Fisco castigou funcionários que viram rendimentos de Pinho, Sócrates e Carlos Santos Silva

Processos disciplinares abertos a partir de 2014. Funcionário com ordem para avaliar processo contra o Fundo de Pensões do BES foi repreendido porque consultou IRS de Manuel Pinho em 2013, quando o ex-ministro era gestor do BES África.

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Os dados fiscais de Manuel Pinho e de José Sócrates foram algusn dos consultados por funcionários dos impostos Antonio Carrapato

A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) instaurou, nos últimos três anos, pelo menos 50 processos disciplinares a funcionários que consultaram os registos fiscais de várias figuras públicas, entre as quais o ex-ministro da Economia Manuel Pinho, o ex-primeiro-ministro José Sócrates e o empresário seu amigo Carlos Santos Silva, ambos arguidos na Operação Marquês.

O PÚBLICO teve acesso a alguns dos processos disciplinares e aos relatórios internos do fisco que os sustentaram, relativos a inquéritos que estiveram em curso na AT entre o início de 2014 e o final de 2016. Neste lote há ainda averiguações por acessos aos dados de Pedro Passos Coelho e Cavaco Silva.

Em relação à maioria destes 50 casos, a Direcção de Serviços de Consultadoria Jurídica e Contencioso da AT propôs a aplicação de penas de repreensão escrita, suspensas por seis meses ou um ano, mesmo nas situações em que a própria administração fiscal concluiu que as informações consultadas não foram divulgadas, nem houve quebra do sigilo fiscal. Em causa, alegavam os serviços num desses casos, estava “apenas a consulta indevida”, ou seja, acessos não justificados.

Dos 50 inquéritos, 45 deram lugar a repreensões e cinco foram arquivados. A documentação a que o PÚBLICO teve acesso evidencia que, além destas situações, muitos outros processos disciplinares foram postos em marcha, embora o cruzamento dos vários documentos dos serviços não permita dizer com exactidão qual foi o número total de inquéritos desencadeados e concluídos. Além disso, houve na mesma altura outras averiguações internas a funcionários que em 2013 consultaram os registos tributários de mais uma dezena de personalidades, desde Jorge Jardim Gonçalves a José Mourinho, Belmiro de Azevedo ou Alexandre Soares dos Santos.

À luz dos acontecimentos que hoje se conhecem em torno do dossier BES/GES, um dos casos que sobressaem tem como protagonista um funcionário que tinha em mãos um processo administrativo em que o sujeito processual era o Fundo de Pensões do BES. No Verão de 2013, um ano antes da derrocada do banco liderado por Ricardo Salgado, o funcionário do fisco consultou os rendimentos de Manuel Pinho quando o ex-ministro da Economia era administrador do BES África, holding de que foi vice-presidente depois de sair do Governo de José Sócrates. Antes de chegarmos aos detalhes deste caso é preciso recordar outros episódios.

A lista e os processos

Na origem de quase todos estes inquéritos não estiveram os alertas gerados pela controversa lista VIP, mas auditorias desencadeadas por causa de investigações jornalísticas. Havia notícias nos jornais, o fisco abria inquéritos para apurar se os trabalhadores tinham violado o sigilo fiscal e as normas de conduta internas.

Embora não haja uma consequência directa da bolsa VIP, há uma coincidência temporal entre o momento em que surgem muitas destas averiguações e o período em que esteve a funcionar o polémico sistema de alarmística. E além do cruzamento temporal entre os inquéritos e a lista VIP, é notória a coincidência entre os protagonistas e os processos mediáticos que então tomavam conta do espaço público. A derrocada do BES fica consumada em Agosto de 2014, a Operação Marquês desenrola-se na praça pública quando o ex-primeiro-ministro é detido em Novembro do mesmo ano, e é nesse mesmo trimestre que o caso Tecnoforma, envolvendo Pedro Passos Coelho, conhece novas revelações divulgadas pelo PÚBLICO.

Entre 29 de Setembro de 2014 e 10 de Março de 2015, o fisco teve de pé um software que permitia saber quem consultava os dados fiscais de um selecto grupo de quatro cidadãos: Passos Coelho, Cavaco Silva, Paulo Portas e Paulo Núncio (o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, o governante que então tutelava o fisco).

Dos 50 processos que chegaram ao conhecimento do PÚBLICO, 29 têm a ver com as informações fiscais de Passos Coelho; 12 com os dados de Sócrates; sete com Carlos Santos Silva; um com Manuel Pinho e um último com Cavaco Silva. Deste grupo, apenas um foi descoberto por causa da lista VIP, aquele que tem a ver com as informações do ex-Presidente da República.

A 15 de Abril de 2015, já a lista VIP tinha feito duas baixas no Conselho de Administração da AT, os serviços de auditoria mandaram averiguar “os acessos que terão sido efectuados às declarações de rendimento” de José Sócrates entre 1 de Janeiro de 2014 e 24 de Novembro, precisamente o dia em que o Correio da Manhã, depois da detenção do ex-primeiro-ministro, publica uma notícia com o título “Fisco investiga IRS de Sócrates”.

São levantadas preocupações internas em relação à segurança dos dados pessoais, algo que levaria o fisco a agir, seguindo até recomendações da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD). Constata-se que 25 trabalhadores viram os registos fiscais do ex-primeiro ministro socialista; conclui-se que em nenhum caso houve indícios de divulgação dessas informações.

DCIAP sim, DCIAP não

Paralelamente, houve ainda muitas situações em que o fisco avançou com averiguações iniciais mas não chegou a abrir processos disciplinares. E aí incluem-se todos os procedimentos que envolveram a equipa que colabora com o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP).

Nos casos envolvendo os nomes de Sócrates e Carlos Santos Silva, os Serviços de Auditoria Interna da AT não investigaram os funcionários que são coordenados pelo inspector Paulo Silva porque as consultas estavam fundamentadas na Operação Marquês. Mas nem sempre foi assim. Dois inspectores que pertencem à mesma equipa que colabora com o DCIAP foram chamados a prestar declarações aos auditores. A razão: havia “contornos que justificavam esclarecimentos”. O resultado: as consultas foram justificadas.

Neste caso não houve duas sem três. Os auditores chegaram mesmo a ouvir um terceiro inspector sem saberem que também pertencia à mesma equipa do Ministério Público que investiga os casos de especial complexidade económica e financeira. Só o descobriram no momento em que o funcionário foi depor. Conclusão: as consultas feitas pelo inspector também tinham uma razão de ser.

Destino diferente teve um funcionário de um serviço de finanças que consultou os rendimentos de Sócrates e de Carlos Santos Silva. Acabou sancionado com uma repreensão escrita (suspensa durante um ano), por desrespeitar e violar deveres do manual de conduta do fisco. Esta foi a decisão proposta pelos serviços de contencioso, apesar de terem concluído que a pessoa não cometeu qualquer crime, não retirou quaisquer vantagens, não divulgou os dados que consultou, nem contribuiu para “danos para o interesse público ou para qualquer terceiro”.

O caso de Pinho

É no mesmo contexto que em Fevereiro de 2014 surge a auditoria aos acessos às informações do ex-ministro Manuel Pinho. Na origem esteve uma queixa apresentada pelo próprio ex-ministro por violação de sigilo fiscal do seu IRS de 2012. O fisco avança então com uma averiguação a um funcionário que no dia 23 de Agosto de 2013 foi consultar as informações fiscais de Pinho, ex-administrador do banco e, à data, vice-presidente do BES África.

O funcionário teve a seu cargo a instrução de processos em que lhe cabia investigar a existência de crimes fiscais. Num deles, o BES era o sujeito processual. E a esse trabalhador cabia especificamente apurar se a AT devia, ou não, instaurar um processo de inquérito por eventual prática de crime de frustração de créditos por causa da venda de um prédio por parte do Fundo de Pensões do Banco Espírito Santo. Este crime acontece, por exemplo, quando uma empresa oculta património para não pagar um crédito tributário.

Quando a AT faz a instrução de processos de inquérito criminais tributários, entende-se que um funcionário (e esse facto foi argumentado pela defesa) tem liberdade para consultar as bases de dados não só da empresa em causa, mas também dos gerentes e administradores, fornecedores ou técnicos oficiais de contas, para poder simplesmente cruzar dados e recolher elementos que possam sustentar o parecer final do processo.

À auditoria interna, o funcionário argumentou que podia analisar desde os rendimentos do Fundo de Pensões do BES, ao valor das contribuições de cada funcionário, apurar se os pagamentos de pensões estavam reflectidos nas declarações de rendimentos de alguns trabalhadores já aposentados, ver quem eram os administradores e investigar se as declarações de rendimento de alguns funcionários e administradores do banco reflectiam os descontos para o Fundo de Pensões. Argumentou ainda que no caso de gerentes ou administradores, também era tarefa sua analisar todo o património para apurar “se não há delapidação do património da empresa a favor dos seus gerentes ou administradores”. Mais: podia cruzar as declarações de rendimento de alguns funcionários com as declarações globais de rendimentos da empresa.

Como Manuel Pinho trabalhou para o BES e para o BES África, o funcionário disse estar convicto de que a consulta à declaração de rendimentos e à sua situação patrimonial teria acontecido num dia normal de trabalho durante as investigações.

A direcção de serviços concluiu, no entanto, que nenhum dos processos reflectia a necessidade de se efectuarem consultas aos dados de Manuel Pinho, porque, sustentava, as consultas realizadas aconteceram em 2009 e nenhum dos processos se relacionava com o economista, porque Pinho não era alienante ou adquirente no âmbito destes processos. E sustentou ainda que foram consultados os rendimentos de 2011 e 2012, mas não os de 2009 e 2010, mais próximos dos factos que estavam em investigação, de 2009. Os serviços de contencioso rejeitaram ainda que, atendendo à dimensão do BES, o funcionário fosse consultar dados de um administrador estando em causa “simples imóveis”.

O funcionário tinha, no entanto, alegado que a lei lhe confere, mais do que o direito, o dever de pesquisar “tudo” e “todos” os que estejam ligados ao sujeito processual alvo de inquérito, ou seja, o BES, o que era corroborado pelo seu supervisor hierárquico. E defendeu que o fez “no exercício das suas funções averiguatórias”. A direcção de serviços de contencioso alegou que neste caso “não foi necessário sequer investigar o adquirente do imóvel”.

Apesar de considerar que a intensidade da infracção praticada foi baixa e não houve prejuízo para a AT nem para o próprio ex-ministro, o funcionário acabou por ser sancionado. Foi decidida uma repreensão escrita, suspensa por meio ano.

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