TTIP: as negociações continuam, as críticas também

A União Europeia tem um historial bastante questionável de uso de modelos económicos e de criação de “expectativas ficcionais”

1. Entre 22 e 26 Fevereiro 2016 decorreu, em Bruxelas, a décima segunda ronda de negociações da Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento (Transatlantic Trade and Investment Partnership TTIP). Há duas novas rondas de negociações previstas para os próximos meses, uma em Abril, a outra em Julho. A União Europeia (UE) e os Estados Unidos da América (EUA) reiteraram a intenção de concluir as negociações até ao final de 2016, antes do final do mandato do Presidente norte-americano, Barack Obama. Em paralelo às negociações — e ao optimismo oficial dos negociadores quanto aos ganhos para ambos os lados do Atlântico —, as críticas voltaram a emergir em força. No cerne da polémica está o facto de as negociações serem muito mais abrangentes do que as de um acordo de comércio livre clássico e nem sempre existir transparência sobre o que se está a negociar. Isto, apesar do grau de informação pública ser muito superior ao que era habitual neste tipo de negociações. (Uma vitória dos críticos e da pressão exercida pelas ONG) A realidade é que o potencial impacto sobre a economia e sociedade é também muito vasto. A remoção de direitos aduaneiros e restrições quantitativas — o domínio clássico de uma negociação comercial internacional —, tem consequências sobre as empresas, os consumidores. Mas dado o nível médio dos direitos aduaneiros ser já baixo, entre europeus e norte-americanos, não é aí que estão as maiores controvérsias.

2. As negociações entraram numa fase crucial. Pelos dados vindos a público, os EUA terão proposto eliminar totalmente os direitos aduaneiros em 87,5% das suas categorias pautais. Do lado europeu, a contraproposta terá sido a de que a eliminação poderá chegar até 97% de todas as categorias pautais aduaneiras. Mas os direitos aduaneiros estão a ser aqui usados como moeda de troca para abertura do mercado dos concursos públicos. Dessa forma, as grandes multinacionais, por exemplo da construção civil / infra-estruturas de transportes, ou do sector automóvel, poderiam vender os seus produtos e / ou serviços a entidades públicas dos EUA. Claro que o inverso também seria possível, ou seja, empresas norte-americanas terem acesso ao mercado público dos diferentes Estados-Membros da União Europeia. Não é líquido o resultado final que esta abertura poderá ter nos concursos públicos, até agora vistos como restritos a entidades dos Estados-Membros (UE) ou nacionais (EUA). Uma maior concorrência não leva sempre a melhores resultados, nem à satisfação das necessidades sociais. Por outro lado, a supremacia da lógica de mercado sobre a soberania dos Estados e as razões de fundo que justificam as políticas públicas, não deixa de ser merecedora de críticas.

3. Para os activistas anti-TTIP, como Susan Cohen Jehoram da Greenpeace, o acordo “não é sobre comércio. É sobre a transferência de poder das pessoas para os grandes negócios. O que a Comissão chama barreiras ao comércio são, de facto, as salvaguardas que mantêm os pesticidas tóxicos fora dos nossos alimentos, ou os poluentes perigosos do ar que respiramos. Os negociadores […] querem enfraquecer essas salvaguardas para maximizar os lucros das empresas, quaisquer que sejam os custos para a sociedade e para o ambiente.” (“Greenpeace activists block secret TTIP talks", Press release, 22/02/2016). A crítica toca num ponto sensível. As diferenças de normas entre os EUA e a União Europeia, em matéria de ambiente, saúde, protecção dos consumidores ou segurança no trabalho, foram redefinidas como barreiras ao comércio. É verdade que são, por vezes, usadas como barreiras dissimuladas ao comércio internacional. Mas é claramente excessivo pretender ver todas as diferenças de regulamentação assim. Trata-se de uma estratégia hábil para obter o consentimento dos cidadãos / eleitores. O assunto é (re)configurado como sendo uma mera eliminação de entraves administrativos ou burocráticos, os quais entravam a competitividade das empresas. Importa deixar claro. Há um risco importante aqui, que um reconhecimento mútuo de regulamentação evidencia. Nessa hipótese, um produto ou serviço legalmente vendido numa jurisdição (por exemplo nos EUA), poderá ser legalmente vendido em qualquer outra jurisdição (em todos os Estados-Membros da UE). Se isso ocorrer, permitirá, na prática, às empresas tornear os padrões normativos mais exigentes iniciando uma “corrida para o fundo” (race to the bottom).

4. Um outro ponto sensível é o Tribunal de Investimento (Investment Court System), a alternativa europeia ao anterior mecanismo de solução de litigios entre Estados e investidores (Investor-State Dispute Settlement). A actual proposta prevê a criação de um tribunal de primeira instância e de um tribunal de recurso. Tal como a anterior, já está envolvida em forte polémica. Na Alemanha, o organismo profissional que representa os juízes (Deutsche Richterbund), dirigiu-lhe duras críticas (ver “German judges slap TTIP down” in Deutsche Welle, 4/02/2016). As críticas consideram não existir nem base legal, nem necessidade desse órgão jurisdicional. Um dos pontos mais contestados é a definição ampla de activos dos investidores. Tal definição daria a esse órgão jurisdicional uma abrangente e injustificada competência em matéria de legislação administrativa, social e fiscal. Foram ainda expressas fortes dúvidas sobre a competência da União Europeia para criar um tribunal especializado desse tipo. Mas a contestação vai mais longe. Qual a razão pela qual um investidor estrangeiro tem acesso a um tipo de processo especializado e a um tribunal ao qual um cidadão europeu comum não tem acesso? A crítica é amplificada pelo facto de as grandes multinacionais, devido ao seu poder económico e recursos financeiros, poderem contratar juristas altamente influentes e especializados em demandar os Estados. Algo que, certamente, não está ao alcance do cidadão comum e das pequenas e médias empresas.

5. Uma última reflexão. Sobrestimar os ganhos de uma determinada medida política, com estudos científicos, ou apresentados como tal, é já um clássico da actual forma de governação. Os estudos que procuram antecipar o impacto económico —  recorrendo a modelos económicos que antecipam resultados e criam “expectativas ficcionais” —, são hoje objecto de uso, e de abuso, pelos governantes e outros decisores. (Ver a interessante crítica feita por Ferdi De Ville e Gabriel Siles-Brügge, “TTIP: The Truth about the Transatlantic Trade and Investment Partnership”, Cambridge, Polity, 2015). A União Europeia tem um historial bastante questionável de uso de modelos económicos e de criação de “expectativas ficcionais”. Vale a pena lembrar um precedente importante: o mercado único. Nos anos 1980, um influente estudo da Comissão Europeia — o relatório Cecchini —, apontava ganhos ligados à realização do mercado único na ordem dos 4,25 a 6,5 % do PIB. Esse era o custo da “não Europa”. Esse custo resultava das numerosas barreiras regulamentares entre os Estados-Membros, as quais se impunha remover. O problema é que a previsão foi largamente exagerada. Os ganhos efectivos terão sido cerca de 2,15% PIB, ou seja, menos de metade do valor mais baixo estimado para o mercado único. Isto não significa que o acordo de Parceria Transatlântica não possa ser vantajoso. Tudo dependente da versão final que for negociada. Mas face a este historial, quando pensamos nos possíveis ganhos — apresentados como um crescimento do PIB até 1% —, o cepticismo é inevitável.

Investigador

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