"A raiva está a transformar-se em resignação"

O ex-ministro das Finanças grego que assinou o primeiro programa de assistência financeira, George Papaconstantinou, conta que “até que a Alemanha decidisse, muito pouco acontecia”, e defende que "o BCE é quem tem verdadeiramente a 'chave do reino'”.

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Em 2010, as medidas de austeridade aplicadas na Grécia passaram a ter um rosto: o de Papaconstantinou ARIS MESSINIS/AFP

O momento em que a Grécia teve de ser resgatada, em 2010, foi um ponto de viragem histórico para o país e para a União Europeia. Pela primeira vez, admitiu-se que um Estado-membro da zona euro não iria conseguir cumprir com os pagamentos junto dos credores. O programa de assistência financeira, que acabou por envolver o FMI, foi negociado, e depois assinado, por George Papaconstantinou, então ministro das Finanças do governo socialista do Pasok liderado por Papandreou. A partir desse momento, as medidas de austeridade passaram a ter um rosto: o seu.

Com o partido em ebulição, Papaconstantinou acabou por ser afastado do cargo em Junho de 2011, sendo-lhe atribuída a pasta do Ambiente. Agora, seis anos depois, publicou um livro (Game over, editado em grego e inglês), onde relata as suas vivências ao longo de todo o processo. Começando com a vitória do Pasok, em 2009, desenvolve com pormenores os vários momentos-chave que conduziram ao regaste, as reuniões de alto nível que se seguiram depois e segue a linha temporal até hoje, com fortes críticas ao governo de Tsipras.  Game over é também o seu ajuste de contas com a história, e o último capítulo do livro é guardado para o julgamento de que foi alvo por causa do caso da “lista Lagarde”.

Num processo complexo, foi acusado de ter retirado três familiares de uma listagem de nomes de gregos com depósitos na Suíça e que teriam fugido aos impostos, entregue pela então ministra das Finanças francesa. Foi ilibado de várias acusações (as mais graves), mas não escapou a ser condenado a um ano com pena suspensa, após os juízes terem deliberado que alterara o documento em causa. Papaconstantinou, que sempre defendeu a sua inocência, afirma ter sido escolhido como bode expiatório. Tendo como ponto central o livro, o ex-ministro fala sobre o poder alemão (“até que a Alemanha decidisse, muito pouco acontecia”) e do BCE (“se o BCE decidisse estrangular os sistemas bancários grego ou português, conseguiria fazê-lo”), da divisão entre o norte e o sul da Europa, do seu país e dos gregos. Não vislumbrando que Atenas consiga voltar aos mercados em 2018, diz que a raiva dos cidadãos “está a transformar-se progressivamente em resignação”.

Qual foi a sua pior experiência enquanto ministro das Finanças da Grécia? O momento em que assinou o primeiro memorando com a troika?
Houve vários momentos difíceis, é complicado escolher um caso isolado, mas diria que foi quando, depois de termos assinado o resgaste, estávamos a discutir a votação da lei [ligada à aplicação do resgate] no Parlamento e havia uma enorme manifestação no exterior do edifício. Nessa altura, um grupo pegou fogo a um banco e houve três mortos. Penso que esse momento foi o mais difícil.

Como é que se sentiu quando percebeu que era a pessoa com a qual as pessoas relacionavam as medidas de austeridade? Escreveu no seu livro que se sentia cercado na sua própria casa.
Não é algo em que se pense no próprio momento. Na altura, só pensava em saber como é que poderíamos sair daquela confusão. Mas houve momentos, como quando, na conferência de imprensa em que anunciámos as medidas do primeiro programa, um jornalista britânico me perguntou: “Como é que se sente ao ser o homem mais odiado da Grécia?”. Tenho de confessar que essa pergunta me apanhou de surpresa. Ainda não tinha assumido que, ao assinar aquele memorando, passara a ser a cara da austeridade. Claro que, mais tarde, quando caí muito nos inquéritos de popularidade e ficou difícil andar nas ruas, isso tornou-se óbvio. Mas naquele momento, quando estávamos a tomar as decisões, isto não eram questões que levássemos em consideração.

Deixou de andar nas ruas de Atenas?
Sim, durante muitos anos tornou-se muito difícil ter uma vida normal, andar na rua, ir a um restaurante, ir ao cinema. Tinha sempre de andar com seguranças, e ainda agora tenho alguma segurança comigo. Mas estas dificuldades apresentam-se para todos os políticos na Grécia. Têm sido uns extraordinariamente longos seis anos de aplicação do memorando, com muita raiva, muitas falsas esperanças, muitas promessas vazias. As pessoas primeiro ficaram zangadas connosco, depois com aqueles que nos sucederam e agora estão zangadas com o Syriza, por lhes terem mentido.

Não sente que há agora uma melhoria do ambiente?
A raiva está a transformar-se progressivamente em resignação. Já não é tão violento como antes.

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Livro foi editado em Maio, em grego e inglês

A resignação é melhor do que a raiva?
São os diversos estágios de um luto. Primeiro, a negação; depois, a raiva; a seguir, a resignação; e no fim, a aceitação. Espero que, à medida que o país conseguir começar a sair da crise – algo que ainda não está a acontecer –, as pessoas possam olhar para as coisas de forma diferente e fiquem mais abertas a reconhecer aquilo que realmente estava mal. Por muitos anos só culparam os que, quando a música parou, acenderam as luzes e disseram: “A festa acabou.” Ninguém gosta de ouvir isso e, por essa razão, toda a raiva foi para aí direccionada.

Não houve falhas no primeiro programa que assinou com a troika? Como impor demasiada austeridade com a economia em recessão?
Penso que o primeiro memorando foi um filho da necessidade. Chegou demasiado tarde porque a Alemanha não quis ser mais rápida por causa das eleições. E foi assinado num ambiente em que havia muito pouca confiança em relação à Grécia. Os parceiros europeus e o FMI não estavam ainda dispostos a aceitar que aquilo que era necessário era a criação de um mecanismo de resgate mais convincente que pudesse ser usado por qualquer país europeu, não apenas a Grécia. Era isso que os mercados queriam. Os mercados não queriam apenas austeridade. Isso foi evidente pelo facto de apenas uma semana após o nosso resgate ter havido outra vez uma crise, e só então um mecanismo maior foi criado. Por tudo isto, temos de julgar o programa tendo em conta o contexto em que foi assinado, que era muito hostil para a Grécia. Isso reflectiu-se no programa: as taxas de juro eram demasiado elevadas, o período de pagamento era demasiado curto. Estas duas características foram depois corrigidas. E, claro, havia uma carga muito pesada de austeridade logo no início para convencer os mercados. Tudo isto contribuiu para uma recessão mais profunda e, consequentemente, para a necessidade de aplicar ainda mais medidas.

O problema não foi o programa não ter sido verdadeiramente implementado?
Se me pedir para dizer três razões pelas quais o primeiro programa não permitiu à Grécia recuperar o acesso aos mercados, diria que a número um foi a continuação de uma conjuntura externa negativa, nomeadamente com o impacto das decisões tomadas em Deauville e o pedido de resgate por outros países. Como razão número dois colocaria a falta de entendimento entre os partidos políticos na Grécia, com muito populismo a surgir contra o programa. E só como terceira razão diria a existência de algumas dificuldades na implementação. Porque, pelo menos do lado orçamental, a implementação foi muito boa. Do lado estrutural, pode-se argumentar que houve algum atraso, mas não foi essa a principal razão para que a Grécia não tenha conseguido regressar aos mercados tal como planeado.

Foi por causa da declaração de Deauville que Portugal e a Irlanda acabaram por ter de recorrer também a um resgate?
Deauville foi uma boa ideia muito mal executada. A ideia fundamental de que os bancos também precisavam de pagar, e não apenas os contribuintes, era uma ideia correcta. Assumir que teria de haver algum tipo de reestruturação de dívida não era um mau pensamento, mas quando se preanuncia em 2010, como fizeram em Deauville, que em 2013 os investidores privados poderiam ficar com perdas, o que se está a fazer é convidar os investidores privados a largarem os títulos de dívida dos países. Se se olhar para os números, chega-se à conclusão de que Deauville foi o acontecimento individual que levou a Irlanda a recorrer ao mecanismo de mercado e possivelmente também Portugal. No caso da Grécia foi certamente aquilo que travou a descida dos nossos spreads, porque entre Maio de 2010 (quando assinámos o memorando), e Novembro de 2010 (quando aconteceu Deauville), os spreads caíram cerca de 350 pontos-base. Havia um sentimento geral de que a Grécia estava a conseguir ter resultados com o seu programa, mas depois, a partir de Deauville, tudo começou a correr mal. Foi certamente um ponto de viragem.

No relato que faz da crise, é notório que muitas reuniões decisivas foram feitas na presença das instituições da troika e de grandes países, como a Alemanha e a França, e que os pequenos países estiveram ausentes do processo de decisão. É assim que funciona?
Sim, isso é verdade. É um dos principais problemas na forma como gerimos a Europa. Cada vez menos é o espírito comunitário que impera. Cada vez mais, o que temos são mecanismos intergovernamentais. Na prática, até que a Alemanha decidisse e levasse atrás de si os outros países, muito pouco acontecia.

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"Lembro-me de o ministro das Finanças português [Teixeira dos Santos] estar muito calado no início da crise, porque sabia que o próximo na linha de fogo seria ele" REUTERS/Francois Lenoir.

E os países pequenos?
Os países pequenos como Portugal estavam numa posição particularmente difícil. Lembro-me de o ministro das Finanças português [Teixeira dos Santos] estar muito calado no início da crise, porque sabia que o próximo na linha de fogo seria ele. O mesmo acontecia com o ministro espanhol, o irlandês e até o italiano. Os países, principalmente no Sul, não só estavam silenciosos como não houve qualquer tentativa de formar uma espécie de coligação connosco. Aliás, no princípio, ninguém queria sequer falar connosco, esperando que nenhum tipo de atenção se virasse para eles.

A Grécia era como o miúdo vítima de bullying na escola...
Era um pouco isso. Com o tempo passou a haver uma divisão Norte-Sul no Eurogrupo. De um lado estava a Alemanha, Holanda e Finlândia, também com o apoio dos pequenos Estados bálticos. Do outro estava a Grécia, e passou a estar a Irlanda, Portugal, Espanha, Itália. A França estava algures no meio. Mas, claramente, as decisões estavam a ser tomadas pelos países do Norte, especialmente a Alemanha.

O problema entre os países do Sul foi de falta de coordenação? Ou isso não faria diferença?
No princípio, os outros países periféricos pensaram que este era um problema grego e, por isso, decidiram deixar a Grécia lidar com isso. Mas com o tempo foram percebendo que era um problema bastante mais vasto, um problema sistémico, para o qual seriam arrastados. O problema é que nessa altura já era tarde demais para conseguir organizar algum tipo de resposta colectiva. Francamente, não se conseguiria ter uma resposta colectiva forte se apenas se conseguisse juntar os países mais pobres. Seria preciso ter pelo menos um país dos mais fortes, talvez a França, para actuar como um contrapeso face à Alemanha, o que nunca aconteceu na altura e também não acontece agora.

O que achou da cimeira dos países do Sul que se realizou agora em Atenas? Pode ser um factor de mudança significativo?
É evidente que existe uma diferença crescente entre os países do Norte e do Sul da Europa, e isso exige que se trabalhe no sentido de elaborar propostas políticas e de se fazerem esforços diplomáticos e negociais sérios. Porém, acho que o objectivo de Tsipras com a cimeira é principalmente simbólico, para poder melhorar a sua imagem internacional. Não tenho grandes esperanças de que possa fazer a diferença.

Um dos aspectos da declaração conjunta foi o apelo a mais crescimento e investimento na Europa...
Todos concordam nas palavras, mas quando se chega aos pormenores... Há demasiadas declarações, mas as acções concretas são muito poucas. O crescimento e o investimento exigem não só um impulso mais forte na direcção das reformas (e há muitos a desacelerar) como também projectos e instrumentos de um carácter mais europeu. Neste contexto, o plano Juncker não é a solução e não estamos a colocar instituições como o Banco Europeu de Investimento realmente a funcionar.

Durante a crise, Wolfgang Schäuble era a pessoa com a última palavra?
A Alemanha, de um lado, e o BCE, do outro, foram as duas forças que desempenharam um papel mais decisivo nas negociações. Não haveria mecanismo de resgate na Europa se a Alemanha não assinasse. Se Angela Merkel não fosse convencida a participar, nada aconteceria. A Alemanha tinha a última palavra sem dúvida. Mas dentro da Alemanha as coisas não eram simples. No princípio, Wolfgang Schäuble estava muito mais disponível do que a chanceler para ir na direcção da criação de um mecanismo. Portanto, o Governo alemão não falava apenas a uma voz. Eu critico no livro o facto de a Alemanha ter sido lenta e ter mostrado uma grande falta de visão, mas ao mesmo tempo tenho de reconhecer que Angela Merkel conseguiu convencer os eleitores alemães a deitar fora a regra de não bail-out que está nos tratados, o que, para a Alemanha, dada a sua história, é um grande feito.

E o BCE?
O BCE, apesar de não ter direito de voto no Conselho, é quem tem verdadeiramente a “chave do reino”, porque tem a chave para a liquidez de todos os bancos da zona euro. Se o BCE decidisse estrangular os sistemas bancários grego ou português, conseguiria fazê-lo. No caso da Grécia, a reestruturação da dívida foi adiada porque o BCE se recusou pura e simplesmente a discuti-la.

Houve uma mudança significativa quando Mario Draghi substituiu Jean-Claude Trichet?
Sim, sem dúvida. Draghi estava muito mais aberto em relação a uma reestruturação. Ele permitiu imediatamente, embora de forma prudente, que essa discussão fosse feita. Aliás, os próprios países da zona euro esperaram pela mudança de guarda no BCE para avançar com o processo de reestruturação a partir de Outubro de 2011.

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"Se Schäuble visse que as coisas não estavam a ir na direcção que queria, estava disposto a passar por um processo de saída da Grécia do euro" JOHANNES EISELE/AFP

No livro, diz que em Setembro de 2011 Schäuble falou pela primeira vez de uma saída amigável da Grécia da zona euro. Era uma proposta real?
Essa é uma pergunta a que não posso responder com toda a certeza. Acredito que havia um ponto a partir do qual o ministro das Finanças alemão não estava disposto a ir. Por outras palavras: se visse que as coisas não estavam a ir na direcção que queria, estava disposto a passar por um processo de saída da Grécia do euro. Não era uma ameaça vazia, mas também não acredito que fosse a solução preferida. Em qualquer dos casos, o facto de a hipótese “Grexit” ter estado presente durante tanto tempo foi catastrófico para a Grécia. Enquanto isso aconteceu, os mercados não tiveram qualquer vontade de voltar a financiar o país.

Essa perspectiva de “Grexit” ainda está presente?
Depois de, nos primeiros seis meses de 2015, se ter estado às portas de um desastre total, depois de Tsipras ter voltado atrás e ter assinado o novo programa, o medo de um “Grexit” desapareceu. Para ser honesto, nunca acreditei que a Grécia pudesse ser empurrada para fora do euro, mas temi que, em 2015, o próprio Governo grego tomasse as medidas que precipitariam para uma saída. Agora passámos isso e continua a haver uma forte maioria de gregos – não tão forte como antes, é verdade – que defende a manutenção na zona euro.

Mas os juros da dívida grega ainda estão muito elevados face aos outros países...
Sim, absolutamente. Com isto não estou a dizer que os mercados estejam convencidos... Em 2013 e 2014 verificou-se o início de uma recuperação, havia sinais de confiança, isto apesar dos erros feitos pelo Governo da Nova Democracia, liderado por Antonis Samaras. Os investidores que surgiram não eram os que o país precisava, de longo prazo, mas antes os hedge funds, investidores de curto prazo. Com Tsipras foram-se embora de novo. Neste momento, os investidores estrangeiros não estão convencidos de que haja condições para estarem presentes. A instabilidade política continua a ser um problema, mesmo que o cenário catastrófico de uma saída do euro já não esteja presente.

Falou do terceiro resgate, que teve início faz agora um ano. Depois de cerca de 300 mil milhões de euros em empréstimos, e um forte perdão da dívida, o que é que ainda está errado com a economia grega?
Acho que não tem que ver com questões orçamentais, mas sim com o funcionamento das instituições. Na parte orçamental, a maior parte está feita, com uma enorme consolidação num curto espaço de tempo. Fizeram-se avanços em áreas como as pensões, a abertura de profissões, no mercado de produto, facilidade de fazer negócios... muito foi feito, embora não tudo. Em áreas como o funcionamento da justiça, impostos, edificação de instituições ligadas aos investidores, ainda há um longo caminho a percorrer, e acho que é isso que está a bloquear o país. O actual Governo não está a dar passos no sentido de tornar a economia grega mais competitiva, mais aberta, mais inovadora.

Deve haver uma reestruturação da dívida?
Se se olhar para o curto prazo, percebe-se facilmente que essa não é a principal questão. No entanto, os investidores estão focados no médio e longo prazo e, olhando para o calendário de pagamentos após 2020, percebe-se que será demasiado pesado para a Grécia. Nesse sentido, sim, acho que será necessário algum tipo de alívio da dívida. Não espero que seja um corte directo, já que a maioria da dívida está nas mãos de instituições oficiais e os governos não estão dispostos a dizer que vão perdoar parte da dívida grega. Mas um alongamento sério das maturidades, conduzindo os juros a pagar a níveis muito baixos, num período de tempo muito longo, seria o equivalente a um corte da dívida. 

O acordo que envolveu a Grécia e os parceiros europeus só prevê uma decisão efectiva em 2018, após o fim do actual programa...
Infelizmente, sim. Neste aspecto acho que a razão está do lado do FMI. O FMI é muitas vezes considerado o mau da fita, mas em alguns aspectos tem uma visão mais lúcida do que os parceiros europeus. Sempre argumentou, por exemplo, que era necessário um período mais prolongado para a consolidação orçamental, de modo a que a recessão não fosse tão profunda — e tinha razão. Está a defender, tal como já fez antes, que é preciso uma reestruturação da dívida, porque há um problema com a sua sustentabilidade. Espero que o FMI consiga convencer os parceiros europeus a avançar mais rapidamente nesta matéria, mas não ignoro que há aspectos políticos a ter em conta, como as eleições na Alemanha.

O FMI vai acabar por se juntar ao BCE e aos restantes parceiros europeus no actual programa?
Em Abril, todos declararam vitória, mas pouco ficou decidido de facto. Tendo em conta a avaliação interna que o FMI fez ao programa grego, conduzida de forma independente e em que se defendeu que o FMI deveria ter pressionado de forma mais profunda uma reestruturação, acho difícil que dê esse passo agora e que participe no programa sem que os países europeus alterem a sua posição actual.

Mas isso seria um problema para a Alemanha.
Bom, a Alemanha terá de decidir se quer que o FMI participe, por questões de política interna, e convencer os seus contribuintes de que há alguém à mesa que “fala mais duro”. Porque não é uma questão de dinheiro — o contributo do FMI nesse aspecto é pequeno. É por causa da imagem e da experiência. E, neste último aspecto, as instituições europeias também ganharam experiência. Se me perguntasse se gostaria que o FMI participasse, diria que, como cidadão europeu, seria melhor uma solução europeia. Porém, depois de ter visto que a nível europeu muitas vezes se tomam decisões com base em critérios meramente políticos, acho que é importante ter a voz do FMI.

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O actual governo, liderado por Tsipras, "é populista", e "está a tentar controlar o Estado" REUTERS/Alkis Konstantinidis

Em relação ao actual Governo, como é que vê o relacionamento com os parceiros europeus, numa fase em que está a decorrer a revisão do programa? Há quem diga que estão a fazer todos os possíveis para receber a segunda tranche do empréstimo, mas tentando cumprir o mínimo possível.
Em primeiro lugar, acho que fora da Grécia muitas pessoas olham para este Governo como sendo progressivo, quando não o é. É um Governo populista, regressivo, que se deitou na cama com um partido de extrema-direita e xenófobo, o Gregos Independentes. É um Governo que está a tentar controlar o Estado, e que, embora diga que está a combater a corrupção, está a ter uma das actuações mais negativas em termos de clientelismo. Em relação ao programa, desde o início assinaram algo em que não acreditam, pelo que estão a fazer o mínimo possível. É certo que os governos anteriores também tinham problemas de identificação com os programas, mas neste caso é mais extremo. As partes mais importantes do programa, que não são os cortes, mas sim as questões estruturais, como as privatizações e a abertura da economia, não vão acontecer. Isso é frustrante para os empresários e para os parceiros europeus, e não haverá o regresso do crescimento. Acho que vamos assistir a um enorme atraso da primeira revisão do programa, que já devia ter chegado ao fim. A tranche que devia chegar em Setembro não vai ser paga dentro dessa data e duvido que tal aconteça até ao final do ano. Assim sendo, vai haver novamente problemas de liquidez.

Pelo que diz, não acredita que a Grécia regresse aos mercados em 2018 e deixe de ter um programa.
Para sair do programa é preciso substituir os empréstimos oficiais por empréstimos junto do mercado. As necessidades serão menores, com um saldo primário positivo, mas, mesmo assim, será preciso ter algum acesso aos mercados. Neste momento, não acho que isso seja possível.  

Qual é o impacto da crise dos refugiados, no meio de tudo isto?
A crise dos refugiados é um elemento muito importante na questão europeia, e que não facilitou o espaço de manobra dos países do Norte para avançarem com mais medidas de apoio ao Sul. No nosso caso, fomos apanhados com um problema muito difícil de resolver, com a Turquia, por um lado, que usou esta crise para beneficiar da sua localização geoestratégica na sua relação com a Europa e, por outro, os países europeus que tentaram fechar as portas e fingir que o problema não existia. Assim, fomos apanhados no meio e não estávamos na melhor situação para negociar.

Porque decidiu escrever este livro agora? Quis esperar pelo fim do julgamento do caso da "lista Lagarde"?
Antes de mais, precisava de escrever este livro por razões pessoais. Quando se atravessa um período tão dramático, é preciso explicar o que se fez, e porque é que se fez de determinada maneira. O julgamento também influenciou, porque era difícil escrever enquanto ele decorria. Este é também um bom calendário político para o livro ser editado, porque se completou um ciclo. As pessoas verificaram que as promessas do Syriza para uma alternativa não tiveram sucesso. Havia questões a que eu queria responder: porque é que a Grécia é o único país ainda com um resgate, quando outros países, como Portugal e Irlanda, que foram resgatados depois, saíram mais rapidamente dos programas do que nós? No caso de Portugal, não quer dizer que tenha resolvido tudo, mas nós certamente fizemos algo de errado — e queria discutir isso. Os meus problemas pessoais reflectem isso: este país adora bodes expiatórios. Infelizmente, vive-se num estado de negação e, em vez de reconhecer os problemas e lidar com isso, prefere-se encontrar alguém a que possa apontar o dedo e culpar. Eu fui um dos visados.

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