Portugal precisa de mais tempo e tem em risco a coesão social

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Passos Coelho com Paulo Portas a 16 de Junho de 2011. Cinco dias depois, a 21, o Governo tomaria posse JOSÉ MANUEL RIBEIRO/REUTERS

Um balanço a quatro vozes: um eventual resgate espanhol pode ser uma mais-valia negocial para Lisboa e a competitividade não se alcança com salários baixos

O Governo cumpre o seu primeiro ano sob o guião do memorando de entendimento. Um desempenho marcado por uma desigual aplicação do receituário da troika. O executivo foi além das directivas em matéria laboral. E ficou aquém noutras matérias: Resolução parcial das rendas excessivas da energia; atraso no dossier das parcerias público-privadas, cuja renegociação só agora foi anunciada; alteração do âmbito da reforma do poder local, que afinal apenas se concentra na fusão de freguesias. Quatro personalidades de vários quadrantes políticos e diversos trajectos profissionais fazem ao PÚBLICO o balanço. Coincidem em dois pontos: Portugal precisa de mais tempo para corrigir o défice e a dose das políticas até agora tomadas põe em risco a coesão social.

"Portugal não tem condições de se financiar nos mercados em Setembro de 2013 sem qualquer apoio prolongado", afirma João Cravinho. O antigo ministro das Obras Públicas de António Guterres ressalva, no entanto, que tem sentido a estratégia do Governo de não reivindicar mais tempo e mais dinheiro: "A eventualidade de um resgate espanhol muda o cenário, a nossa mais-valia negocial pode ser servida pela Espanha, pelo que nada se ganha antecipando-se." Neste timing, serão decisivas as eleições gregas de 17 de Junho, cujo efeito de tsunami em Lisboa e Madrid só será devidamente avaliado nos próximos meses.

António Pires de Lima, administrador da Unicer e ex-deputado do CDS/PP, admite "que teria sido útil termos mais tempo" para a correcção das contas públicas. "Se continuarmos no bom caminho, no final de 2012 deveria ser renegociado o tempo; para já, enquanto não concluirmos um ano de gestão completa, não vale a pena perder tempo nessa questão", assinala. No entanto, Pires de Lima é optimista: "Portugal começa a surgir como um caso diferente, o Governo já está a jogar com uma pequena margem de manobra - mesmo com um défice até 5% [superando em meio ponto a meta da troika para 2012], será possível preparar a flexibilização."

A necessidade de mais tempo é corroborada por Octávio Teixeira, economista, antigo alto quadro do Banco de Portugal e ex-líder parlamentar do PCP. "A alteração do tempo não deve ser apenas de um ano, mas de três ou quatro", destaca. Também o historiador e comentador José Pacheco Pereira admite que o primeiro-ministro precisa de uma nova margem de negociação. "Tem-na porque tal advém do cumprimento do défice, mas não tem legitimidade para a reclamar ao afirmar que cumpre porque é bom."

A dosagem da austeridade é unanimemente referida como pondo em causa a coesão social. "O Governo entrou na coesão social como faca em manteiga, o patronato nunca pensou ter a lei de despedimentos que tem", enfatiza João Cravinho. "Uma taxa de desemprego alta é boa para o Governo, porque introduz o medo nas relações laborais", prossegue. Contudo, houve um efeito perverso: "O desemprego é tão elevado que alarmou a sociedade e se tornou num problema político."

António Pires de Lima calibra a gravidade da situação. "Com o desemprego em 15 ou 16% a coesão social pode estar comprometida", admite. "Em sentido lato temos 1,2 milhões de desempregados e a situação só tende a agravar-se", alerta Octávio Teixeira. "Estamos no limiar de uma nova realidade social que ameaça prolongar-se por muitos anos, inverteu-se o ciclo dos filhos terem uma melhor vida que os pais", diz. "Existe uma destruição do tecido económico e uma pauperização da classe média superior ao previsto", sublinha Pacheco Pereira.

"Comodismo de uma elite"

Já quanto aos motivos das opções tomadas não há unanimidade. "Passos Coelho tem uma filosofia ultra-liberal numa sociedade que não é liberal; aliás, o coração do capitalismo português é profundamente antiliberal, não tem sustentação na sociedade portuguesa", diz o ex-ministro de Guterres. É neste fenómeno que Cravinho situa as razões dos atrasos no cumprimento do programa da troika que afectam os interesses económicos. Em contrapartida, destaca que "houve uma transferência de rendimentos maciça do trabalho". Para o administrador da Unicer, não tem lugar a concepção de uma agenda ideológica. "Isso é um disparate, tudo é devido à necessidade de cumprir os défices negociados", acentua Pires de Lima.

"Onde o Governo age, ultrapassando a própria troika, é sobre o mundo do trabalho e os rendimentos das famílias", sublinha Octávio Teixeira. Assim interpreta a nova taxa máxima do IVA, o fim dos subsídios da função pública e a diminuição das transferências sociais. "Há uma questão ideológica, actuando sobre os trabalhadores e não sobre os empresários", prossegue. "Na opção há comodismo de uma elite cujos privilégios saem reforçados da crise, com um núcleo duro de dinheiro e poder político, e um círculo que na prática funciona como empregados que não são convidados para a mesa de casa", descreve Pacheco Pereira. "O Governo não conhecia a realidade nacional e o profetismo de que a economia vai arrancar é a tentativa de encontrar a linguagem política que falta ao executivo", assinala. "Houve uma transposição de uma ideologia das empresas de que os trabalhadores não querem trabalhar e de que as regalias sociais são demasiadas e vão além da troika", observa ainda.

"Injectar liquidez"

Também quanto aos desafios existem versões diferentes. "A competitividade, um dos calcanhares de Aquiles do Governo, não se ganha baixando salários mas pela inovação, pelo valor acrescentado", assinala João Cravinho. Tese partilhada por Octávio Teixeira. "As previsões do FMI sobre a competitividade da economia portuguesa referem que, em 2014, atingiremos a competitividade que tínhamos em 2000, ou seja, há mais de uma década", recorda o antigo dirigente do PCP.

"Para haver diminuição do desemprego em 2013 é necessário injectar liquidez na economia real", refere, por seu lado, António Pires de Lima. "Parte do dinheiro da troika para resolver as dívidas do Estado e das empresas públicas à banca devia libertar fluxos de financiamento às pequenas e médias empresas e aos bons projectos das grandes empresas", acentua. "Caso não haja recuperação, a receita da troika pode estar em causa", observa.

"O plano da troika foi saudado como uma revisão do plano grego, dizendo-se que possibilitava a recuperação económica", lembra Pacheco Pereira. "A austeridade era precisa, mas a combinação de políticas de austeridade e a ignorância do país combinaram mal", lamenta. "O Governo assegurou os resultados da troika agravando os impostos brutalmente, no limite do confisco", conclui.

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