António Pargana, a saga de um dos últimos homens do império

Nasceu no Porto, estudou em Moçambique e Lisboa, formou-se em Luanda e com o 25 de Abril acabou por cumprir a velha rota triangular do império colonial que o levou ao Brasil. De emigrante remediado transformou-se num homem rico, com dinheiro para dar a cara pelo consórcio que comprou 30% da Brisa.

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Num dia impreciso de 1975, uma intensa chuva de balas atravessou o ar do aviário da Avicuca, nos arredores de Luanda. O combate entre as hostes desavindas dos movimentos de libertação de Angola não ficou na história da independência – foi apenas mais um episódio da guerra sangrenta que duraria décadas. Marcou, porém, o futuro de António Pargana e da sua mulher, Maria das Dores. Quando saía do local dentro de um chaimite enviado à pressa pelo comandante dos pára-quedistas, Heitor Almendra, acabavam-se as dúvidas sobre o entusiasmo de assistir ao momento “espectacular que é o nascimento de um país”, acabavam-se os projectos para alimentar os laços entre Portugal e a sua ex-colónia, acabava a paixão “pelos grandes espaços” de África e encerravam-se os sonhos de uma vida em Luanda. António Pargana estava condenado a refazer a triangulação do Atlântico que durante séculos ligou Portugal ao Brasil e a África. Iria mais tarde para São Paulo, onde fez fortuna e criou empresas que facturam mais de três mil milhões de euros por ano, mas regressaria várias vezes a África e continua a alimentar uma relação intensa em Portugal, onde há dois anos serviu de ponta-de-lança de um investimento de 700 milhões de euros no capital da Brisa.

Contar a história de António Pargana é, por isso, recuperar a memória da última geração de portugueses de olhos voltados para os mares do Sul. Depois do 25 de Abril, quando o ciclo do império se fechou, ele fez parte da geração que não encontrou lugar no pequeno país confinado num rectângulo no extremo ocidental da Europa e rumou para o Brasil. Nessa geração houve políticos exilados como Marcello Caetano ou António de Spínola, houve banqueiros como Câmara Pestana e aventureiros de bolsos vazios como António Pargana. “Cheguei lá e havia o que achei mais importante. Senti que podia criar qualquer coisa. Havia muita coisa a fazer, como ainda há”, diz o empresário. Entre as muitas coisas que vez conta-se trabalho na consultoria empresarial, na gestão, no comércio com África, com o Iraque ou com a Ásia e até na assessoria política – foi um dos três principais articuladores do programa de governo do presidente Fernando Collor de Mello.

António Pargana nasceu “por acaso” no Porto. Os pais, acabados de casar, viviam lá, enquanto o pai acabava a sua licenciatura em Engenharia. Provenientes de Silves, os Pargana eram membros de famílias de classe média que deram ao país personalidades como o ex-ministro Vitor Gaspar, ou, nos antípodas da política, Francisco Louçã. Mas a geração do jovem licenciado em Engenharia experimentava um tempo em que as oportunidades mais entusiasmantes não estavam nem na terra de origem, nem muitas vezes nas grandes cidades do país que por esse tempo ainda viviam a letargia comodista do salazarismo. Nos anos de 1950, África começava a ser o lugar onde podia haver um futuro. Os Pargana seguiram essa crença e mudaram-se com a família para Moçambique quando António tinha quatro anos. “Fomos para o vale do Limpopo, onde havia obras de irrigação dirigidas pelo engenheiro Trigo de Morais para a instalação de um colonato agrícola”, recorda António.

Ainda hoje existe a intrincada rede de barragens e de canais em torno da pequena cidade que outrora se chamava Vila Pery. Foi nessas planícies irrigadas que António viveu entre os quatro e oito anos. África começou a incrustar-se no seu ADN. “[A vida no campo, a escola no meio do mato, os horizontes da savana] marcaram-me muito.” “Foi o primeiro contacto que tive com espaços grandes”, recorda. E com a diversidade da humanidade. “A minha mãe dizia: ‘Cuidado com quem vais, etc.’ Mas quando se convive com novas raças e com novos povos desde criança, deixa-se de achar que os outros são estranhos ou diferentes”, diz António.

A vender enciclopédias

Aos oito anos, novo desafio profissional do pai e nova mudança para os Pargana. António está de regresso à metrópole. Ficaria em Lisboa até aos 17 anos. Do Bairro de S. Miguel podia caminhar até ao liceu Camões, onde teve como colegas jovens que anos depois teriam um lugar destacado na vida pública. “O António Guterres ficava mesmo à minha frente. Também andavam na minha turma o António Rendas [reitor da Universidade Nova de Lisboa] ou o António Sá da Costa [ligado às energias renováveis].” Como acontecia à elite urbana do Estado Novo, António tinha as portas abertas para prosseguir os estudos numa universidade. Entrou no Instituto Superior Técnico, mas cedo chega à conclusão que “realmente o [seu] negócio não era a engenharia”, sublinha. Nem a administração de empresas, curso que tenta a seguir para desistir pouco depois.

Com a carreira de estudante suspensa, restava-lhe seguir as pisadas do pai, que voltara uma vez mais a África, desta vez a Luanda, Angola. António inscreve-se na Faculdade de Engenharia de Luanda. “Até gostei”, diz, mas gostou ainda mais de uma experiência que, juntamente com um colega, desenvolveu nesses tempos de estudante: uma empresa destinada a vender volumes da Grande Enciclopédia Luso-Brasileira. “Descobri que era bom vendedor, num só dia vendi 17 enciclopédias”, recorda António. E descobriu também que no mundo dos negócios nem sempre se faz o que se planeia. No começo dos anos 70, Angola está a viver uma crise de pagamentos e suspende remessas para o estrangeiro. O negócio das enciclopédias afunda-se. “Primeira lição: muito cuidado com quem trabalha. Olhe muito bem para o governo. Não pense que é só o que você faz que é importante. Isso foi uma coisa que me marcou. Tenho sempre muito presente na minha cabeça”, nota o empresário.

Mobilizado para o Exército em Nova Lisboa (actual Huambo), com o curso condenado ao esquecimento, António entra na idade adulta sem fortuna, sem formação e sem outro trunfo para brilhar para lá da sua irrequietude e aventureirismo. Em 1973, tinha então 23 anos, decide casar-se com a sua mulher de sempre, Maria das Dores, na época uma estudante na Faculdade de Medicina de Luanda dois anos mais nova. Com a chegada do 25 de Abril é desmobilizado e entra numa nova experiência profissional, como director comercial do aviário Avicuca, que abastecia a capital angolana. O seu objectivo era ficar em África. “Acreditava que Portugal, mesmo deixando de ser uma potência colonial, ia ter uma ligação íntima com Angola”, recorda. Uma crença que cedo se esvaneceu. “À medida que os meses passaram, vimos as brigas entre os movimentos e comecei a desiludir-me. Até que disse à minha mulher: ‘Esquece, não tem a mínima condição.” A experiência “interessante mas assustadora” do cerco ao aviário foi a gota de água. A página africana estava prestes a virar-se.

Brasil, um destino lógico

Portugal era por esses dias quentes do princípio de 1975 um laboratório ideal para a revolução e um país difícil para quem procurava emprego. Para acabar o curso e ser reconhecida como médica em Portugal, Maria das Dores regressou à Faculdade de Medicina. António passou quatro meses a bater às portas das empresas. Nada. “O mercado de trabalho não existia”, lembra. Mais do que um acto de vontade, mudar de novo de vida tornou-se uma necessidade. E aí o Brasil não era uma casualidade. Era o destino lógico. “Talvez porque na minha cabeça me identificasse mais com um país tropical, pela experiência que tinha tido”, conta. No final de 1975, António meteu-se então num avião e foi à procura de uma alternativa abaixo do equador. “Viajei bastante. São Paulo, Rio, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte... o Brasil estava a crescer a um ritmo de 6% ao ano e havia falta de mão-de-obra.”

Regressou entusiasmado, mas para cumprir os seus planos precisava de convencer Maria das Dores. No princípio, a jovem médica que se iria especializar em pediatria hesitou. Mas a sua condição de vida (em casa dos sogros, numa situação de dependência) ajudou. Partiram para um país que ensaiava em 1976 uma pequena abertura na ditadura instalada pelos militares em 1964. “O Castelo Branco [Humberto Castelo Branco, Presidente entre 1964 e 1967] e o Médici [Emílio Médici, Presidente entre 1969 e 1974] tinham sido antes. A fase mais dura tinha passado. Com Geisel [Ernesto Geisel, Presidente entre 1974 e 1979] já se falava em distensão, em crescimento, em emprego... Era o que eu queria ouvir. Queria ter emprego, ter possibilidade de fazer alguma coisa”, recorda. Apesar da ditadura, o Brasil era um mundo de oportunidades. “Aqui, tinha o Vasco Gonçalves; em Angola o MPLA e a UNITA a matarem-se lado a lado... eu queria era trabalhar.”

António tinha então 26 anos. Num dia desembarcou em São Paulo com 500 dólares no bolso. Ao contrário da maior parte dos portugueses que emigraram na época, não escolheu o Rio como destino. Nessa altura, a capital paulista era já o músculo maior da economia brasileira. Para começar, teve a ajuda do amigo António Barbosa, que saíra directamente de Angola para o Brasil, onde trabalhava na cadeia Pão de Açúcar. E não lhe foi difícil encontrar o que fazer. “Num domingo, comprei o 'Estadão' [o jornal Estado de São Paulo]. Era enorme e uma grande parte eram anúncios. Sei que respondi a um anúncio no domingo e estava a trabalhar na quarta-feira.” Esperava-o o lugar de consultor na multinacional americana Proudfoot, que estudava uma empresa em Guarulhos, na zona onde fica o aeroporto internacional de São Paulo. “Apanhava dois ónibus, para chegar lá às oito e chegava de volta às dez da noite.”

“Só querer ganhar não funciona”

Ficaria no seu primeiro emprego brasileiro apenas 15 dias. “Achei que não era a minha praia”, explica. Mas nesse curto período de tempo teve a sorte de construir a sua primeira rede de contactos. Um amigo de um amigo, angolano de nascimento, apresentou-lhe André Matarazzo, descendente da mais importante linhagem industrial de São Paulo, que mais tarde seria embaixador do Brasil em Roma, deputado e membro da poderosa ala do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) na qual se inclui, entre outros, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A irmã de André era casada com Pedro Brito, de uma família que na época dominava a pecuária do país. O patriarca, Ovídio Miranda Brito, tinha então 250 mil cabeças de gado espalhadas por vários estados do Brasil e um matadouro numa pequena cidade no interior de São Paulo. No primeiro encontro, António foi contratado.

A experiência africana e o domínio de várias línguas foram decisivas para a sua contratação. Na altura, a Cotia (era o nome da empresa) procurava expandir-se para a Nigéria. António Pargana seria o pivot desse negócio. Depois do abate, a carne fresca era transportada a bordo de aviões da Varig e descarregada em Lagos. O negócio, porém, enfrentava dificuldades previsíveis. “A carne chegava à Nigéria, onde estavam por vezes 40 graus, saía dos aviões e era transportada em camiões normais”, diz. Muita estragava-se. Mas o que era um problema foi para António uma oportunidade. “Como eles não tinham camiões-frigoríficos, vendemos-lhes camiões-frigoríficos.”

O negócio começou a ser um sucesso. Países vizinhos como o Gana ou a Costa do Marfim foram os próximos destinos da Cotia. A imaginação de António para a negociação continuou a dar frutos. “No Gana, como não tinham câmaras-frigoríficas nem camiões, vendi carne seca. A Costa do Marfim tinha câmaras frigoríficas mas não tinha carne, por isso vendemos carne fresca”, recorda. Com o negócio de vento em popa, António sofre a concorrência da poderosa empresa estatal do petróleo do Brasil, a Petrobras. Nada mudaria. “A Petrobras quis entrar para nos cortar as pernas, mas perdeu uma fortuna.” A Cotia resistiu a oscilações de preços, a crises de pagamento motivadas pela oscilação dos preços do petróleo (a principal moeda de troca de países como a Nigéria) e cresceu.

De vendedora de gado a empresa prepara-se para se tornar a principal trader do Brasil. O gado impulsionou o negócio de equipamentos e daí a Cotia diversificou os seus negócios. Passou a vender aço para a China, para o Japão ou para a Malásia. O negócio da carne alargou-se a mercados exóticos como o do Iraque do tempo de Saddam Hussein – António Pargana lembra-se de atrasarem as negociações até às vésperas do Natal para o obrigarem a ceder nos preços. Em 1980, António seria o primeiro agente do Brasil a vender álcool combustível (etanol) para os Estados Unidos. Nesses anos, António viajava com regularidade por 30 países. Em cada um descobriu formas especiais de negociar e regras gerais para a sua actividade “Todos têm de ganhar. Quem só quer ganhar não funciona. Temos de criar relacionamentos que persistam”, diz. E enfrentou as teias da corrupção que envolvem todos os negócios em África. “Nunca entrei muito nesse meio, porque o nosso material era um produto de necessidade, com uma cotação”, diz.

Arrastado para a política

Com o crescimento da Cotia, António Pargana torna-se braço direito de Ovídeo Miranda de Brito e sobe à vice-presidência da trading. “[Mas depois de 13 anos de uma] experiência interessante, em que aprendemos a fazer as coisas, [estava na hora de mudar].”  “Tinha um bom ordenado, uma participação nos resultados, mas nunca fui sócio. E essa foi uma das razões por que saí”, nota. No final de 1988, António Pargana abandona a Cotia a e funda uma empresa de representação de grandes multinacionais, a Corema. Na sua lista de negócios estavam locomotivas da General Motors ou leite em pó da Nova Zelândia. A expectativa de que o mercado das locomotivas explodisse sairia gorada.

Por volta de 1986, o Brasil entra numa nova fase da sua vida política. Exausta e abalada pelos primeiros estragos da hiperinflação, a ditadura militar entra em colapso. O país ensaia os primeiros passos para a democracia numa campanha de protesto popular que envolveu milhões de pessoas, a campanha das Directas Já. Em 1989, o Brasil marca a sua primeira eleição presidencial livre depois da vitória de Jânio Quadros, em 1960. Por essa altura, António Pargana tinha-se envolvido numa nova experiência: regressara à consultoria e à sua frente ia ter a oportunidade de experimentar a euforia política de um país que rejubilava com a democracia.

No seu novo projecto, a estrela era Zélia Cardoso de Mello. Economista doutorada, com passagem pelo Ministério das Finanças na época da transição para a democracia, prima de Fernando Collor de Mello e alta funcionária do Estado de São Paulo, Zélia movia-se com facilidade na elite do poder político e empresarial paulista. Quando funda a ZLC Consultores Associados, António Pargana junta-se ao projecto e fica com 25% do capital. Quando a data da eleição presidencial de 1989 fica marcada, Collor pede a Zélia para coordenar o seu programa económico. A economista rejeita fazê-lo em nome individual. Pôs como condição o envolvimento da ZLC. Collor aceita. Sem o prever, António Pargana é arrastado para o mundo da política. “A ZLC tinha o trabalho de estruturar o programa do governo. Foi uma das experiências mais ricas que eu tive no Brasil”, diz o empresário.

Collor surge quase do nada. “Ele era governador num estado pequeno, Alagoas, não tinha votação nenhuma nas sondagens, mas, de repente, aparece nas pesquisas como alternativa para o país.” Jovem, sempre vestido com os melhores fatos, Collor arrasta multidões e conquista a classe média. A euforia contagia a missão da ZLC. “Nós tínhamos dez pessoas na ZLC e, quando terminámos e ele foi eleito, estávamos a coordenar 1200 pessoas, que não receberam um centavo, que estavam ali apenas para dar um contributo ao país. A equipa da ZLC aumentou pouco, mas juntaram-se a nós mais de 1000 voluntários”, recorda António Pargana. Coordenou os grupos que estudavam políticas para o comércio externo, transportes, siderurgia e uma parte da negociação e gestão da dívida externa. A tarefa era imensa. “O partido dele não existia e ele não tinha programa. Fez-se um programa muito interessante e que foi a base da abertura económica do país”, afirma.

Trabalhar muito, ganhar pouco

O governador do Alagoas ganha a eleição após um debate final com Lula da Silva que ficará na história pela grosseira manipulação das imagens feita pela estação Globo e por uma mentira de Collor sobre a honorabilidade do seu opositor. António Pargana recusa ser ministro. “Eu sou sector privado. O político tem de compactuar, transigir muitas vezes”, justifica. Regressa a São Paulo para confirmar pouco depois a sua desilusão com a expectativa de Collor. Este primeiro fez tábua rasa do seu plano económico, confiscando as contas dos cidadãos e impondo um severo controlo de preços e mais tarde foi apanhado nas redes da corrupção. Entre a euforia cidadã e a decepção que se seguiu, António traça uma linha de continuidade que chega ao presente. “A frustração que se vê muito hoje nos jovens também vem daí, de acharem que se podia fazer outras coisas, que não se está a fazer o suficiente pelo Brasil. Há esse desgosto...” Collor, diz, foi uma desilusão: “[Porém,] comparado com hoje, ele comeu uma asa de galinha, enquanto os de hoje estão comendo um peru inteiro.”

Em 1990, com a ZLC fechada após a nomeação de Zélia Cardoso de Mello como ministra da Fazenda, António Pargana está em São Paulo focado no negócio das locomotivas. “Podia ter escolhido muita coisa e se calhar escolhi a coisa errada, porque continuei a insistir na locomotiva, porque eu achava que era uma solução para o Brasil. Eu achava isso em 1991 e isso passou a ser uma realidade em 2005-2010”, lamenta. Mas, da mesma forma que se exalta com os seus sucessos, António tem jogo de cintura para lidar com os fracassos. “Mas a verdade é que trabalhámos muito, ganhámos pouco e demos risadas”, diz.

Ora, ganhar pouco é uma expressão que cai mal no discurso de António Pargana. Não admira por isso que em 1993 tenha entrado na órbita de outro grande capitalista brasileiro. Olacyr de Moraes era na época conhecido como o “rei da soja”. O seu império de terras estendia-se das fronteiras do Paraguai à Bolívia, do Mato Grosso a São Paulo. As suas fábricas de processamento de soja eram gigantescas. Era dono de uma das maiores construtoras do país. E controlava o Banco Itamarantim. “[Um dia,] o Olacyr disse: 'Vem trabalhar comigo.' E eu perguntei: 'O que vou fazer?' E aí ele diz: ‘Faz o que você quiser.’” Mesmo não tendo concluído o curso de Engenharia, António começou a gerir dois projectos ferroviários do grupo de Olacyr. A ligação das zonas de produção às fábricas e daqui aos portos de mar fizeram-se sob a sua égide. O seu trabalho foi um sucesso, mas faltava-lhe a componente comercial.

O sucesso da Cisa

A Cisa nasce no ano seguinte em boa parte movida por essa ausência. Um ex-director da Cotia e o próprio Olacyr, que entrou com meio milhão de dólares, seriam os seus accionistas. Como segurança, todas as operações de importação e exportação seriam integradas na actividade do banco. Com este poder, a Cisa ganha o negócio da importação de veículos. Primeiro a Volvo, depois a GM, mais tarde a Renault. A exportação de produtos agrícolas estava em fase ascendente, levando o Brasil à condição de primeira potência mundial do sector. Uma vez mais, a política económica do governo iria colocar tudo em perigo. “Um dia, estou em Portugal, estava a construir  a minha casa em Vale do Lobo e o meu sócio liga-me a dizer: ‘É melhor vires para cá.’ Deu um problema.” O Plano Real, desencadeado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 2004, e a política monetária de Gustavo Franco, governador do Banco Central do Brasil, tinham aumentado a taxa de juros e alterado a taxa de câmbios.

O grupo de Olacyr sofre um forte abalo. Teve de vender o banco e de negociar as suas dívidas. O capital que tinha emprestado à Cisa foi retirado. “Ele metera 20 milhões de dólares na caixa de grupo e eu precisava desses 20 milhões no final do mês para pagar impostos, despesas...” Num curto período de 15 dias, António teve de encontrar um outro investidor. Os accionistas da Cotia entram então no capital da Cisa. Foi fácil: o principal sócio da Cotia, um banco, acabara de comprar o Itamarantim a Olacyr. Mas para lá da oportunidade, o que estava em causa no negócio era a necessidade de a Cotia anular um competidor. A Cotia era grande trading brasileira e eu já estava incomodando. Eles sabiam que era bom neutralizarem-me”, explica António Pargana.

Com estes movimentos, a Cisa podia aspirar finalmente a uma posição de maior relevância. Após a estabilização económica produzida pelos governos de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil dispara com as presidências de Lula da Silva (2002-2010). O comércio externo multiplica-se por dez, até aos 500 milhões de dólares (ainda assim, o peso das exportações no PIB brasileiro é de cerca de 12%, contra 46% de Portugal, por exemplo). A Cisa liderada por António Pargana posiciona-se para aproveitar a maré do crescimento do comércio externo brasileiro. O volume de compras e vendas é a sua maior preocupação. O modelo seguido vem do Japão: “Eles fazem milhões de dólares de movimento, mas ganham muito pouco em cada um”, explica. O labirinto fiscal e burocrático do Brasil estimulava a criação de um empório assim. “Existia espaço para uma empresa que resolvesse os problemas. Eu dizia: ‘Eu trato disso.’ Da logística, da fiscalidade, da distribuição, da burocracia, do financiamento.”

O sucesso da Cisa não parou de aumentar. Chegou a importar 120 mil automóveis. Torna-se o operador da Apple ou da L’Oréal. Num ano de cruzeiro, a empresa pode movimentar 440 mil itens. O volume de negócios chegou aos dez mil milhões de reais (cerca de três mil milhões de euros). E os dividendos cresceram nas mesmas proporções (30 milhões de euros de lucros líquidos). António Pargana, com um terço do capital da empresa, acumulava riqueza e património. À sua casa em Vale do Lobo juntou outra em Nova Iorque, onde passa temporadas para dar lastro à sua melomania – adora óperas. Outros investimentos estavam em carteira: na concessão de um porto no estado de Vitória, na energia, com empresas nos estados do Rio de Janeiro ou do Pernambuco. A acumulação de capital e o agravamento do “risco Brasil”, acentuado pela crise política que acabou na queda da presidente Dilma, criaram condições para uma nova fase da vida do empresário: o regresso às origens.

“Acredito em Portugal. Mesmo”

O flashback faz parte da sua forma de viver. Em 1995 tinha regressado a Angola para fechar o contrato para a gestão de duas fazendas produtoras de mandioca que ficavam a curta distância de Luanda. “Tivemos uma experiência triste. Uma das fazendas foi atacada pela UNITA. Raptaram dois homens nossos – um engenheiro e um operador de máquinas e levaram-nos para a Namíbia. Conseguimos recuperá-los um ano depois.” Jonas Savimbi exigia que o Brasil reconhecesse a UNITA, o que era uma impossibilidade: o Brasil fora o primeiro país a reconhecer a independência liderada pelo MPLA. “Tivemos de ir até à UNITA através de um antigo professor do Savimbi numa missão, que depois fez a ponte e o convenceu.” À frente da operação esteve António Pargana. “Eu fechei esse negócio, em 1995.” Mas a história deixou marcas. “Fiquei tão desgostoso com isso que nunca mais quis fazer negócios com Angola. Nem fui mais lá. Embora seja um país do qual tenho boas recordações, nunca mais quis voltar. Fiquei marcado”, relata.

Com Portugal a história era diferente. Durante toda a sua vida empresarial, António Pargana assumiu-se sempre como um membro destacado da elite económica de São Paulo, mas nunca deixou de seguir de perto a vida das associações de portugueses. Entre outras funções, chegou a ser presidente da Câmara de Comércio Luso-Brasileira de São Paulo, foi eleito várias vezes personalidade e empresário do ano, recebeu a comenda da Ordem do Infante D. Henrique das mãos de Cavaco Silva. Foi no final de 2015, o ano em que o BCP lhe propôs adquirir uma participação na Brisa e o levou a uma decisão nada difícil de tomar. Em conjunto com dois parceiros, cria a Global Roads e há dois anos injectou 770 milhões de euros na Brisa, o que lhe garantiu um terço do capital da empresa. Para lá deste investimento, António Pargana investe no imobiliário em Lisboa e estuda oportunidades de negócio noutras empresas nacionais. “Eu acredito em Portugal. Mesmo”, diz.

Como acredita no Brasil, embora lamente o grau de imprevisibilidade da política brasileira. “A classe política brasileira é um problema”, admite. E a conjuntura actual um buraco do qual não parece haver saídas óbvias. “Eu não gosto do Michel Temer [Presidente actual], não votaria nele nunca. Mas hoje ele é um mal menor”, diz o empresário. Para quem viveu o estertor da ditadura e a ascensão e queda da euforia democrática, a esperança de Fernando Henrique Cardoso e a rotina de Lula, a incerteza faz parte da vida. António continuará por isso no Brasil, embora com a atenção cada vez mais focada no que se passa em Portugal.

Aos 68 anos, não pensa em reformar-se, porque a instabilidade, o cansaço e o stress do dia-a-dia são para ele um tónico. Um dia, talvez a sua filha lhe suceda nos negócios. O filho, por seu lado, revela uma maior sensibilidade para a política do que para os negócios. “É um revoltado, um descrente e, quando há descrença na política, o que sobra?”, pergunta. Ambos estudaram nos Estados Unidos e a expectativa de António é que, não querendo ou não podendo ser bons executivos, ao menos que sejam bons accionistas. “Eles são diferentes de mim.” Porquê? Porque são de um outro tempo, de outro país, de outra condição social, em que não há países a nascer nem revoluções a concretizar. “A minha vida está muito ligada à necessidade. É a necessidade que faz o engenho”, remata entre um sorriso simultaneamente carregado de simplicidade e de satisfação. O tempo dos últimos homens do império, formados na metrópole e temperados no Ultramar, é definitivamente um tempo diferente. Um tempo que explica o percurso de um jovem de 26 anos que chega a São Paulo com 500 dólares e se transforma num homem muito rico e poderoso.

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