Falhas na auditoria ao caso dos offshores deixam IGF sob pressão

Histórico informático até 9 de Outubro de 2015 foi apagado, mas a IGF não esclareceu a eliminação. Governo não homologou relatório, deixando a investigação em aberto à margem da IGF e à espera de análises forenses.

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O relatório não foi homologado, como tinha sido proposto pela entidade liderada por Vítor Braz MANUEL DE ALMIEDA/LUSA

É uma ausência que passa despercebida, mas reveladora da forma como foi recebida a auditoria à actuação do fisco no caso dos 10.000 milhões de euros de transferências para offshores não registados no sistema central da autoridade tributária: a Inspecção-geral de Finanças (IGF) enviou o relatório final ao secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, mas o governante, depois de ler o documento, não o homologou tal como tinha sido proposto pela entidade liderada por Vítor Braz.

O Governo pediu para as conclusões serem conhecidas na íntegra pelo Parlamento e, na prática, a investigação mantém-se em curso à margem da própria IGF, que já a dera por concluída. E foram vários os reparos levantados. Não só o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais deixou por escrito, num despacho com data de 27 de Junho, que ficaram por esclarecer “aspectos relevantes para a descoberta da verdade”, como pediu ao próprio fisco – a entidade objecto da auditoria – para clarificar uma série de questões que não foram esclarecidas pela IGF.

Uma delas é esta: saber se, recorrendo a técnicas de análise forense, ainda é possível recuperar informação apagada no fisco. Um procedimento que deverá avançar à margem da IGF, uma entidade com autonomia administrativa a funcionar na directa dependência do ministro das Finanças e que agora fica agora sob pressão perante as falhas identificadas pelo próprio ministério que a tutela.

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O PÚBLICO identificou outras incongruências para além das perguntas que o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais quer ver respondidas.

Na origem da polémica estão transferências de 9800 milhões de euros realizadas de 2011 a 2014 que não passaram correctamente para o sistema central do fisco, ficando inacessíveis ao sistema de análise disponível aos inspectores tributários. Em vez de 16.900 milhões de euros, só eram conhecidos 7100 milhões.

A IGF, suportando-se na avaliação de dois professores do Instituto Superior Técnico (Lisboa), conclui que o tratamento parcial das declarações se deveu a uma “complexa combinação de factores”, sendo, para os peritos, “extremamente improvável” ter havido mão humana deliberada. Mas não há uma conclusão definitiva sobre a origem do erro.

O início do erro

Tudo correu bem no processamento dos dados em 2010, 2011 e 2012. As falhas de registo começaram em 2013 e há uma coincidência de datas entre uma actualização das versões da aplicação informática (Maio de 2013) e o momento em que se começa a observar uma alteração no comportamento da aplicação. Os peritos do IST encontraram aqui um “forte indício de que estes eventos estão relacionados”. Mas vincam que, por não haver logs relativos aos procedimentos realizados nos primeiros anos, “torna-se impossível um esclarecimento definitivo” da razão das falhas que se verificam a partir de 2013.

A IGF não esclarece no relatório um conjunto de questões relacionadas com a ausência dos chamados “ficheiros de log”. Esta é a designação dos ficheiros onde fica rastreada a informação que uma aplicação gera enquanto está a ser executada. E a informação que existe é recente. Os registos anteriores a 9 de Outubro de 2015 foram apagados. Por essa razão, o fisco só tem hoje este histórico relativamente a seis das 20 polémicas declarações (2011 a 2014) nas quais se encontraram falhas de processamento dos 9800 milhões de euros.

Não estão em causa os próprios dados das transferências (quem as ordenou, os valores ou os destinos) – o que não existe é a informação sobre o processo de registo dos eventos, uma espécie de histórico que ajudaria a perceber o que se passou. Há para declarações enviadas entre 9 de Outubro de 2015 e 7 de Junho de 2016 (e processadas no fisco entre 10 de Outubro de 2015 e 7 de Julho de 2016), mas não antes disso.

Os inspectores citam uma regra da AT segundo a qual os logs só são guardados internamente durante 18 meses. Depois disso, são apagados. Mas, perante esta informação, a IGF não levantou mais questões (não aparecem enunciadas no relatório), embora haja incongruências relativamente a este período de ano e meio.

Os problemas no registo das transferências foram detectados na AT em Outubro de 2016 (e regularizados a 3 de Novembro). E nessa altura ainda não tinham passado 18 meses relativamente a várias transferências em relação às quais há falhas. São 12 as situações: uma declaração submetida em Junho de 2015, 10 submetidas em Julho de 2015 e ainda uma submetida antes do dia 9 de Outubro de 2015 (a 6 de Outubro).

A IGF não se indaga sobre nenhuma destas questões, limitando-se a assumir o prazo de 18 meses referido pela AT e a apresentar um pequeno quadro com a lista das seis declarações em relação as quais há o registo dos logs (de 9 de Outubro de 2015 a 7 de Junho de 2016).

Para chegar a esta conclusão, o PÚBLICO cruzou as informações do relatório com a lista das declarações (e as respectivas datas) disponibilizada ao Parlamento em Março.

A entidade liderada por Vítor Braz não esclarece, por exemplo, qual foi o prazo que a AT considerou válido para fazer essa contagem dos 18 meses. Não se sabe em que momento exacto é que a AT percebeu que só tinha “ficheiros de log” relativamente a seis das 20 declarações. E não fica esclarecido se este é um procedimento automático ou manual, nem a quem compete fazer esse controlo e quem tem responsabilidade sobre ele.

Questionado ontem pelo PÚBLICO com estas questões, o Ministério das Finanças veio reforçar que há matéria que ficou por investigar por parte da IGF. “Esperamos que estas questões sejam esclarecidas na sequência do despacho do SEAF [Rocha Andrade], não tendo as mesmas sido apuradas no relatório da IGF”, respondeu o ministério, através da assessoria de imprensa.

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Se há incongruências por esclarecer, as declarações do presidente do sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI) vêm adensar a pressão sobre a IGF. Paulo Ralha acusa esta entidade de atirar “poeira para os olhos” ao não investigar “questões essenciais”. E contradiz a IGF, referindo que a “política dos 18 meses não corresponde à realidade”. “Temos processos de averiguação [de funcionários] em relação aos quais foram buscar o acesso de logs há muito mais de três anos”, afirma.

Notícia corrigida às 11h59: No parágrafo onde se especificam as 12 declarações com falhas em relação às quais, em Outubro de 2016, não tinha sido ultrapassado o prazo de 18 meses para os logs serem eliminados, são dez e não 11 as declarações submetidas em Julho de 2015 (12 declarações referem-se a uma declaração submetida em Junho, 10 em Julho e uma em Outubro).

Corrigidas as datas de envio das declarações em relação às quais há registos de logs do PowerCenter, explicitando a diferença de datas entre a submissão (9 de Outubro de 2015 e 7 de Junho de 2016) e as datas de processamento (10 de Outubro de 2015 e 7 de Julho de 2016), segundo o relatório da IGF baseado na informação da AT. 

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