Inquérito parlamentar ao Banif arranca no meio de muitas dúvidas por esclarecer

Solução Banif implicou perdas para o Tesouro de pelo menos 3000 milhões e um ganho para o Santander, o comprador, entre 500 milhões e mil milhões, e que pode não ter base legal.

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Jorge Tomé, ex-CEO, será ouvido na terça-feira à tarde Enric Vives-Rubio
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Luís Amado, ex-presidente do Banif, é ouvido na quarta-feira Daniel Rocha
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António Varela, antigo administrador nomeado pelo Estado, dá explicações aos deputados na quinta-feira Daniel Rocha
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Vieira Monteiro, CEO do Santander, também será ouvido, mas não esta semana Daniel Rocha

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) “ao processo que conduziu à venda e à resolução” do Banif arranca esta terça-feira, dia 29 de Março, com o objectivo de avaliar os contornos de uma operação que acarretou perdas para o Tesouro no mínimo de 3000 milhões de euros e um ganho para o Santander, o comprador, entre 500 milhões e mil milhões, e que pode não ter base legal.

O desfecho inesperado do Banif, nas vésperas do Natal de 2015, com elevados prejuízos para o Estado, não constituiu apenas uma má surpresa para os contribuintes, pôs também em evidência de forma aguda que existia (existe) um problema grave no sistema financeiro português, mas que andava disfarçado. E que transitou do anterior executivo sem solução. Ao Banif juntam-se as questões sobre a CGD, o BCP e o Novo Banco que, no conjunto, representam mais de 60% do negócio bancário. E há ainda o BPI (12%), onde o diferendo accionista se mantém o que constituiu um factor acrescido de perturbação.

O processo Banif estendeu-se por três anos e fez regressar à agenda da Assembleia da República o papel (ou ausência dele) dos vários governos na estabilização do sector. Em Dezembro de 2012, Pedro Passos Coelho nacionalizou a instituição, injectando 1100 milhões (recuperou 275 milhões), e ficou sentado à espera que a solução lhe caísse madura no colo. Três anos depois, em Dezembro de 2015, António Costa fechou o dossier sob pressão europeia e do Banco de Portugal (BdP) e o resultado foi um impacto negativo de, pelo menos, 3000 milhões nas contas públicas, quando a expectativa é que ficasse por 850 milhões. O Banif parecia ser um pequeno problema, pois tinha apenas 4% do mercado, mas a dimensão do prejuízo revelou-se uma surpresa.

É, assim, previsível que a São Bento regressem as perguntas do costume: Como foi possível deixar arrastar a situação a um ponto que gerou uma perda inesperada para os contribuintes? De quem é a responsabilidade?

Para dar resposta a estas duas perguntas, a CPI ao Banif que será presidida pelo deputado comunista António Filipe vai reunir-se ao longo dos próximos quatro meses para receber dezenas de personalidades cujos contributos se destinam a apurar, entre outros temas, as responsabilidades políticas e das entidades de supervisão envolvidas: Banco Central Europeu (BCE), Direcção Geral da Concorrência Europeia-DGCom, Banco de Portugal (BdP) e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). 

Da lista de convocados constam os nomes de Carlos Costa, BdP, de Carlos Tavares, CMVM, e dos ex-ministros das Finanças, Vítor Gaspar, de quem partiu a decisão de nacionalizar, e Maria Luís Albuquerque, que pode ter desvalorizado o tema. Mas também os do actual detentor da pasta das Finanças, Mário Centeno, e do seu secretário de Estado Adjunto Ricardo Mourinho Félix, que deram voz à resolução do Banif. E, é claro, espera-se que os deputados se esforcem por obter depoimentos esclarecedores de Passos Coelho e de António Costa, duas peças centrais.

Os trabalhos da CPI começam esta terça-feira com as audições dos dois últimos presidentes executivos Joaquim Marques dos Santos (entre 2010 a 2012) e Jorge Tomé (de 2012 a 2015). No dia seguinte, é esperado o ex-ministro da Defesa de José Sócrates Luís Amado, que nos últimos quatro anos liderou o conselho de administração.

Na quinta-feira, o foco vai estar em António Varela, o representante do Estado no Banif até 2014 altura em que transitou para a administração do BdP. Também Miguel Barbosa, hoje à frente da Oitante, que recebeu a carteira de activos “problemáticos” do Banif, de cerca de 2200 milhões, vai comparecer em São Bento. Outro nome incontornável é o de Vieira Monteiro, o presidente do Santander Totta, a instituição que recebeu do Estado os activos não problemáticos do Banif com um desconto de 75%. 

Mas não é apenas o desfecho do Banif que levanta dúvidas. É todo o processo. Em 2012 o banco era viável? Na época, as avaliações internas do BdP suportadas por um estudo do Citybank apontaram para um cenário positivo. Mas com nota de sinais contraditórios. Para modernizar o banco, anos antes da nacionalização, tinha sido adquirido um sistema informático que não foi instalado por falta de competências (e só em 2012 se adoptaram medidas para o implementar). Poderia o Banif ser salvo, dado o modelo de negócios intrincado com os interesses accionistas e a grande exposição ao imobiliário?

A nacionalização do Banif, já se sabe, decorreu contra vontade da DGCom que nos três anos seguintes vetou os oito programas de reestruturação enviados por Jorge Tomé. O que não quer dizer muito. Os restantes bancos que receberam apoio do Estado enfrentaram igualmente obstáculos: antes de ver o seu plano aprovado por Bruxelas, a CGD teve nove propostas chumbadas, tantas quantas as que foram rejeitadas no BCP. E a versão final adoptada no BPI foi antecedida de seis recusas da DGcom.

Segunda pergunta: Como é que foram gerados os incentivos para a resolução do Banif apressada? Isto, dado que numa reunião realizada no último trimestre de 2015, entre o BdP e a DGCom, o supervisor atravessou-se pelo plano de reestruturação, mas semanas depois já estava a pugnar pela Resolução. Fica por esclarecer o que o levou a mudar de opinião e porque não se empenhou em defender a venda com menor impacto para os contribuintes. Espera-se que a CPI tenha acesso às várias ofertas que chegaram ao Banif nas horas que antecederam o anúncio da Resolução (decisão que estava a ser preparada havia uma semana). Só assim se ficará a saber se eram credíveis e menos onerosas para o erário público, como sustenta Jorge Tomé.  

Há uma outra interrogação relevante: Qual foi o papel da DGCom e do BCE na escolha do comprador do Banif e nas condições de transferência para o Santander? É que para compensar o buraco do Banif e reforçar o capital para os níveis negociados com o banco espanhol, os contribuintes nacionais aplicaram 2255 milhões, dos quais 1766 milhões a fundo perdido.

Esta solução suscita várias dúvidas do foro jurídico, nomeadamente, no sector e dentro dos reguladores nacionais. É que embora no âmbito de uma resolução haja a possibilidade de recurso a fundos públicos, a título de ajuda a uma entidade insolvente, o mecanismo só pode ser usado excepcionalmente e quando se temem crises sistémicas. Um risco que no caso do Banif (4% de quota), aparentemente não estava em causa. Ainda que a forte presença do Banif na Madeira pudesse constituir um problema, como defende António Costa.  

Acresce que o instrumento de recapitalização que legitimou o aumento de capital do Banif (a norma do OE rectificativo que aprovou a operação pós resolução remete para a Lei nº 63 A de 2008) se destina a instituições viáveis e o Banif já tinha sido declarado insolvente. Ou seja: o Estado recapitalizou, para depois vender ao Santander.

Daí as muitas reticências que têm sido tornadas públicas sobre o que motivou Bruxelas a dar luz verde a uma solução que configura um mega auxílio do Estado português ao grupo espanhol Santander com um prejuízo da ordem dos 3000 milhões para os contribuintes nacionais.

Na prática, para o grupo espanhol, o valor positivo associado ao negócio foi muito maior do que o seu custo (a diferença entre o valor dos activos transferidos e as responsabilidades que assumiu), a que se soma o facto de os 150 milhões de euros que António Costa diz que o Estado recebeu do Santander serem “virtuais”, pois não deram lugar a uma transferência financeira. O que levanta nova perplexidade: Quanto ganhou o Santander com o negócio? Os cálculos apontam para um benefício entre 500 milhões a mil milhões de euros.

E falta clarificar o que esteve na origem da corrida aos depósitos no Banif (mil milhões) nos dias anteriores à resolução e que suportou a intervenção do Estado. Como o debate se tornou público, as interrogações são legítimas: As informações que surgiram apontando para o fecho iminente do Banif partiram da área politica? Ou do BdP para forçar a resolução? Ou têm origem no futuro comprador para reduzir a factura?

Esta é a quarta vez em oito anos que em São Bento um banco atrai a atenção dos deputados. Depois do BCP, do BPN e do BES chegou o momento do Banif ficar na ordem do dia e, neste caso, não só na mira do parlamento de Lisboa, mas também no do Funchal. Em cada instituição o escrutínio foi desencadeado por razões distintas e todas deixam a nu as fragilidades das autoridades politicas e de fiscalização. Em síntese: a imagem do BCP foi fragilizada por uma guerra que dividiu os gestores e fracturou o capital e que, em parte, foi dirimida na comunicação social; o BPN (objecto de duas inquirições parlamentares) foi alvo de uma mega fraude cometida ao longo de anos com episódios que foram sendo revelados pela imprensa; o BES-GES colapsou na praça pública, à vista de todos.   

Aos deputados caberá no final dos trabalhos da CPI ao Banif produzir um relatório bem informado sobre as decisões políticas e dos supervisores financeiros europeus e nacionais. Mas depois dos inquéritos ao BCP, ao BPN e ao BES, resta saber se em São Bento (em particular, o relator, o deputado socialista Eurico Brilhante Dias) há vontade de aproveitar a ocasião para fazer também a pedagogia do que deve ser a prioridade de qualquer instituição bancária com sede em Portugal: proteger as poupanças dos clientes; ajudar a dinamizar a economia do país.

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