Atrasar medidas à esquerda para cumprir mínimos em Bruxelas

Num orçamento que Mário Centeno diz ser de "escolhas", as medidas tomadas pelo Governo têm um efeito nulo do défice. O impacto positivo da economia ajuda com mais de metade da redução do défice prevista.

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Mário Centeno na apresentação da proposta de Orçamento do Estado 2017 Miguel Manso

Cumprindo o que já se tornou numa tradição em Portugal, é com base numa previsão de crescimento em relação à qual já existem dúvidas que a maior parte da redução do défice é conseguida na proposta de Orçamento do Estado para 2017.

Do corte de 0,8 pontos percentuais, de 2,4% (em 2016) para 1,6% previstos para o défice de 2017, 0,5 pontos – isto é, mais de metade - devem-se ao efeito positivo nas contas públicas que se espera que o crescimento de 1,5% projectado para a economia pode vir a ter nas contas públicas. Isto através, por exemplo, da obtenção de mais receitas fiscais.

Para além da economia, há depois uma série de efeitos que não dependem da acção do Governo. É o caso dos dividendos que o Banco de Portugal irá pagar ao Estado ou da poupança no pagamento de juros da dívida pública, que garantem no total uma redução de mais 0,4 pontos percentuais no défice.

Perante isto a pergunta surge: e o que resulta das medidas tomadas pelo próprio Governo? Algumas têm efeitos positivos nas contas, com predominância de mais impostos indirectos e da contenção de entradas na função pública. Outras têm efeitos negativos, como a sobretaxa, salários da função pública, pensões e IVA da restauração a dominar. Mas no total o impacto é quase nulo, apenas de um ligeiro agravamento do défice de 0,1 pontos percentuais.

A meta do défice está assim, mais uma vez dependente da economia, o que certamente constitui um motivo para preocupação, principalmente depois do erro de previsão do Governo este ano e quando o Conselho das Finanças Públicas já afirma que o cenário macroeconómico do OE 2017, apesar de “estatisticamente plausível”, contém “riscos descendentes assinaláveis”.

Mas para além do problema da dependência da evolução da conjuntura, e mesmo sabendo que as medidas tomadas pelo Governo pesam negativamente no défice, o que também salta à vista na proposta de orçamento entregue nesta sexta-feira é a tentativa de minorar o efeito orçamental das várias medidas exigidas pelos partidos à esquerda do Governo, com o objectivo de cumprir, à risca, aquilo que é pedido pelas regras europeias.

Os dois exemplos mais claros estão nas pensões – em que a actualização extraordinária de 10 euros é feita apenas a partir de Agosto e beneficia unicamente as pensões situadas entre os 275 e os 628 euros -  e na sobretaxa – que vai ser aplicada apenas gradualmente, garantindo uma perda de receita que é apenas metade daquela que estava prevista.

Mas há ainda outros sinais, alguns deles certamente motivo de discussão na especialidade, como o abono de família ou a ausência de qualquer alteração nos escalões e nas deduções de educação no IRS.

António Costa afirmou, depois de apresentado o orçamento, que existe entre o Governo e os partidos à esquerda um “grau de divergência que não inviabiliza o OE". Mas é notório que esse grau de divergência foi medido à risca para que se pudesse apresentar, na próxima segunda-feira, um orçamento que cumpre os mínimos exigidos por Bruxelas.

À Comissão Europeia, o Governo aposta em mostrar dados convincentes, tanto em 2016 como em 2017. Este ano, o défice ficará em 2,4%, um valor acima dos 2,2% inicialmente prometidos, mas ligeiramente mais baixo do que os 2,5% que Bruxelas disse aceitar. A variação apresentada no défice estrutural, que as autoridades europeias querem que seja pelo menos de zero, também é ligeiramente melhor, com uma redução de 0,2 pontos.

Para 2017, os números também são a pensar no cumprimento de regras. O défice nominal é reduzido em 0,8 pontos face a 2016, exactamente o mesmo número que tinha sido previsto no Programa de Estabilidade (nessa altura uma redução de 2,2% para 1,4%).

E o défice estrutural cumpre exactamente a redução de 0,6 pontos que é pedida pelas regras. O Governo até abdicou, para já, da possibilidade de utilizar a flexibilidade do Pacto de Estabilidade que permite uma redução de apenas 0,4 pontos para os países que fiquem fora do Procedimento por Défice Excessivo.

Na conferência de imprensa que se seguiu à entrega da proposta do OE no Parlamento – feita só ao início da noite – Mário Centeno afirmou, quando questionado sobre os motivos que levaram o executivo a recuar por exemplo na eliminação total da sobretaxa logo em Janeiro, que este é um Orçamento "de escolhas".  

E garantiu estar tranquilo com o teste que irá ser feito à proposta em Bruxelas, afirmando ter "fortes expectativas" de que a avaliação das autoridades europeias "será positiva"

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