O turismo só é bom para os Açores se for bom para quem lá vive

A liberalização das ligações aéreas em São Miguel está em vigor há um ano e fez aumentar a procura e a oferta em 2015, ano em que se bateram todos os recordes nas dormidas dos hotéis e no número de passageiros. Depois do “ano zero”, o arquipélago está à procura do modelo perfeito.

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Capacidade turística dos Açores está definida num plano de ordenamento Rui Soares

Quando na Primavera do ano passado abriu as portas do seu hotel para que os representantes da Ryanair anunciassem os primeiros voos para o arquipélago, João Luís Cogumbreiro, director do Marina Atlântico, em Ponta Delgada, tinha a certeza de que alguma coisa iria mudar. No dia 29 de Março de 2015 chegou à ilha de São Miguel o primeiro voo da companhia irlandesa, que passou a fazer ligações diárias entre Porto e Lisboa até à principal cidade do arquipélago. No dia 2 de Abril a Easyjet começou a ligar Lisboa e Ponta Delgada.

“Sim, houve mudança”, admite. O Marina, por exemplo, pela primeira vez teve uma taxa de ocupação de 100% na passagem de ano e os Açores nem são, propriamente, o destino insular de que toda a gente se lembra para esta altura do calendário. O ano de 2015 foi o ano de todos os recordes: 1,5 milhões de dormidas em todas as tipologias (crescimento de 20%), quase 30% de aumento dos passageiros movimentados (1267 milhões de passageiros embarcados e desembarcados só em São Miguel, segundo a Vinci, a proprietária do aeroporto de Ponta Delgada) e há 264 novas empresas de animação turística licenciadas.

Mas nem o director daquele hotel de quatro estrelas — que, para já, continua a ser o mais caro de São Miguel (este ano devem abrir dois hotéis de cinco estrelas na ilha) —, nem os muitos turistas, comerciantes, residentes ou mesmo os responsáveis políticos regionais que o PÚBLICO contactou em São Miguel se permitem a lançar foguetes e fazer já a festa. Vítor Fraga, Secretário Regional dos Transportes e do Turismo (SRTT) e o autor deste novo modelo de acessibilidades, é o primeiro a admitir que “não há modelos perfeitos”. E este está, desde já, sujeito a revisão.

A alteração à política de mobilidade para a região resume-se em dois passos. O primeiro é o que transforma os Açores num único aeroporto e cada uma das suas ilhas num terminal — a política de reencaminhamento implica que quem está no continente pague o mesmo quer vá ou não para um dos “terminais” liberalizados (as gateways de Ponta Delgada, onde já há concorrência de mercado, e de Angra do Heroísmo, que ainda não despertou a apetência das low cost). O segundo passo foi deixar de pagar às companhias que prestam serviço público entre ilhas o subsídio de mobilidade, para passar a reembolsar aos passageiros o que despenderam nas tarifas acima do valor definido pelo Estado (86 euros por pessoa). Esta nova política deve continuar a custar os mesmos 16 milhões de euros que o Governo da República sempre pagou como subsídio à mobilidade dos açorianos. Mas, repete Fraga, “é um modelo sujeito a avaliação e a revisão”.

Faz sentido olhar para os números, não apenas do último ano, mas desde o arranque da legislatura em 2012. Foi, de facto, quando este modelo de acessibilidades começou a ser trabalhado ou que, “pelo menos, houve um membro do Governo da República [ministro da Economia, Pires de Lima] que quis ouvir o que [o governo dos Açores tinha] para dizer e sugerir”, acrescenta o secretário regional. Foi também a altura em que o destino Açores começou a merecer mais atenção dos media internacionais e a posicionar-se como um destino de eleição no turismo sustentável e de natureza. “Mudámos a política de comunicação. Continuámos a promover a natureza, mas falámos para o turismo activo, em vez do turismo contemplativo. Sofremos muito com as restrições económicas que sentiu o nosso principal mercado emissor, e que ainda é o continente, [e quisemos] captar a atenção de mercados com mais poder económico e que apreciam este tipo de turismo activo”, refere Vítor Fraga.

Os indicadores recolhidos mostram que foi uma boa aposta. O mercado internacional rapidamente superou a liderança que sempre pertenceu ao mercado nacional. Desde 2012, os mercados emissores dos Estados Unidos e Canadá cresceram 116%, França 91%, Reino Unido 89%, Suíça 84%, Alemanha 70%, Bélgica 66%, Itália 50%. Portugal, que no último ano foi ano foi quem mais beneficiou com este novo modelo de voos low cost cresceu 33%.

Paulo Pacheco é um desses empresários sintonizados com a nova política. Deixou o trabalho que exerceu durante anos num operador de turismo para fundar a sua Azorean Active Blueberry. “Os Açores recebem agora pessoas de todo o mundo!”, relata empolgado, no dia em que deu boleia a um grupo de lituanos que aterrou na ilha para uma estadia de três semanas sem nada marcado. “Disseram-me que nunca tinham ouvido falar dos Açores. Mas entraram no site da Ryanair, viram uma promoção para os Açores, foram ver o que era e onde ficava. Viram na Net umas furnas, uma caldeira, a lagoa das Sete Cidades e não hesitaram. Marcaram voo até ao Porto e do Porto para cá”, conta o empresário. “ E nunca tinham ouvido falar de nós!”, repete, disposto a contar mais exemplos do género. “Há três semanas tive dois clientes da Eslovénia que aproveitaram uma promoção via Londres”, acrescenta. A Ryanair, que também opera uma ligação Londres-Ponta Delgada, já é o terceiro operador com uma quota de 20,7% no aeroporto de Ponta Delgada. A Sata Internacional tem 38% e a Sata Air Açores,27%.

São os próprios mecanismos de promoção das low cost ou de motores de busca e reservas como o Expedia, o Kayak, ou mesmo o Booking que acabam por contribuir muito para a divulgação do destino. Roberto Couto, 32 anos, está a sentir na pele esta tendência. Proveniente de uma família ligada à construção civil, mudou de área com a crise no sector e criou uma consultora de insolvências e recuperação de créditos para acudir a empresas em falência. Em Maio de 2015, num dia em que um cruzeiro tinha atracado nas Portas do Mar (e por esta altura já ali escalam 150 navios por ano), viu o centro histórico de Ponta Delgada cheio de turistas. “Esta rua (Rua António José d’Almeida, um troço pedonal junto à igreja da matriz) estava cheia de gente para cima e para baixo. Desafiei o meu sócio a pensar se nós também não arranjaríamos qualquer coisa para lhes vender”, conta.

Não demorou muito tempo a encontrar uma solução: tinham experiência em planos de negócio, tinham experiência em construção, sabiam que aquele casarão onde hoje funciona a guesthouse Casa da Matriz estava devoluto. “Demorou pouco mais de meio ano desde que tivemos a ideia até que abrimos as portas”, conta. A Casa da Matriz abriu a 6 de Janeiro de 2016 e os seus cinco quartos têm estado quase sempre ocupados. “Foi uma surpresa total. Pusemos a Casa da Matriz no Booking, os comentários foram sempre bons. A rotação é enorme, mas a casa está sempre cheia”, descreve Roberto, assumindo que 90% das vezes não está na guesthouse para receber os clientes, porque não concebeu o espaço a pensar em constituir uma equipa fixa de recepção. “As pessoas também gostam desta autonomia. E isso também foi uma surpresa para mim”, admite.

Na ilha de São Miguel existem actualmente 407 unidades de alojamento, das quais apenas 41 são hotéis tradicionais. Há ainda 67 casas de turismo em espaço rural e quase 300 alojamentos locais, um número que engloba desde guesthouses como a de Roberto aos sete hostels que existem em Ponta Delgada.O primeiro abriu há pouco mais de três anos.

No total, a ilha de São Miguel oferece 7399 camas. Em todo o arquipélago a oferta atinge as 14.045 camas, segundo o secretário regional. Até ao final de 2017 devem estar abertas ao público mais 197 unidades que vão acrescentar ao arquipélago 1612 camas — 1352 serão em São Miguel e, metade destas, apartamentos de quatro estrelas. Estes apartamentos terão mais 640 camas, incluindo as que vão estar nos 11 apartamentos que Roberto Couto está a construir, ali bem perto da igreja matriz. “Desta vez vão ter recepção e tudo”, sorri Roberto Couto, que ainda tem pudor em assumir-se empresário do turismo (“Ainda sou um engenheiro com um MBA que se especializou a ajudar empresas em dificuldade”). O gestor assume que tem algum receio de que haja excessos, isto é, “que haja demasiada gente a querer beber do mesmo pote”.

“Temos vantagens em ter chegado mais tarde do que os outros a este filão do turismo. Aqui há margem para progredir, mas temos a obrigação de não cometer os mesmos erros que outros cometeram e o dever de não estragar aquilo que temos de mais precioso, a natureza”, comenta. O empresário partilha a mesma ideia de Vítor Fraga: o turismo nos Açores ainda tem muita margem de progressão: pesa “apenas” 4% no PIB regional. Contudo, o secretário regional diz que irá defender o crescimento desta actividade apenas enquanto for boa para quem vive na região. “Assentamos a nossa estratégia em três pilares de sustentabilidade. A ambiental e a económica mas também a social. A natureza é o nosso principal activo, o que nos caracteriza é esta espécie de isolamento positivo. Por isso digo que não necessitamos das grandes cadeias de hotéis que tanto estão aqui como em qualquer outra grande cidade. Mas necessitamos de unidades hoteleiras focadas na nossa oferta de natureza e de hotéis de charme com qualidade. Porque não há nenhum contra-senso em abrir o espaço aéreo às low cost e autorizar a abertura de unidades de luxo. O preço da acessibilidade não tem nada que ver com a qualidade do destino”, diz o secretário regional.

Os açorianos com quem o PÚBLICO conversou nunca nomearam nenhum exemplo com que se quisessem comparar pela positiva ou pela negativa. Foi antes Francisca Correia e António Santos, um casal de Odivelas, quem arriscou. “Nota-se bem que não gostam de ser comparados à Madeira!”, diz António. Este reformado da indústria de componentes de automóvel esteve várias vezes no Funchal, mas nunca tinha visitado os Açores. “Os bilhetes eram muito caros. Por aqueles preços, 300, 400, 500 euros, havia sempre outros destinos onde nos apetecia ir antes”, explicou. Agora que baixaram tanto “não há nenhuma razão para não vir”, diz Francisca. Pagaram cerca de 80 euros pelo bilhete. O marido diz que o destino “ainda está muito em bruto [comparado com a Madeira]”. A mulher acrescenta: “É por estar em bruto e por ser só natureza, que os Açores são tão bonitos.”

Com a preocupação de qualificar a nova oferta e de requalificar a existente, o governo regional avançou para a elaboração “do plano mais abrangente que alguma vez foi feito no sector” e apresenta, nos próximos dias, um novo “Plano de Estratégia e Marketing do Turismo nos Açores”, adianta Vítor Fraga. Foram feitas mais de mil entrevistas à população, foram consultados os operadores que já estão no terreno e os que mostram potencial para lá estar, foram ouvidos os partidos políticos e os agentes económicos que se relacionam de forma indirecta com a indústria do turismo. “Produzimos um documento estruturado e orientador para todo o sector. E estará na base da revisão do Plano de Ordenamento do Turismo nos Açores (POTRA), uma espécie de tábua da lei para vigorar até 2020.”

É ele que define, por exemplo, a capacidade de carga que podem receber alguns locais, sempre tendo em vista a preservação do património natural e social. O acesso à Caldeira Velha passou a ser pago. Colocar uma panela nas Furnas para fazer o cozido também. “Nós sempre o fizemos sem pagar. Mas, se pensarmos que estes três euros vão ajudar a pagar o salário de quem aqui está a fazer os buracos e a levantar o cozido, acho que não devemos reclamar”, diz Nuno Pacheco, um micaelense que estava a mostrar a um amigo lisboeta uma das maiores atracções da terra.

Há outros exemplos detectados pelo PÚBLICO entre os empresários e residentes que mostram essa boa sintonia com as políticas que vão ser vertidas no POTRA. Gil Sousa, um assistente social que decidiu abrir uma loja de gelados de iogurte, a Natur Frozen Yogurt, com dois amigos, levou esse conceito de sustentabilidade social até ao limite: os fornecedores são locais, o mobiliário foi feito no atelier de carpintaria da associação Arrisca, que trabalha com população em exclusão social, o espaço tem um ar moderno, voltado para turistas e para os residentes adolescentes que, como todos os outros, não largam o telemóvel e dizem por onde andam nas redes sociais.

Adivinha-se maior procura de espaços de gastronomia e já há restaurantes gourmet a complementar a oferta, como o Big21, ou espaços multidisciplinares que surpreendem pelo conceito e pela qualidade, como a Tasca, onde o nome apenas faz jus ao aspecto do espaço, que ocupa um grande armazém no centro da cidade, está aberto até às duas da manhã e precisa de reserva para se garantir lugar ao jantar. Oferta que convive com a mais antiga, como a do Alcides, uma casa com mais de 50 anos e que ficou famosa pelo seu bife. “No ano passado servíamos 15 refeições numa noite de Inverno. Agora temos sempre a casa cheia”, disse um funcionário numa noite em que o PÚBLICO confirmou as mesas lotadas. O bife continua em alta, que os Açores são terra de bom gado, mas é o Rotas da Ilha Verde, um restaurante vegetariano, que garante os lugares cimeiros na tabela das preferências do Tripadvisor. Em breve também haverá uma carrinha de street food, como confirmou ao PÚBLICO Leandro Verdinho, que já tem o seu projecto empresarial aprovado, mas, para já, ainda transporta turistas no único tuk-tuk da cidade. As pessoas organizam-se, procuram o seu quinhão. Assim como os taxistas, que já perderam muito do trânsito a partir do aeroporto por causa de um serviço de transfer montado por uma empresa de Lisboa e continua a perder muito para os carros alugados — as rent-a-car são as empresas de animação turística em maior crescimento. Só em 2015 foram licenciadas 114 novas empresas em todo o arquipélago. Em São Miguel existem 4500 viaturas e uma pequena operadora, como a Varela, do grupo Bensaúde, que tem actualmente uma quota de mercado de 6%, terá 250 viaturas até final de 2016. Os cem taxistas com praça em Ponta Delgada respondem organizando pacotes de oferta turística que publicitam em outdoors.

Há abertura, mais curiosidade, uma espécie de cosmopolitismo a conviver com lojas abertas há mais de 70 anos. Como a Camisaria Londrina, onde Carlos Sá trabalha há 41. “Não podemos fechar as portas nas alturas em que os clientes têm mais tempo para comprar. Temos de abrir aos fins-de-semana. Vejo pela minha experiência, porque é quando estou de férias que tenho mais tempo para entrar numa loja e escolher uma camisa”, diz, divertido. E recorda que, se as low cost trazem muita gente para o arquipélago, também há muitos a sair para conhecer mundo e as grandes cadeias de retalho. “Agora a Primark está cheia de açorianos às compras”, ironiza. Não parece, porém, que haja medo da globalização, porque os açorianos — e os continentais que se renderam ao arquipélago — mostram estar muito zelosos do património natural e da região.

Catarina Ferreira, nascida na Benedita há 40 anos e residente em São Miguel há quase 16, é um desses exemplos. Quando chegou à ilha, para assumir um lugar de educadora de infância, tinha um grande problema para resolver: tinha tempo a mais, não sabia o que lhe fazer. Foi-se ocupando a fazer artesanato (trabalha em cerâmica), acabou a montar uma loja no Rotas da Ilha Verde, que depois transformou em casa de chá com produtos regionais, e que agora está transformado em restaurante vegetariano. Vendeu bolas-de-berlim e alugou bicicletas, mas nunca deixou de ser educadora de infância. “É o que me faz feliz”, conta.

Abriu o primeiro hostel da ilha, o 3/4, que também é hamburgueria e café e que acabou por passar a um amigo. Catarina diz que não é empresária e que tem a sorte de não perceber nada desses números. Diz apenas que emprega a sua energia e paixão a oferecer produtos de qualidade e que acha que, se ela gosta, outras pessoas vão gostar. Agora, o tempo que lhe sobra é empregue noutro projecto: o Louvre Michaelense, porventura o espaço comercial mais original de Ponta Delgada. Foi loja de chapéus importados de Paris, foi casa de tecidos e retrosaria. A família recusou propostas de grandes cadeias para ali abrirem lojas e cafés e “ofereceu-a” a Catarina, que ali montou uma “mercearia do mundo”. No Louvre cabe artesanato e biscoitos, chás e brinquedos, copos de vinho e jogos tradicionais. E muito respeito pela qualidade dos produtos locais. É bom fazer turismo nos Açores, porque o turismo é bom para quem lá vive. 

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