"Foi o Nicolau que projectou o Benfica"

Privou com Cosme Damião e José Maria Nicolau. Assistiu na primeira fila ao crescimento e consagração do mais representativo clube nacional. Acompanhou os primeiros passos de Eusébio no futebol português. Viveu as épicas noites de glória europeia dos anos 60. Esteve na inauguração do primeiro Estádio da Luz. Chama-se José Gonzalez de Oliveira e, aos 92 anos, saltou finalmente do anonimato para a ribalta: é o sócio nº 1 do Benfica e partilhou com o PÚBLICOas memórias de 82 anos de "águia" no coração.Com apenas 10 anos, em 1922, pela mão do pai, inscreveu-se como sócio do Benfica, como já o haviam feito antes oito membros da sua família. Na altura, o clube contava com cinco mil sócios. "E todos se conheciam", garante.Entre as grandes figuras que marcaram as primeiras décadas do "glorioso", José Gonzalez relembra com especial carinho José Maria Nicolau, "esse grande ciclista" que nos anos 30 levou o nome do Benfica a todo o país: "Foi o Nicolau que projectou o nome do clube em termos nacionais. Naquela altura, as comunicações eram péssimas, o interior era mesmo o interior, mas o José Maria Nicolau levou a camisola do Benfica de Norte a Sul do país. Foi surpreendente como um clube lisboeta conseguiu a projecção que teve em Portugal, mesmo nos cantos mais recônditos." Para Gonzalez foi, sem dúvida, o ciclismo e Nicolau - vencedor por duas vezes da Volta a Portugal - que elevaram o Benfica à condição de emblema nacional. "O futebol naquela altura era circunscrito, havia o campeonato de Lisboa e só mais tarde as competições passaram a ter âmbito nacional", explicou: "Quando o José Maria Nicolau estava no auge talvez fosse mais conhecido em Portugal do que o Oliveira Salazar. Era uma coisa louca a sua popularidade."É também nesta altura que nasce a grande rivalidade com o outro grande clube da capital, o Sporting, mais uma vez pela mão do ciclismo, com outro grande nome da modalidade: "O Alfredo Trindade - também vencedor por duas vezes da Volta a Portugal - era do Sporting e o grande opositor do Nicolau. As provas em que participavam os dois eram seguidas com grande emoção por todo o país. No Rossio, as pessoas concentravam-se para saber quem ganhava e o vencedor era tratado como um herói."A popularidade do futebol, porém, não parava de aumentar em Portugal. Gonzalez recorda com saudade um dos primeiros estádios construído pelo Benfica, na Av. Gomes Pereira, em Benfica, do qual era frequentador assíduo: "Havia um salão muito grande que tinha um animatógrafo, com o qual o clube ganhava algum dinheiro. Existia ainda um ringue de patinagem, dois 'courts' de ténis e, claro, o campo de futebol."Nos dias de jogos, disputavam-se quatro partidas seguidas. As três primeiras - às 9h, 11h e 13h - em que participavam as camadas jovens, seguindo-se, pelas 15h, o jogo da equipa principal: "As pessoas deslocavam-se para o estádio logo pela manhãzinha e passavam ali o dia a comer, a beber e a ver os jogos todos. Eram outros tempos."Atenta a estes eventos desportivos estava já na altura a imprensa diária, mas a sua cobertura, segundo José Gonzalez, estava longe de ser o que é hoje: "Os vários vespertinos que existiam na altura tinham uma linha directa aos campos dos jogos para darem os resultados das partidas antes de saírem no mesmo dia. E éramos mesmo nós [os espectadores] que íamos dizendo, por telefone, o que se passava, por vezes com os jornais a poucos instantes de iniciarem a impressão."Os anos foram passando, o futebol foi evoluindo e o clube foi-se adaptando aos novos tempos. Também a vida de Gonzalez foi mudando. Começou por trabalhar como funcionário no Ministério da Guerra, mas o fraco ordenado que auferia acabou por ditar a sua saída, optando por empregar-se numa empresa inglesa fabricante de caldeiras. O casamento aos 37 anos trouxe também outras responsabilidades.Em Dezembro de 1954, depois de algumas mudanças de casa pelo meio, o Benfica inaugura o novo estádio na zona da Luz, em Carnide, com José Gonzalez, agora com 42 anos, a marcar presença entre os milhares de adeptos presentes nas bancadas daquela que viria a ser conhecida como "a catedral" da Luz. Da festa, porém, já pouco se recorda. Lembra-se, contudo, meia dúzia de anos, depois das equipas que maravilharam o mundo do futebol e venceram duas Taças dos Campeões Europeus. Recorda igualmente os primeiros passos de Eusébio no Benfica - "um jogador que era para ir para o Sporting, mas foi raptado", relembra entre alguns sorrisos - e no seu papel fundamental para a projecção do emblema da Luz para além fronteiras. José Águas, Torres, Francisco Ferreira, Coluna, Costa Pereira, com todos travou conhecimento e de todos fala com um misto de alegria e nostalgia.A amargura sobra quando fala nos últimos anos da vida do clube, das polémicas, dos insucessos desportivos. Não visitou ainda o novo estádio, mas aguarda pela chegada de um dos [dois] filhos que trabalha e reside em Madrid para entrar pela primeira vez na nova "catedral". A idade e a saúde obrigaram-no a substituir as bancadas pelo sofá da sua casa em Alvalade, onde vai assistindo aos jogos do "glorioso", mas queixa-se das horas a que as partidas são actualmente disputadas: "É que gosto de me deitar cedo. Na minha idade tenho de dormir muito..."Ser o mais antigo sócio vivo do clube não o enche de vaidade, mas não disfarça uma ponta de orgulho pela inesperada popularidade. "Nunca me preocupei com o facto de poder chegar a ser o sócio nº1. Um dia telefonaram-me do Benfica e disseram-me: 'o sr. é o sócio nº3, mas como já não há o 2 e o 1, passa a ser o primeiro.' 'Está bem', disse eu."

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