentais. A reforma dos salários da função pública e das pensões e uma melhor definição dos alvos dos benefícios sociais, em vez de depender demasiado dos impostos, sejam eles directos ou indirectos, são opções mais favoráveis.

O que é que está à espera de ver no OE?
Não temos os detalhes da discussão do orçamento, mas sem dúvida que uma questão importante será a de saber se depende demasiado de um aumento das receitas ou se vai apostar mais na reforma da despesa.

Não lhe parece que, depois da austeridade dos últimos anos, existe pouca vontade política em se pensar em cortes nos salários e nas pensões?
Realmente tem havido uma grande dificuldade a tentar avançar com este tipo de reformas do lado da despesa. Mas o problema é que, a partir de determinada altura, aumentar os impostos já não nos leva muito longe. E não se pode esquecer que no Programa de Estabilidade está previsto um défice de 1,4% para 2017. Essa seria uma consolidação muito significativa, seja qual for o ponto de partida de que se parta a partir do final deste ano. E por isso, para cumprir a meta de défice de 2017 todas as opções têm de estar em cima da mesa.

O que pensa da ideia de criar um novo imposto sobre a propriedade?
Para termos uma ideia de qual poderá ser o impacto, teríamos de saber mais detalhes da proposta. Só sei o que ouvi nas notícias e temo que não seja o suficiente para expressar as minhas opiniões.

Ainda há dúvidas em relação ao impacto da operação da CGD no défice. Acham muito importante que Portugal saia do Procedimento pro Défice Excessivo já no final deste ano?
A nossa atenção está centrada na forma como a política orçamental conduz a uma consolidação das contas públicas. Por isso, se está contabilizado ou não no défice não é muito importante para nós. O que conta é que contribui para agravar a dívida. É uma questão de importância secundária para nós.

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