“É uma pena não conseguirmos vender um par de sapatos no Brasil”

Fortunato Frederico, presidente da APPICAPS, diz que o sector do calçado deverá fechar 2016 com um volume de exportações superior aos dois mil milhões de euros. Um feito digno de uma medalha, defende.

Foto
Fortunato Frederico, presidente da APPICAPS NFactos/Fernando Veludo

A comitiva de empresários portugueses na última edição da MICAM, considerada a maior feira de calçado do mundo e que decorre até amanhã (terça-feira) em Milão foi a maior de sempre: 98 empresas que no seu conjunto respondem por 500 milhões de euros de exportações. Fortunato Frederico, 74 anos, dono do quarto maior grupo de calçado português (em termos de facturação), fundador da Kyaia e presidente da Associação do sector, a APPICAPS, não se deixa desmoralizar com as taxas de crescimento residuais, longe dos dois dígitos a que o sector se habituou até há dois anos. E acredita mesmo que o sector do calçado vai chegar ao final de 2016 com a barreira dos dois mil milhões de euros ultrapassada. “Se assim for, também merecemos uma medalha”, brinca o industrial.

Nunca um primeiro-ministro tinha ido visitar os empresários portugueses na MICAM. Aconteceu este fim-de-semana. O que é que isso quer dizer?
Que o primeiro-ministro quer distinguir e premiar uma indústria a que anunciaram a morte, nos anos 60 e 70, e que provou que foi anúncio prematuro. Foi doloroso, mas qualquer sector da economia tem sempre partos difíceis. Hoje é uma indústria que tem contribuído largamente para a melhoria da balança de pagamentos e para o crescimento do país, no fundo para tornar Portugal mais competitivo.

No primeiro semestre exportou 40 milhões de pares, atingindo os 902 milhões de euros. Cresceu 1,8%, o que é um resultado modesto face a anos anteriores. Acredita que a tendência se vai manter e 2016 vai ser o sétimo ano consecutivo em que as exportações crescem?
As perspectivas são essas. Não há um crescimento tão acelerado como no passado, mas temos a noção que a economia mundial não está um oásis. Quando a crise financeira rebenta poucos são os sectores que escapam. Só deve crescer o da saúde, porque aumentam os problemas e as aflições… 

Assumem o objectivo de chegar à barreira dos dois mil milhões de euros de exportações este ano?
É um objectivo, claro. E deverá ser motivo de celebração (risos). É quase como os nossos atletas nos Europeu. Também queríamos chegar ao fim do ano e dizer que merecíamos uma medalha. Queremos chegar aos dois mil milhões e até ultrapassá-los e acho que vamos conseguir.

Nos relatórios do Banco de Portugal percebe-se que o sector do calçado (e o do vestuário e seus acessórios) foi dos que deu mais contributos negativos na perda de quota das exportações portuguesas. É porque alguém está a ocupar essa oportunidade.
Os mercados não são rígidos. Se as exportações estão a crescer é porque os mercados estão a aumentar. Estamos a diminuir num lado mas a aumentar noutros, o que interessa no final é o resultado. Está agora a mostrar um crescimento que não chega aos 2%, mas estamos a crescer. Num contexto económico global como o actual, este resultado só mostra a resiliência dos empresários. Se não perdemos base de trabalho, quando a economia melhorar um pouco estaremos de novo a ter resultados de maior volume.

A Europa ainda é o principal mercado do sector, mas tem-se notado uma aposta na América Latina…
A grande aposta na América Latina começou por ser na Colômbia porque no Brasil não é possível, nas actuais condições. Não há ninguém de Portugal que esteja no Brasil, com as dificuldades alfandegárias e com umas políticas proteccionistas que ninguém aguenta. O Brasil podia ser um mercado de excelência! Seria muito mais fácil vender no Brasil do que na Colômbia, no Chile, Equador ou México. No Brasil conhecem-nos. Gostam de nós. É uma pena não conseguirmos vender um par de sapatos no Brasil.

Quais são as perspectivas para a Colômbia?
São boas. É um país com 40 milhões de habitantes e com muitas riquezas naturais. As empresas que estão neste momento na Colômbia estão a montar as suas estruturas. Isto é um processo que demora. A Kyaia [empresa que produz e comercializa a marca Fly London] andou cinco anos nos EUA, a fazer feiras, sem vender um par de sapatos. Fizemos uma aposta a sério em 2010, e neste momento já é quase o melhor mercado do grupo.

Que impacto teve o resultado do referendo britânico?
Foi um pequeno terramoto, a casa abanou, ficamos sempre com algum receio. Mas percebemos agora que não foi nada de especial. Houve algum impacto, a desvalorização da libra, que pesa bastante neste momento. Mas isto é como o óleo de fígado de bacalhau: sabe mal, mas acaba por fazer bem. Ficamos com a boca azeda, mas vai ficar mais ou menos na mesma. A Europa vai continuar a correr bem, a não ser que comecem a barrar as fronteiras. É preciso negociar com cuidado estas coisas. Têm de pensar no impacto que pode ter no comércio um camião parado dois, três ou quatro dias numa fronteira…. Não faz sentido.

Portugal não tem grandes empresas no sector do calçado. As grandes multinacionais foram embora, só por cá ficaram duas – e que continuam a ser as maiores empresas do sector em Portugal. Acha que vai haver alguma reorganização?
Quando chegaram as multinacionais, os que cá estavam tiveram de fazer um grande esforço. Para mim, por exemplo, acabou por ser interessante, porque me obrigou a deslocalizar – emigrei para Paredes de Coura, fui atrás de mão-de-obra, que a que tinha aqui foi-me “levada” por esses grupos. Comecei em 1987 com 40 trabalhadores agora tenho lá 220. Depois eles foram embora, mas nós ficámos. Eles deixaram 10 mil desempregados. Nós, nos últimos anos, criámos oito mil.

Os empresários ainda se queixam de escassez de mão-de-obra? 
Um empresário que não se queixe não é um bom empresário. Na verdade, o que se passa é que às vezes não há a mão-de-obra que precisamos. Isto é, não estou a falar de número, nem de mão-de-obra qualificada ou por qualificar. Estou a falar de qualidade, de pessoas que trabalham com gosto, com brio. É sobretudo preciso que esteja motivado, que goste de fazer esse trabalho. Isso nota-se no resultado final, e vai ser possível cobrar 20, 30 ou 40 euros em cada par de sapato. Acredite. Isso nota-se.

A motivação não passa, muito, pela questão salarial?
Começa nos bancos da escola, primeiro. Houve um período em que as pessoas chegavam às fábricas, desinteressadas. Não era com eles, não sentiam a fábrica como deles. Hoje já é possível envolver mais os trabalhadores. Essa é a evolução.

Nos últimos dez anos foram criadas em Portugal 340 novas marcas de calçado. É muito? É pouco?
Como demonstração de vontade de singrar, é um bom sinal. É prova de dinamismo de industriais que procuram seguir um caminho que viram funcionar. Mas não é possível manterem-se 340 marcas. Ou há um estofo financeiro para aguentar o mercado, ou vai haver muita gente desiludida. Há empresas que não têm marca própria e têm excelentes fábricas a funcionar. Trabalham para marcas que exigem muita qualidade mas que pagam muito bem as encomendas.

A etiqueta “made in Portugal” depreciava o valor percebido do calçado produzido em Portugal. Hoje já ajuda a vender o sapato?
No passado Portugal recebia muitas encomendas por causa dos preços baixos que praticava. Mas hoje o que interessa a essa gente que faz encomendas, é a qualidade, a fiabilidade. E há características em que somos muito superiores aos nossos concorrentes, porque ainda estamos agarrados às receitas do passado: damos importância à palavra, ao compromisso.

E em termos de percepção do consumidor final, como é recebida a etiqueta Made in Portugal?
Isso mudou muito. Antes os sapatos portugueses não eram sequer conhecidos – também não se distinguiam muito de outros produtores. Hoje em dia não. Os sapatos portugueses têm o seu desenho, a sua identidade, a sua vida própria. Nas provas cegas chegaram a eleger os sapatos portugueses como os melhores - mas, infelizmente, ainda pensavam que eram sapatos italianos, e não portugueses.

Disse uma vez que se um concorrente é aquele que cria dificuldades à empresa, o Estado era um dos grandes concorrentes. Ainda é assim?
Ainda. Dou só um exemplo: na minha organização processo cerca de 600 cheques por mês, para pagar salários. E agora também tenho de ter duas pessoas afectas a um serviço com o qual não tenho nada a ver, e que é fazer cobranças aos meus trabalhadores. Ninguém me paga para isso! Não posso receber uma carta de um indivíduo qualquer, que agora nem juízes são, a exigir-me isso. Não sou o cobrador do fraque.

Como está a funcionar o acesso ao sistema de incentivos do Portugal 2020?
Mal. Passei a ser uma empresa que não tem direito a esses fundos comunitários. É mais uma aberração. Sou dos que mais feiras fazem. Só nos EUA faço dez por ano, e não recebo nenhum apoio.

E que comentários faz ao acesso ao mercado financeiro. Há sectores da economia a queixarem-se de dificuldades. Também é assim no calçado?
Reconheço que houve um período em que fecharam muitas pequenas empresas porque não tinham acesso ao crédito. Às vezes, por causa de cinco ou dez mil euros que era preciso, deixavam-se fechar empresas. Escandaliza-me que haja programas especiais de recuperação, em que foram metidos milhões, e depois, mesmo assim, deixaram morrer empresas por causa de dificuldades em pagar cinco mil ou dez mil euros. Foi uma péssima decisão. Perderam-se muitas empresas, cerca de 30 ou 40, que hoje em dia fazem falta à indústria, nomeadamente na área da costura. Eram empresas com 10 ou 15 trabalhadores, que se perderam. Hoje andamos a comprar muitas gáspeas no exterior que podiam estar a ser feitas aqui em Portugal.

Sugerir correcção
Ler 15 comentários