As vindas do FMI nos anos 70 e 80 recordadas pelos líderes sindicais

A primeira visita do FMI, em 1977, passou bastante despercebida. Em 1983, o Fundo regressou e o custo da austeridade entrou nas palavras de ordem do 1.º de Maio de 1984

a O FMI chegou pela primeira vez a Portugal em 1977, a pedido de um Governo liderado por Mário Soares, e regressou em 1983, por iniciativa do Governo do Bloco Central. Numa época em que as manifestações do Primeiro de Maio mobilizavam mais gente e eram tradicionalmente mais combativas do que o são hoje, seria de esperar que a presença no país do Fundo Monetário Internacional (FMI) tivesse marcado as concentrações desses dois anos. Mas não marcou, desde logo por uma razão simples: tanto em 1977 como em 1983, o FMI só chegou no segundo semestre.

Se houve um Primeiro de Maio em que se ouviram palavras de ordem contra o FMI. Foi no de 1984, quando os portugueses já tinham começado a sentir os efeitos das medidas de austeridade impostas desde o final do ano anterior. Mas, mesmo em 1983, a chegada da delegação do Fundo, dirigida por Teresa Ter-Minassian, esteve longe de monopolizar a atenção dos jornais e da televisão.

Armando Teixeira da Silva, coordenador da CGTP-Intersindical entre 1977 e 1986, tem uma explicação para justificar que a primeira vinda do FMI tenha passado praticamente despercebida. "O FMI não foi muito falado nessa altura, nem houve grande debate, porque aquilo foi uma coisa que o Mário Soares decidiu fazer já a preparar a entrada de Portugal na União Europeia [então CEE], que tinha sido pedida em 1976."

Torres Couto, então dirigente do movimento Carta Aberta, que precedeu a criação da UGT, confirma que a vinda do FMI em 1977 "não teve grande impacto mediático", mas atribui-lhe a consequência política de ter forçado o acordo de incidência parlamentar entre o PS e o CDS, que se reflectiria na formação do segundo Governo constitucional.

Apesar de José Mário Branco ter lançado o disco FMI em 1979, na ressaca dessa primeira passagem do Fundo por Portugal, não seriam assim tantos os portugueses que, na época, teriam uma noção clara do que era a instituição. Teixeira da Silva acha que, mesmo em 1983 e 1984, e apesar das pichagens e faixas a exigir a saída do FMI, não havia, como hoje, uma consciência generalizada do que era o Fundo, em boa parte porque a instituição não tinha ainda o historial de intervenções que agora se conhece. Tal como em 1977, o processo de adesão à CEE continuava, em 1983, a condicionar as negociações, mas a situação do país era muito diferente, e o que verdadeiramente exigiu o segundo recurso ao FMI foi o risco iminente de bancarrota. Torres Couto recorda que foi em 1983 que o bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, veio denunciar que havia fome no distrito e no país. "Tinha havido o período gonçalvista, com subsídios sociais acima das possibilidades do país, e é nessa altura que se começam a perder regalias", diz o ex-líder da UGT, que recorda os Primeiros de Maio da época como momentos de grande constestação social. O de 1982 tinha sido mesmo marcado, no Porto, pela morte de duas pessoas, resultante de confrontos entre a polícia e manifestantes da CGTP.

José Ernesto Cartaxo, dirigente histórico da CGTP, cuja direcção só abandonou em 2008, evoca a primeira greve geral do pós-25 de Abril, em Fevereiro de 1982, e sublinha que "a pressão social contra o Governo da AD era muito forte". Num país onde o desemprego crescia e a inflação começava a atingir patamares assustadores, as relações entre ambas as centrais sindicais eram também mais tensas do que o são hoje. A UGT não apoiou a greve geral, marcando uma diferença que se irá confirmar na posição que depois adoptará perante a vinda do FMI.

Mas o FMI era algo de que ainda ninguém falava nesse Primeiro de Maio de 1983. Só no final do mês se começarão a ouvir as primeiras vozes a sugerir a vinda do Fundo, como a do o presidente da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP), Ferraz da Costa, ou a de Silva Lopes, presidente do Banco de Portugal.

Cartaxo conserva o documento resultante do 4.º Congresso da CGTP, datado de Março de 1983, que não faz qualquer referência ao FMI. Mas o texto já fala em "crise", avisando que a CGTP não está disponível para aderir a "acordos de salvação nacional que, em nome da resolução da crise", se servem dela como pretexto "para intensificar a exploração dos trabalhadores, liquidar as conquistas de Abril e restaurar os monopólios e os latifúndios".

Quer em 1977, quer em 1983, a CGTP recusou-se a conversar com o FMI, ao contrário do que agora fez Carvalho da Silva. "Decidimos que a CGTP só devia falar com órgãos de soberania nacionais", justifica Teixeira da Silva, invocando precisamente o mesmo argumento agora usado pelo PCP para não dialogar com a troika.

Torres Couto, pelo contrário, orgulha-se de ter sido parte activa nas negociações com o FMI. Notando que "a situação era quase diametralmente oposta à de hoje, porque o PS e o PSD estavam coligados", o ex-líder sindical diz que "o trabalho de casa já tinha sido feito" e que "o FMI foi apenas o notário que veio avalizar" o Programa de Recuperação Financeira e Económica proposto pelo então ministro das Finanças e do Plano, Ernâni Lopes, e concertado com a CIP e a UGT.

O ex-sindicalista critica duramente o modo como os actuais dirigentes políticos estão a lidar com a crise: "Os elementos da troika devem-se fartar de rir quando estão sozinhos, porque percebem que isto é uma casa onde toda a gente ralha e ninguém tem razão". E estende as críticas a Cavaco Silva, lembrando o papel desempenhado em 1983 por Ramalho Eanes, que se "desmultiplicou em reuniões e promoveu consensos". Mas reconhece que, na época, havia instrumentos de que hoje o país não dispõe. "Podíamos fazer desvalorizações competitivas e emitir dinheiro".

Numa coisa Torres Couto está quase de acordo com Teixeira da Silva. Se o segundo contesta abertamente a adesão ao euro, o ex-líder da UGT também se assume como "muito crítico da forma pacífica como aceitamos o euro" e lamenta que a moeda europeia não tenha cumprido o seu desígnio original de ser o ponto de partida de uma verdadeira união económica.

Já as consequências do acordo de 1983 com o FMI, formalizado em Setembro desse ano, têm leituras diversas. Teresa Ter-Minassian apontou recentemente o sucesso da integração europeia, a partir de 1986, como um sinal de que foi feito o que havia a fazer. Mas, nas grandes manifestações do Primeiro de Maio de 1984, no rescaldo das medidas então impostas, os trabalhadores que saíram à rua não se mostravam particularmente gratos. "O país tinha meio milhão de desempregados, havia 150 mil trabalhadores com salários em atraso, a inflação andava nos 30 por cento, e a queda real dos salários rondava os 9 por cento", inventaria José Ernesto Cartaxo, consultando a documentação da época da CGTP.

No ano seguinte, cai o Governo do Bloco Central e o PSD governará em minoria, com o PS reduzido a 21 por cento e o recém-nascido PRD a chegar aos 18 por cento. Segue-se a primeira maioria absoluta de Cavaco e o início de um período de crescimento sustentado pelos fundos europeus. Até o país voltar, vinte e tal anos depois, a bater à porta do FMI.

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