Joe Berardo Vender a colecção? "Mais valia dar-me um tiro"

Foto
Berardo entre as suas estátuas chinesas, na Quinta dos Loridos, no Bombarral

Crítico com o Governo e o PSD, Berardo fala numa guerra política nacional e em falta de visão para a Cultura. "A indústria cultural é das poucas que Portugal tem"

Depois de meses a declarar como fundamental uma reavaliação à Colecção Berardo, que já estaria feita, o secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, reconheceu este fim-de-semana que nunca aconteceu. Joe Berardo mostra-se indiferente à ideia de um cerco à volta do polémico museu com o seu nome. O acordo de depósito da colecção até 2016 é para cumprir, diz.

Como interpreta o volte-face de Viegas?

Não consigo. Sempre disse que só eu posso fazer uma reavaliação porque a colecção é minha. Tanto a Sotheby"s como a Christie"s levam uma percentagem do valor da colecção [316 milhões]. 1%, 2%, 3%, 4%: depende. Ele chegou a falar em sete mil euros. Sete mil euros?! Sempre soubemos que a avaliação não estava a acontecer.

Com todo o ruído, sente-se encurralado no museu?

Pelo contrário, sinto-me melhor do que no passado.

Melhor como?

A situação relatada ao público não é verdade: não é verdade que eu queira vender, não é verdade que ele [Viegas, pelo Estado] não está a dever dinheiro. Tenho uma carta da ex-ministra [Gabriela Canavilhas] em que diz que antes do fim do segundo semestre [de 2011] seriam entregues 500 mil euros em falta. Portanto, Viegas não me deve dinheiro; a Secretaria de Estado da Cultura deve. Se ele tem dúvidas, que veja a correspondência e a lei.

A questão do meio milhão remete para outra...

Foi resolvida.

A entrega de obras de arte em vez de dinheiro?

Leiam a lei. Tanto eu como o Estado podemos fazer isso, desde que qualquer obra seja proposta [para aquisição] pelo director do museu [e aprovada pelo conselho de administração].

Mas começa aí o problema de pagamentos do Estado.

Não, não! Posso mostrar [com documentação]. Sempre tivemos problemas. Tenho as cartas que escrevi a avisar e a dar nota de fim de parceria. Eles [Governo Sócrates] vieram então a correr. Outra coisa que ele [Viegas] disse no Parlamento foi que já chegava de promover o nome Berardo à custa do Estado.

"A marca Berardo", foi a expressão.

"A marca Berardo"! Eu não preciso de ajuda! Quando voltei foi para ajudar Portugal, não o contrário. Talvez queiram chamar ao museu Francisco José Viegas, Pedro Passos Coelho, em vez de Berardo? Há uma lei; se a querem mudar, que se sentem [comigo], olhos nos olhos, e vamos ver...

Este Governo não disse já várias vezes não desejar o acordo tal como é?

O PSD nunca foi um partido de apoio à Cultura. Mas a indústria cultural é das poucas que Portugal tem para mostrar. É uma pena. Já escrevi sete cartas a pedir uma reunião. Era ele [Viegas] que devia estar no Conselho de Fundadores. Não foi. Mandou o chefe de gabinete, que quis mudar a lei!

Acho que há uma interpretação errada. Confundem opção de compra, um direito, com obrigatoriedade. Eu tenho mais de 40 mil peças em diferentes colecções só em Portugal, nunca vendi uma, nem das caixas de fósforos. A cultura, para mim, não é um negócio, nunca foi.

Com a minha abertura por todo o mundo, e ele [Viegas] diz que me deu muito dinheiro...

Na Assembleia, Viegas apontou 26 milhões.

Nem sabe! Se eu quiser e eles quiserem, amanhã levo a minha colecção para um prédio e pronto.

Porque não o fez à partida?

Queria um museu de todos nós. É por isso que as entradas são gratuitas. Por exemplo, o Museu de Arte Antiga: entra-se e há umas cabinas de alumínio, portas de alumínio... É degradante. Num museu de arte antiga?! Eu sei que não têm dinheiro, mas, se não têm, falem comigo.

Eu não pedi um museu. Os franceses é que iam fazer um museu para mim. Foi o Sócrates que disse que não.

Houve anos de polémica; queria a sua colecção em Portugal.

Sempre disse ao Governo francês: aqui, em França, sou um entre centenas; em Portugal praticamente sou o único. A ideia da colecção em Portugal é para ser de todos. Eu empresto a colecção, vocês emprestam as paredes. Estivemos 10 anos a negociar o CCB.

O actual presidente, Vasco Graça Moura, diz considerar que o museu no CCB inviabiliza parte do que se gostaria de fazer como programação.

Já sabia isso antes de aceitar o convite. Tenho a maior consideração por esse senhor, mas acho que o que este Governo está a fazer é inconsiderável para os jovens. Por que não se renova? O senhor [Graça Moura] tem uma certa idade. Não chego a compreender: a guerra política que havia era contra os jobs for the boys. E agora? Boys for the jobs. Qual é a diferença?

Acha que a guerra em torno do museu é política?

Em todo o lado! Se aquilo não é um favor... Dê-se oportunidade a mais jovens! Temos que renovar! Por exemplo: Rui Vilar [da Gulbenkian]. Por estatuto, é obrigado a reformar-se.

Estou farto de criar inimigos por dizer factos. E o facto do museu é: as paredes não são minhas, a colecção não é deles. Se querem cobrar renda pelo prédio, então pagam aluguer pela colecção. Não pode ser só de um lado. Eles que resolvam, olhos nos olhos. Estou farto de pedir reuniões.

Ainda não se encontrou com Passos Coelho?

Não sobre estes assuntos. Tenho uma carta dele a dizer que quem cuida deste assunto é Francisco José Viegas e vai ter uma reunião comigo.

Ainda não tiveram?

Não. Eu sei que ele é um homem muito ocupado, mas [risos]...

Há uma coisa muito interessante, que foi a exposição do Nikias [Skapinakis, que é inaugurada depois de amanhã]. [Viegas] disse na Assembleia que foram atribuídas verbas suplementares para a exposição. O que não disse foi que estava a ser trabalhada há três anos e eles é que tiraram o dinheiro; depois vêm por trás e ajudam o artista, que deve ter ido falar aos políticos.

A atribuição de verbas dessa forma não está prevista nos estatutos.

Pois não! Eles querem manipular as exposições, mas não vão conseguir. Quando tem um conselho de administração onde o chefe de gabinete [de Viegas] diz que quem manda é quem paga... Eu disse: "Desculpe!? Acho que a lei é para cumprir; você não está a pagar nada, quem paga é o Estado."

Falou-se num cerco que teria a ver com as suas dívidas.

Ainda ontem ele [Viegas] disse na televisão que eu tinha dado a colecção em 65% [à banca]. O que é que tem a ver com ele? Eu tenho um prédio, que lhe está alugado a si e hipotecado ao banco. O que é que tem a ver?

A colecção está hipotecada?

Não tenho uma obra hipotecada.

Dada como garantia?

Nem um nem outro. Mas não vou discutir isso. Só estou a comentar o que ele disse, o princípio. Errado. É a mesma coisa que: eu tenho uma fábrica, alugo-lha a si, mas tenho-a como bond. E então? Não tem nada a ver. Quem não sabe, que consulte um advogado, não comece a falar de coisas que não percebe.

Portanto, nenhuma hipótese de o Estado dizer: tem uma dívida de X à banca, a colecção fica como parte do pagamento?

Como é que podem?! É a mesma coisa que amanhã, a toda a gente com empréstimos, a banca dizer: dá-me a casa ou o dinheiro.

Acontece todos os dias.

Para quem não cumpre [com pagamentos]. Mas não vamos falar de coisas que não são o caso. É uma pena que isto chegue a este limite... Ele [Viegas] diz que isto não é nenhum ataque pessoal. Então não sei o que é.

Há pouco dizia que ainda tem a sua colecção de caixas de fósforos. Quer dizer que está fora de questão vender a Colecção Berardo?

Mais valia dar-me um tiro. Esta colecção é para melhorar a cultura portuguesa. Ele [Viegas] está a confundir. Diz: não queremos empatar o coleccionador - quem disse que queria nova avaliação foi ele; quem disse que estava preparado para me libertar foi ele. Eu não pedi nada.

Teve ofertas recentes de compra?

Claro que sim, e vai continuar a haver. Com estas barafundas, as pessoas pensam: "Ele vai vender? Então quero comprar." Tenho tido valores fenomenais. A colecção é capaz de valer [hoje] cinco vezes [a avaliação inicial]. Mas eu não quero vender. Não quero! Temos um acordo até aos dez anos [2016]. Seis meses antes vamos decidir. Ou o Governo compra, ou não compra, ou acaba-se o acordo. Até lá, não vale a pena! Eles cumprem a parte deles que eu cumpro a minha.

Vamos imaginar que é o mesmo Governo em 2016...

Ele [Viegas] disse [quarta-feira passada] que nem agora nem em 2016 o Governo vai exercer o direito [de compra]. Pensa que vai haver uma revolução e ficar no poder até 2016?! Espero que não fique, senão a Cultura vai acabar!

Mas com este ou outro Governo, só há dois cenários possíveis...

Dois? Não. Ou compram, ou renovam ou não renovam [o acordo]. Mas não é este Governo que vai decidir. Até pode ser que nessa altura Portugal já se chame "província de Espanha".

Está mal impressionado com a situação nacional...

Muito mal. E estou a pensar seriamente em emigrar, até pedi residência noutro país. Mas a minha colecção fica cá.

Qual país?

Não vou dizer. Quero ter uma alternativa, mas vou continuar a desenvolver a Cultura [cá]. Na Madeira tenho três museus, incluindo a Casa das Mudas, com a melhor colecção do mundo de Art Déco; aqui, [no continente], há o Undergroung Museum com oito colecções dentro... Quando foi o ano da França [no Brasil, em 2009], a Colecção Berardo emprestou mais de metade [das peças], ao lado de museus como o Louvre...

Não consegue esconder o seu prazer...

Por que hei-de esconder?! Acha que seguia esta paixão sem prazer? Será que a mentalidade portuguesa é tão mesquinha que não vê the big picture?

Qual é a big picture?

Fazer coisas grandes! Como eu faço, como o Gulbenkian fez! Ainda dizem mal do Salazar... Ainda bem, se não fosse o Salazar, nem o Gulbenkian estava aqui!

Está a fazer um elogio a Salazar?

Estou. Pelo menos teve a visão. Não aconteceu como quando Santana Lopes era ministro da Cultura do Cavaco [1990-1991]. Veio um coleccionador alemão que queria construir um museu. Veio de avião privado, puseram-no duas horas à espera e ele goodbye. Nunca mais quis ouvir falar de Portugal. O PSD não tem definição de Cultura. Ainda não perceberam que a maior indústria francesa é a Cultura. Viegas disse: vamos cobrar um euro de bilhete no Museu Berardo. Para quê? Não dá para pagar nada. Não vêem a big picture. Qual acham que é o futuro de Portugal? Coser botas, como no passado?

Qual seria o caminho?

A energia, por exemplo: a verde é boa para os ricos! Estamos a comprar energia aos amigos do anterior Governo. Vendem à EDP a 10 e esta vende a 25. Como é que este país pode andar para a frente? Eu sou do género Patrick [Monteiro de] Barros. Ele queria nuclear. É que nós temo-lo na fronteira, em Espanha. Não usufruímos do lucro, mas se há um problema, levamos com tudo. É preciso não ter imaginação!

A mesma crítica de acordos para ricos pode ser feita ao museu. Muitos disseram antes de firmado o acordo que o Estado não teria dinheiro para cumprir a sua parte.

Acha que esses 500 mil euros é dinheiro a sério? Quando o problema se levantou, eu disse: "OK, tu não pões e eu não ponho." O que falta é os políticos portugueses aprenderem a gerir o dinheiro público como se fosse o seu. Para o Presidente, que tem tudo pago, 10 mil euros por mês não chegam. Para um pobre homem que tem mulher, filhos e 400, 500 euros por mês, tem que chegar...

Sugerir correcção