E agora toda a gente faz sapatos?

Professores, nutricionistas, designers de jóias largaram a profissão e foram fazer sapatos. Trazem sapatos vegan, saltos altos com jóias ou ténis com pompons. Entram no mundo que a associação do sector gosta de chamar “the sexiest industry in Europe”. Os mais velhos aplaudem mas também deixam avisos

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Um dos modelos da Friendly Fire Paulo Pimenta

Não são necessariamente empresários novos de idade (também os há) mas são sobretudo estreantes no negócio. Na maior feira internacional de sapatos, que decorreu em Milão entre 14 e 17 de Fevereiro, encontrámos alguns exemplos. Encontrámos professores, nutricionistas, designers de jóias que deixaram as suas profissões e foram fazer sapatos. Têm uma nova marca, produzem para outras marcas, desenham e tratam da produção, só exportam ou também investem no mercado nacional. Segundo dados do GAPI (Gabinete de Apoio à Propriedade Industrial) do Centro Tecnológico de Calçado, foram criadas mais de 300 marcas nos últimos 10 anos. Algumas não saíram do papel mas na feira de Milão houve quem desse o primeiro passo para a internacionalização. Quem já começou esta caminhada há anos dá as boas vindas aos novos fazedores de sapatos, mas faz alguns avisos.

A maior feira do mundo do calçado tem vários quilómetros. A caminhada faz-se por oito pavilhões (ligados aos pares), com uma avenida a unir os armazéns que albergam 1456 expositores em mais de 64 mil metros quadrados. Entre os muitos milhares de amostras não se vê um único par de sapatos. Os empresários exibem apenas um sapato de cada modelo (e já agora, no caso dos sapatos para mulher é o número 37). Portugal teve aqui a sua maior representação de sempre, apoiada pela APICCAPS (Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos). Na Micam estiveram 95 expositores de empresas portuguesas que representam mais de oito mil postos de trabalho e 500 milhões de euros de exportações. Levaram mais de 16 mil amostras de calçado e outros artigos de pele. Vamos às pessoas que nos querem calçar.

Pavilhão 6, expositor F16/18. Alexandra Castro e Rute Marques fizeram quase tudo menos escolher o nome da marca: Friendly Fire. No ano passado, estas duas amigas de 23 e 26 anos foram até à JAM Fernandes, em Guimarães, e pediram para fazer os sapatos que gostavam de ter e não encontravam no mercado. “Arrojados, bom preço, ténis apelativos e de boa qualidade”. Queriam ganhar dinheiro, claro. Hoje, os seus cartões-de-visita com letras douradas anunciam a posição de “creative director”. Alexandra completou o curso e ia ser professora e Rute ainda experimentou ser nutricionista mas ameaça desistir porque “o negócio está a correr bem e a exigir muito”. Este é o momento do lançamento da marca. Não tiveram de fazer nenhum investimento. A JAM Fernandes acolheu-as. Tiveram de aprender tudo. “Não sabíamos o que era uma sola”.

Aprenderam também que a qualidade tem um preço, que o muito bom e barato é difícil. Conseguiram ainda assim desenhar sapatos que estão entre os 100 e os 300 euros. Longe dos “preços proibitivos” das marcas que gostavam. “Gostávamos de Dior, Dolce Gabana, Jimmy Choo…”. A Friendly Fire ocupa um espaço pequeno com dois ou três armários desta feira com umas dezenas de sapatos (sobretudo ténis) com pompons coloridos amovíveis, pêlo sintético – “por causa dos direitos dos animais” -, aplicações de brilhantes ou flores em pele que também são presos por molas e que se podem tirar. Também há botas com pompons e saltos altos com brilhantes. “Para já, é só para mulher. Se o mercado aceitar bem, quem sabe…”, diz Rute que arrisca já pensar em desenhar sapatos “ou, pelo menos, acessórios” para homem. Ao lado, a amiga de escola em Guimarães e agora sócia, corrige: “A longo prazo, talvez”. Alexandra e Rute sabem que tiveram sorte, a empresa deu-lhes o “know how, as instalações e o nome da marca” e elas tinham de retribuir com “tempo, vontade e criatividade”.

E a diferença está nos pompons e acessórios amovíveis que colocam nos pares de ténis? Constatam que não conheciam nada parecido com o que fazem mas prometem mais. “Temos o olhar das consumidoras, atentas à moda, às tendências. Só fazemos o que usaríamos”, dizem. Criam para mulheres entre os 20 e 50 anos. “Ou mais, não é limitador”. O alvo é “uma mulher confiante, exuberante, divertida, que gosta de arriscar”. O slogan é “be classy, be bold”. Rute é “mais colorida”, Alexandra é “mais sóbria”. Da “fusão” de estilos já nasceram 30 modelos, desenhados a quatro mãos. “Partilhamos todas as tarefas”. Estão à procura da “internacionalização” mas não abdicam do mercado nacional, onde já entraram em 28 postos de venda. “Somos portuguesas e temos orgulho nisso”. Querem chegar a Itália, França, Grécia, Irlanda e EUA... “América do Sul também pode ter interesse”.

Em resumo, querem chegar longe. “Já aceitámos isto como para a vida. Para nós, a crise, a falta de emprego, acabou por ser uma oportunidade. Acabámos por vir para um negócio que nos encaixa como uma luva… ou um sapato”, anunciam entre risos com a piada fácil. Maquilhadas, de cabelos compridos, Alexandra de mini-saia de renda preta e t-shirt e Rute com uma blusa solta e calças justas ficam confiantes no canto que conquistaram na maior feira de calçado do mundo, umas prateleiras no stand partilhado com outra marca da empresa JAM Fernandes.

Pavilhão 1, M19/21/23. Num amplo stand com quatro paredes e porta de entrada, Luis Onofre arranca um sorriso do rosto cansado. “É bom que haja novos valores, admiro isso. É importante que pensem na qualidade e num design arrojado, único”. Ainda se lembra do seu difícil arranque com uma tentativa em 1993 com sapatos de grandes plataformas, porcas e parafusos e o lançamento da primeira colecção só em 1999. “Por muitos e melhores cursos que tenham, os novos designers têm de aprender a fazer”.

Nem tudo são rosas, diz o conhecido fazedor de sapatos. “Há muita concorrência, todos os preços. O mercado está a mudar. Cada vez mais há uma tendência maior para lojas monomarca”. Luís Onofre abriu a sua na Avenida da Liberdade no ano passado e os resultados mostram que foi uma boa aposta. Mas “não conseguimos ter lojas em todo o mundo”, lamenta. “É um bom investimento mas é um luxo. Demorei 14 anos até fazer isso”. Por toda a feira há empresários que se queixam dos problemas com a quebra de vendas na Rússia, o recuo do mercado europeu. O crescimento das exportações que a Apiccaps anuncia (1% em 2015) deve-se, arrisca Luis Onofre, também ao facto de algumas empresas (como a Ecco, por exemplo) terem voltado a instalar-se em Portugal. Porque, de resto, mais ou menos fechadas, as contas do ano fecharam com quebras. “Nas exportações das marcas portuguesas acho que houve um decréscimo. São tempos difíceis e temos de puxar pela cabeça para inovar”. Depois de quinze anos e milhares de pares de sapatos o que resta para tentar conseguir o equilíbrio das contas? Saltos baixos. “Insistia até mais não poder nos saltos altos. Sempre acreditei que a elegância estava nos extremos. Ou saltos altos ou sem salto. Nesta colecção consegui isso no salto médio”.

Inovar é cada vez mais difícil. “Está tudo inventado”, afirma assertivo. E nos materiais? Os chamados sapatos vegan, por exemplo, que surgiram recentemente e que são feitos com material sintético num apregoado respeito pelos animais? Luis Onofre admite que “há sempre espaço pelo caminho da novidade” mas defende os seus recursos: “hoje usamos peles sustentáveis, materiais que não são nocivos”. 

Os mesmos empresários que falam num recuo da Europa falam também na oportunidade nos EUA ou em vários países da Ásia. “Já falo nos EUA há vários anos”, constata. Mas, nota, “procurar novos mercados dá trabalho”, é preciso uma forte máquina de marketing. Os EUA são “um lugar seguro mas esta porta ainda está fechada para os portugueses”. Para a empurrar é preciso não repetir erros do passado, avisa. “É preciso apostar na qualidade e ter capacidade de resposta. É preciso não falhar”. Ter mãos para as encomendas. Luis Onofre, com uma facturação que rondará os oito milhões de euros, tem tido.

Pavilhão 7, B25. Paula Tavares e a sua irmã Ana são sócias numa empresa que trabalha só com “private label”. Ou seja, fazem sapatos para algumas marcas. É a primeira vez que estão na Micam com a Step 5. A empresa desta professora de gestão e da irmã que veio do negócio de vinhos tem 40 trabalhadores, em Santa Maria da Feira, e trabalha desde 2007 só com exportação sobretudo com a Alemanha, Áustria, Dinamarca e Inglaterra. Querem mais mercados, por isso, investiram num espaço da feira, com o apoio da Apiccaps. O volume de negócios ultrapassa o milhão de euros e, feitas as contas com os salários e tudo pago, o lucro propiamente dito não deverá passar dos 20 mil euros. “Conseguimos sobreviver”, diz a professora que acredita que tem razões para se queixar. Os mercados “estão muito instáveis”, as pequenas empresas “estão sobrecarregadas com impostos”, os apoios “são sempre para os mesmos”, falta mão-de-obra especializada, falta gente que queira trabalhar nesta “indústria de esforço”, diz Paula Tavares, de testa franzida e ar preocupado. A expressão fica ainda mais carregada quando se pergunta por metas, pelo futuro. “Não temos estratégia. Só conseguimos planear a um ou dois meses. Investimos tudo o que tínhamos para criar o nosso negócio. Sinto-me uma lutadora, perto de chegar à beira da praia e a ver os governos a inventar um imposto atrás de outro e com a pressão da constante fiscalização”. Porém, Paula Tavares não vai desistir. “Apesar de tudo, não estou arrependida, não desisto”, promete. E é por isso que a Step 5 marca presença.

Pavilhão 7, D11. Cristiano Lopes apresenta na MICAM a sua nova marca criada no ano passado. Chama-se Wolf & Son. Qual é a novidade? São sapatos para pai e filho, como o nome indica. A empresa Jovane é de Felgueiras e a única responsável pelo design destes sapatos, sapatilhas e botas com um preço médio de 150 euros (pai) e 100 euros (filho) é Joana Mendes, de 28 anos. “Prefiro desenhar sapatos para homem, os de mulher gosto de usufruir”, diz Joana ainda com o diploma de curso da Universidade do Minho fresquinho. Um dia, Joana gostava de ter a sua própria marca. “Algo único e meu”, diz. Mas, para já, e nesta empresa, imagina-se “a médio prazo” a começar a pensar numa colecção para mãe e filha.

Pavilhão 2. P11/13. O nome da marca portuguesa a estrear na MICAM é “Apple of Eden”. Mais uma vez, em inglês. É a aposta na internacionalização logo à nascença. A marca, obviamente, pretende ser “uma tentação”, como o próprio nome indica e como Nélson Gomes confirma. Nelson e o sócio alemão apostam só na exportação dos sapatos “confortáveis, bonitos e de qualidade” com preços que começam nos 90 euros. Em vez de “made in Portugal” os sapatos que produz em Felgueiras alinham com o nome dado à marca e dizem que são “made in Paradise”, diz divertido. Em Portugal só a produção em Felgueiras, nada de vendas, para já. Nélson justifica que o produto que faz é demasiado caro para um país com um salário mínimo de 530 euros. A excepção, no entanto, poderá acontecer na cidade do Porto onde Nélson admite abrir uma loja da marca “um dia destes”. Porquê o Porto? “Porque não? Eu sou do Porto. Mas só abro a loja se for na Rua das Flores”, jura. Actualmente, a marca tem 80% do seu mercado na Alemanha. São eles que compram os sapatos com um design sem grandes inovações mas com materiais como “forros de vaca, sem químicos, e peles vegetais”. Nélson revela que a empresa criou há um ano uma outra marca para os tais “sapatos vegan”, feitos só com materiais sintéticos. Essa chama-se “volver a vida” mas não foi à feira.

Nélson foi comercial e agora é sócio na empresa que factura cerca de 4 milhões de euros, começou há seis anos e é a primeira vez que está nesta feira mundial. Confiante, promete investir o dinheiro que ganhar em mais marketing para ir mais longe.

Pavilhão 6. H03/05. No stand da Fly London, Amilcar Monteiro está a falar sobre o ambiente de crise que assusta as pessoas e sobre o outro ambiente, a mudança climática que parece estar a roubar-nos o Inverno, o que prejudicou as vendas. “Não houve neve, chuva e frio”, queixa-se. A conversa é interrompida para receber o Ministro da Economia. Com 20 e poucos anos de existência e de feiras mundiais esta marca tornou-se incontornável. Mas, nem por isso, imune aos mercados. Com um volume de negócio de cerca de 40 milhões de euros em 2015, Amilcar Monteiro nota que no ano passado as vendas caíram na Europa (menos 2%) e que a maior queda foi no mercado nacional (menos 50%). Para equilibrar, nos EUA e noutros mercados registou-se um crescimento e a Fly conseguiu exportar mais 13,5% (mais 6,5% de volume de negócios). Mas Amilcar tem razões de queixa. Queixa-se desta “Europa que não decide nada”, do “mercado alemão bloqueado”, de “um mercado europeu anémico”. Vale-lhe os EUA que já são responsáveis por 20% do negócio da Fly. Foi para lá, para uma feira de sapatos nos EUA, que Amilcar Monteiro voou no dia seguinte à abertura da feira em Milão.

Pavilhão 2. G23/25. Ana Garcia está descalça e a maquilhar-se em frente a um grande espelho oval no stand pintado de preto da marca No Studio. É o início da feira. A simpática designer de jóias já foi motivo de notícia porque resolveu colocar jóias nos sapatos. Aliás, Ana deixou de desenhar jóias – ainda que ande sempre com uma mala de jóias atrás – e hoje só desenha sapatos. Sapatos com jóias. Leva cristais Svarowsky para os bicos e saltos dos sapatos pretos, roxos, cor-de-laranja, coloca piercings no sítio das palas e até já usou prata e safiras. O mais caro par de sapatos que tem, ainda guardado, custa cerca de mil euros. Esse não foi vendido. O negócio, admite, não é fácil. Depois de um arranque com muito luxo, a designer de 36 anos colocou um travão na ambição e tentou usar materiais mais acessíveis. Mas não abdica de colocar jóias nos sapatos. Aliás, o plano é fazer carteiras com jóias, acessórios com jóias e até roupa com jóias.

Pavilhão 4. K02. É também a primeira vez para Biblical Lust, mais uma nova marca lançada nesta feira em Milão. Ricardo Confraria estava desempregado, era “vendedor de bens de consumo”, quando decidiu criar uma empresa de sapatos com a mulher. O nome da marca, explica, quer mostrar a “entidade espiritual de cada um e a parte carnal”. Ricardo é de Leiria e recorre a “duas ou três fábricas” de São João da Madeira para fazer os sapatos de homem e mulher. Não havia qualquer ligação profissional ou familiar ao sector do calçado. O negócio surgiu “pelo seu gosto pessoal” por sapatos. Uma oportunidade onde investiu cerca de 100 mil euros de capitais próprios. O primeiro passo será na direcção dos mercados europeus, espera Ricardo, que aposta “em materiais de grande qualidade, conforto e design” e sapatos entre os 280 e 400 euros. Acredita em afirmar a “força da marca” Biblical Lust. “O primeiro livro da Bíblia, o Genesis, foi a inspiração desta primeira colecção”, diz.

Corredores da feira. Apesar de não estar a viver os seus anos de ouro, sentindo o travão de um “mercado europeu anémico”, da crise da Rússia e os efeitos de uma inconveniente “falta de Inverno” que afectou as vendas, o sector do calçado ainda é um bom negócio. E ainda cresce “ligeiramente”. Em 2015, Portugal exportou 79 milhões de pares de calçado, no valor de 1865 milhões de euros o que significa um crescimento de 1%. Com este ligeiro crescimento, que quase indicia uma estagnação, a Apiccaps valoriza sobretudo o aumento de 50% das exportações desde 2010. Pelos corredores e pavilhões da maior feira do mundo passaram 32.703 pessoas e a organização regista com surpresa um regresso do interesse da Rússia com um aumento de 13% dos compradores.

O PÚBLICO viajou a convite da APICCAPS

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