Morreu Don Camilo

Camilo José Cela, 85 anos, o último Nobel da literatura de Espanha, morreu às oito horas da manhã de ontem numa clínica da capital espanhola, devido a insuficiência cardíaca. Cela, que desde a semana passada estava internado para "exames de rotina", como então foi divulgado, sofria de crónicos problemas cárdio-respiratórios, que, segundo os seus amigos, se agravaram a partir do início do Inverno. Ontem vitimaram Don Camilo, como o apelidavam os seus admiradores."Marina, te quiero", disse ao fim da tarde de quarta-feira o escritor e académico, dirigindo-se à mulher. Quem o revelou ontem, em conferência de imprensa, foi Tomás Cavanna, director da Fundação Camilo José Cela. De acordo com Cavanna, Cela, antes de entrar em coma, também saudou a sua terra natal: "Viva Iria Flavia", terá dito.É em Iria Flávia, bairro da vila galega de Padrón, que Camilo José Cela nasce em 11 de Maio de 1916, filho de pai galego e mãe anglo-italiana, no seio de uma acomodada família burguesa. "Tive uma infância de ouro, era tão feliz que quando me perguntavam o que queria ser quando fosse grande a minha vontade era dizer que queria ser sempre criança", repete nas entrevistas. Frequenta colégios caros, dos Escolápios aos Marianistas, somando expulsões por mau comportamento: "Aborrecia-me como uma ostra", justifica. Termina os estudos secundários em terras galegas e acompanha a família na viagem para Madrid.Ziguezagues e contradiçõesNa capital espanhola, inscreve-se em Medicina, Filosofia e Direito: não acaba nenhum dos cursos, mas frequenta os círculos intelectuais dirigidos por Maria Zambrano. Então começa a escrever. Na guerra civil está ao lado dos nacionais de Francisco Franco: é ferido na frente de combate. No final do conflito, em 1939, é editado o seu primeiro livro. Uma colectânea de poemas de estética surrealista: "Pisando la Dudosa Luz del Dia". Na escrita revela-se o ziguezague do percurso de Cela, repleto de contradições, polémicas e afirmações classificadas de "mau gosto" (ver outro texto). Em 1942, termina o seu primeiro romance - "A Família de Pascual Duarte" -, uma dura narração que os editores não querem publicar por pressões da Igreja. Vale-lhe o apoio de Pio Baroja para que esta narrativa seja dada à estampa. E nova contradição: em 1943, Camilo José Cela solicita por escrito o seu ingresso na censura. De acordo com o seu filho, Camilo José Cela Conde, por problemas económicos.Cela passa a "vigiar" três revistas religiosas e uma farmacêutica, quando a censura ordena retirar das livrarias a segunda edição de "A Família de Pascual Duarte". Censor e escritor é então a sua vida. Talvez por isso, inicia em 1948 uma série de relatos de viagens, menos problemáticos: começa por "Viaje a la Alcarria" (1948) e terminará num regresso à sua Galiza natal, publicado em 1990. E aparece nova contradição. Escreve "A Colmeia", um relato dos vencidos da Guerra Civil em Madrid, vencidos por ele e pelas tropas nacionais de Franco. O livro é publicado na Argentina, em 1951, após ser proibido em Espanha. Há um distanciamento, sem ruptura, com o regime franquista. Cela tem um périplo cosmopolita na década de 50, com dois anos de conferências em Inglaterra.Regressa e instala-se em Palma de Maiorca, onde funda e dirige a revista literária "Papeles de Son Armadans". Publica textos seus, recupera escritores exilados e promove a literatura catalã e galega. Mesmo assim, é eleito, em 1957, membro da Real Academia Espanhola para, três anos depois, publicar "Gravilla de Fábulas Sin Amor", com ilustrações do proscrito Pablo Picasso.Os prémios nos anos 80Sucede-se nos anos 60 novo período de conferências, nos Estados Unidos, até à publicação de outra obra importante: "San Camilo 1936". O relógio da história espanhola marca a hora do final do regime, anota o aparecimento de críticas internas e revela a força da oposição. Morto Franco, Camilo José Cela é senador por designação das primeiras Cortes Gerais espanholas. Participa na revisão do texto constitucional: é, mesmo, redactor de uma emenda na qual é consagrada como língua oficial do Estado "o espanhol ou o castelhano". Dois anos depois, Cela abandona o cenário político.Os anos 80 são os seus. Publica "Mazurca para Dos Muertos", uma das suas últimas obras mais consistentes, para além da recente, editada em 1999, "Madera de Boj". Mas esta década também é a da sua consagração: ganha os prémios Nacional de Literatura (84), o Príncipe das Astúrias das Letras (87) e o Nobel de Literatura em 1989: é o quinto escritor espanhol a obter o galardão, após José Echegaray, Jacinto Benavente, Juan Jamón Jiménez e Vicente Aleixandre. "Sente-se bem?", perguntou-lhe a mulher de um diplomata espanhol quando, após o banquete em Estocolmo, Camilo José Cela, então com 73 anos, não parava de dançar: "Estou bem, mas fodido dos pés", respondeu.Desabafo ou premonição? A verdade é que a partir de então, para os seus críticos, Cela envereda por atitudes arrogantes. Vive numa casa na elitista urbanização madrilena de Puerta de Hierro, casa-se com a jornalista Marina Castaño, 33 anos mais jovem que ele, colabora em diversos jornais e participa em concentrações de automóveis antigos. "Arrogante, eu? Certamente, mas sou assim", responde às acusações. Em 1994, com a "Cruz de San Andrés", ganha o prémio Planeta e, um ano mais tarde, consegue o "pleno" literário e social: recebe o prémio Cervantes, o principal galardão das letras de Espanha, e o Rei Juan Carlos concede-lhe o título de Marquês de Iria Flávia.

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