Isto está mau

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Já tiraram o retrato completo a um tal Ricardo Salgado (nascido em Cascais, 25 de Junho 1944, meio morto na Comporta, Agosto 2014). Quase dez milhões de portugueses percebem, de repente, que ele sempre teve sobrancelhas de aldrabão, pestanas de trapaceiro, nariz de mentiroso, boca de traidor, olhos de embusteiro, orelhas de impostor, mãos de pantomineiro, cabelo de vigarista e, pior do que tudo, alma de pato-bravo. Reparem lá bem se não tem. É claro que tem, eu sempre disse, confessam os ex-admiradores do herói nacional da banca internacional Ricardo Salgado.

Mas de facto está na cara dele. Já aqui se escreveu na biografia, há semanas: em 1920 (cinco anos depois da morte de José Maria), surgia o Banco Espírito Santo SR.L. Em 2014, esperam-se novidades do Banco Espírito Santo SSRS (Sociedade de Sarilhos de Ricardo Salgado).* E esta era a biografia boa, ainda não tínhamos chegado à biografia má.

As novidades não param e, se inventaram um banco bom e um banco mau, as notícias são todas más. Incluindo as “boas”: um dia acordaremos deste BESadelo (mau, começam os chistes) e quem pagou os prejuízos do banco “bom” foram os bons dos contribuintes, outra vez. A única coisa boa que agora todos pedem, ministros e governadores, gestores e analistas neutrais (fora Marcelo Rebelo de Sousa e Miguel Sousa Tavares, que lá sabem da complexidade da vida), mais os países Aliados e os do Eixo, é má para Ricardo Salgado: prendam o homem ou ainda nos dá uma coisinha má.

Pelo menos não falta assunto diário aos grupos de amigos barrigudos nas praias do Algarve que, de mãos na anca de investimentos, molham os pés na água fria do mar Salgado. O BES e o seu produto associado, os trocadilhos com o BES. E as graçolas com o Espírito Santo e o diabo a quatro. E a crise de Jesus e do Benfica. Espera, é tudo a mesma coisa: a liquidação geral da equipa do Benfica em hasta pública é um derivado tóxico da queda do BES.

Mas a melhor síntese do magno problema “Portugal, Agosto de 2014”, deu-a um mendigo. Antes de almoçar, mas não antes de beber meio pacote de carrascão, um filósofo que dorme na rua trocou isto por um euro: “Isto está mau é para os ricos, que os pobres já não tinham nada.”

Um euro por sabedoria, ainda há coisas baratas. Vale a pena investir em Portugal. A propósito, compare-se este mendigo com o nível de abstracção filosófica atingido por um “investidor de décadas” que perdeu “muitos milhares de euros” na última recapitalização do Banco Espírito Santo. Chamava-se Sousa Figueira, ou Sousa Pereira, ou Oliveira e Sousa, ou Sousa Oliveira, um desses indubitáveis nomes de pequeno-médio accionista ligado ao universo do direito administrativo e fiscal, ou coisa que o valha. Pelo menos tinha uns livros muito grossos, forrados de marroquim, atrás das costas. Tudo o que ele investiu se derreteu no NBM (Novo Banco Mau), fundado pelo governador de Portugal, e queixava-se à RTP: “Nós vivemos no princípio da confiança bancária, e quando alguém se atravessa a dizer que tudo está bem, nomeadamente o primeiro-ministro, nomeadamente a ministra das Finanças, nomeadamente o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, que a solidez do banco nunca esteve em causa, que existe uma almofada [financeira] suficiente para resolver todos os problemas, logicamente que o meu dia-a-dia continuou a ser normal, sem qualquer tipo de preocupação.”

Parágrafo de espanto: !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Homem, cidadão Figueira Oliveira, acorde: um pedinte que no dia-a-dia tem que dormir na rua percebe mais de almofadas do que o senhor. A primeira frase é da maior ironia ou da mais fina alienação. Não só viveremos no princípio da confiança bancária (desde quando?) como ainda acredita quando o primeiro-ministro diz que está tudo bem.

Isto é, ele investe dinheiro pela palavra dada por Passos Coelho, que não mente (desde quando?) e depois continua a viver sem preocupação. Agora percebemos ao que isto chegou, obrigado, dr. Oliveira Figueira, continue a fazer negócios, mas fale primeiro com a sua empregada.

Mas porque a confiança bancária é o sistema em que vivemos, há esperança para Ricardo Salgado. Três milhões de euros de fiança puseram-lhe três milhões de neurónios a pensar. O seu cérebro único de Caixa Multibanco magica agora o salvamento das contas confiscadas no BES a si, e aos três milhões de primos da família Espírito Santo. Aliás, os primos que se danem, já foram enganados tanta vez, e já enganaram tantas outras, que bem podem acabar na ruína.

O último plano de Ricardo é audacioso: a fuga solitária de uma das sua continhas (alguns milhões de euros). É uma filha querida do banqueiro e vive triste e ofendida por a terem encerrado no BES Mau, a comer porcarias. Salgado quer libertá-la de Portugal e fazê-la viajar e conhecer as irmãs que vivem, sob anonimato, com nome fictício, pela Europa e Estados Unidos, Angola e América do Sul, pelas off-shores do belo planeta verde do BES. O plano é simples: disfarçada de papel comercial “bom” assinado por algum supervisor comprado com uma prenda de 16 milhões (escusa de os declarar), a conta fictícia “DDT” sai da caixa forte do banco de manhã cedo, passa uma portagem da Ascendi, segue para o Dubai na agência de viagens espanhola Space, salta pela falida ESCOM angolana para comer um snack, visita o escritório brasileiro da imobiliária Guaraiuva, regressa para um café na PT com Granadeiro e uma radiografia falsa no Hospital da Luz, voa ao Luxemburgo para ver se a polícia ainda está à porta, visita a Madeira através de Moçambique. Depois de passar por 400 empresas falidas, ao fim da noite já cá está outra vez, limpa, fresca e livre como uma nota de 500, a jantar lagosta com Salgado na Comporta.

*Ver “Do Natural e do Desnaturado”, Revista 2 de 8 de Junho de 2014     

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