E se Trump transformar as ameaças à China numa guerra comercial?

A maior potência económica mundial e o país que ameaça assumir a liderança estão, mais do que nunca, em rota de colisão, com Trump aparentemente disponível para testar a reacção chinesa.

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O presidente chinês, Xi Jinping, a defender os benefícios do comércio livre em Davos LUSA/GIAN EHRENZELLER

Nos últimos quinhentos anos, mostra um estudo realizado na Harvard Kennedy School, em 12 dos 16 casos em que a potência mundial dominante foi desafiada por uma potência emergente, o resultado final foi a guerra. É a aplicação na prática da chamada “armadilha de Tucídides”, um conceito que nasceu da descrição feita pelo historiador da Grécia Antiga do “inevitável” confronto entre a dominante Esparta e a emergente Atenas.

Poderão agora os EUA e a China, à medida que o gigante asiático começa a ameaçar a predominância política, militar e económica da principal potência mundial, estar a cair na mesma armadilha? A resposta depende de que tipo de guerra é que se está a falar.

Se a possibilidade de um conflito militar entre os EUA e a China continua ainda a ser vista como um cenário distante, há agora cada vez mais avisos de que um outro tipo de guerra, sem sangue mas também com danos potenciais muito significativos, poder estar já muito próximo de deflagrar: uma guerra comercial. E aquilo que separa os Estados Unidos e a China de um cenário desse tipo pode ser a simples aplicação na prática, pelo presidente dos Estados Unidos que irá tomar posse nesta sexta-feira, das políticas em relação à China que tem vindo a prometer.

É verdade que quase todos os mais recentes Presidentes, de Bush a Obama, apresentaram durante a respectiva campanha eleitoral, um discurso agressivo contra a China que depois não se concretizou nos seus mandatos. E que, durante as duas últimas décadas, apesar de os Estados Unidos terem a China na lista de países em risco de serem identificados como manipuladores de divisas, Washington acabou sempre por evitar dar esse passo. Mas Donald Trump tem dado motivos para que se pense que, desta vez, pode mesmo ser diferente.

Não tanto pelo que disse na campanha (que já foi bem mais agressivo do que os seus antecessores), mas mais pelo que tem continuado a dizer, e a escrever no Twitter, desde que ganhou as eleições. O 45.º Presidente dos EUA não deu nas últimas semanas quaisquer sinais de suavizar a retórica contra a China, agravou-a no que diz respeito às questões militares e de segurança, e reiterou a intenção de, por exemplo, aplicar uma tarifa de 45% sobre as importações provenientes da China, uma medida que que dificilmente deixaria de resultar numa guerra comercial.

Além disso, na equipa que escolheu para a Casa Branca há nomes que têm tudo para colocar Pequim na defensiva. O principal exemplo é a escolha para liderar o recém-criado Conselho Nacional do Comércio de Peter Navarro, um dos mais destacados defensores de uma política comercial proteccionista nos Estados e autor de um livro chamado “Death By China”, em que se defende que a culpa dos problemas económicos nos EUA e em particular no seu sector industrial são da China e de uma relação comercial que é desequilibrada.

Do lado chinês, o Presidente Xi Jinping, aposta agora em apresentar-se ao mundo como o maior defensor da globalização e do comércio livre, tendo afirmado na sua estreia em Davos que “não haverá vencedores numa guerra comercial”.  Mas poucos duvidam que, caso Trump decida passar das palavras aos actos, a China tem armas para ripostar e poderá efectivamente fazê-lo.

Aliás, a resposta chinesa pode até já ter começado a ser dada, de forma preventiva. Na semana passada, argumentando que o seu sector agrícola estava a ser prejudicado pela entrada no país de produtos subsidiados nos EUA, a China aumentou as tarifas que aplica às importações de cereais provenientes dos Estados Unidos de 33,8% para 53,7% e agravou as tarifas anti-produtos subsidiados de 10% para 12%.

Não espanta por isso que, neste cenário, analistas do Deutsche Bank tenham escrito esta semana que “a probabilidade de um risco de uma guerra comercial de larga escala entre os EUA e a China se materializar está a subir”.

Quem ganha, quem perde?

Se o cenário de uma guerra comercial se concretizar o que irá acontecer? Esta é a pergunta que muitos economistas, investidores e políticos têm vindo a fazer desde a vitória de Donald Trump nas eleições.

Geralmente, aquilo que parece lógico à primeira vista é que o país com um excedente comercial em relação ao outro seja aquele que mais têm a perder. Neste caso, seria a China, que tem registado nas últimas décadas excedentes comerciais consecutivos (embora decrescentes e já menores do que 3% do PIB) e tem graças às suas exportações registado taxas de crescimento sempre elevadas. Todos reconhecem, mesmo os líderes chineses, que perder facilidades de acesso ao maior mercado norte-americano seria um golpe bem difícil de absorver por uma economia que ainda não conseguiu concretizar a desejada transição para um modelo mais baseado na procura interna.

Fossem quais fossem as contra-medidas tomadas por Pequim, uma guerra comercial seria dolorosa para a China, o que explica que a primeira alternativa seguida por Xi Jinping esteja a ser a defesa das vantagens da globalização e do comércio livre. Ainda, assim não é certo que nesta guerra quem acabe por perder mais seja mesmo a China. Numa economia mundial tão interligada como a actual as contas entre os que ganham e os que perdem pode não ser assim tão simples.

Se os EUA fechassem a porta aos produtos chineses, teriam de fazer face a efeitos indesejáveis provenientes de várias fontes. Por um lado, a China poderia também aumentar radicalmente as taxas aplicadas aos produtos norte-americanos, que em sectores como o alimentar ou a aviação têm um peso importante.

Depois, os Estados Unidos iriam suportar um aumento de preços generalizado por via do aumento das taxas aplicadas aos produtos chineses, o que afectaria consumidores, empresas que precisam de componentes vindas da China e empresas norte-americanas que produzem na China. Isso poderia motivar uma perda de competitividade na economia norte-americana, o que a par da provável subida de taxas de juro da Fed em resposta ao aumento da inflação, poderia provocar uma perda na actividade.

A China poderia ainda responder com uma desvalorização da sua divisa, o que lhe daria vantagens acrescidas noutros mercados face aos Estados Unidos. E tem também o trunfo de ser a maior detentora de dívida pública norte-americana, permitindo-lhe pressionar a capacidade dos EUA se financiarem no estrangeiro. Mas nestes dois casos, a China poderia também registar perdas derivadas na redução do valor das suas reservas num cenário de fugas de capital.

O que é certo é que, do lado dos EUA, parece existir mesmo a convicção de que é a China que tem mais a perder e que, por isso, pode valer a pena arriscar uma guerra. Em Davos, logo a seguir a Xi Jinping falar, Anthony Scaramucci, um dos principais conselheiros económicos de Trump, deixava um desafio à China: “O que é que eles vão fazer, vão reagir contra a nossa mudança para um sistema mais justo? Isso custar-lhes-ia muito mais a eles do que a nós, e eu penso que eles sabem isso”. Irá Donald Trump testar Pequim?

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