Angola, os mitos e a realidade em discurso directo pelos emigrantes portugueses

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Eduardo dos Santos e Cavaco: as relações institucionais entre os dois países reforçaram-seMercado de Roque Santeiro, um símbolo da informalidade da economia angolanaAeroporto de Lisboa, lugar onde passam, de acordo com algumas estimativas, sete mil passageiros por semana em direcção a LuandaEm Luanda, a cidade mais cara do mundo, a maioria das pessoas ganha menos de 200 euros por mês Luanda, cidade de oportunidades. E de riscosNo poder há 32 anos, José Eduardo dos Santos é o poder em Angola MIGUEL MADEIRA

Dezenas de horas de conversas com emigrantes revelam fotografia que não chega à praça pública. É o outro lado do Eldorado. As opiniões políticas ficam em casa e a corrupção é regra

Nos últimos meses, as notícias sobre Angola tornaram-se diárias. Com a taxa de desemprego a crescer em Portugal, uma nova vaga de emigrantes - sobretudo jovens, qualificados - vai para um dos países em mais rápido crescimento económico do mundo. Casais com filhos, jovens engravatados, mulheres de meia-idade: não é fácil traçar um retrato-tipo dos que fazem fila à porta do consulado angolano para tratar do visto.

Todas as semanas, os voos entre Luanda e Lisboa vão cheios. Estima-se que sete mil pessoas viajem semanalmente entre os dois países. Angola é actualmente um dos destinos para o qual mais portugueses emigram, segundo o Observatório da Emigração.

A nova vaga migratória portuguesa é comparável, em números, à dos anos 1960, dizem especialistas. O que esta vaga tem de diferente em relação à emigração actual para Angola é que, de alguma maneira, está a fazer o percurso inverso da anterior: sai de uma democracia para viver num sistema não democrático.

Será a emigração para Angola o retrato cor-de-rosa que se tem feito passar, a solução para a crise? Falando com quem vive ou viveu em Angola percebe-se que há uma parte da fotografia que não chega à praça pública. Há um outro lado do Eldorado. É esse o retrato que fica das dezenas de horas de conversas que tivemos ao longo dos últimos quatro meses com portugueses que vivem ou viveram em Angola. Algumas não estão nestas páginas. Escolhemos sete histórias. Da amostra de trabalhadores em diversas áreas apenas um, apoiante de José Eduardo dos Santos, optou por revelar a identidade. Aos outros, por razões de segurança, omitimos o nome. Porque em Angola "não há liberdade de expressão", diz a maioria. E o medo de retaliação ainda é grande. "O risco profissional que se corre em Angola é muito grande", diz um empresário que não aparece nestas páginas.

Nas histórias há temas que se repetem: corrupção, liberdade de expressão e sistema político. Vivê-los implica decisões nem sempre óbvias.

A corrupção é endémica ao sistema, "é completamente democratizada", diz C. Muitos explicam-no com os salários baixos de uma população que não consegue viver com o que ganha: uma média de 200 dólares por mês na cidade mais cara do mundo, Luanda, gera uma economia paralela, explicam. Há quem compare: "Há 20 anos Portugal não era diferente." O problema só pode ser resolvido pelos políticos, até porque esse é um "problema dos angolanos", defende-se. "Não venho para aqui mudar isto", diz F. É possível escapar ao engodo batendo o pé, dizem outros. E há ainda quem pense que é mais importante apostar no desenvolvimento económico do que no combate à corrupção, porque uma coisa leva a outra. Outros dizem que o retrato é mais exagerado do que a realidade.

A corrupção em Angola é relatada por várias organizações internacionais - entre o Fundo Monetário Internacional, a Transparency International, a OCDE, a Global Witness ou a Human Rights Watch. A Transparency International coloca Angola num dos dez piores lugares do índice de percepção sobre corrupção.

Num país em que os serviços secretos ainda se sentem pelas ruas, descrevem alguns, a liberdade de expressão é limitada. Dentro e fora dos tribunais "é preciso ter cuidado com comentários partidários e com tentativas de desmascarar a corrupção", diz M., jurista.

A crítica política fica para dentro de casa. Por medo, por acharem que não têm de se envolver em assuntos de um país onde estão de passagem, por não verem alternativa ao actual presidente José Eduardo dos Santos. "É um mal menor", dizem.

Em cinco anos como embaixador em Angola, Francisco Ribeiro Telles nunca recebeu informação de que algum português tenha sido incomodado pelo "exercício de se exprimir", nem teve conhecimento de violação de direitos humanos. Segundo os seus dados, há apenas cinco portugueses a cumprir pena em Angola, nenhum empresário. Outros três empresários foram presos e libertados provisoriamente e têm processos a correr: Jorge Oliveira, ex-director financeiro do Grupo Mello Xavier, e Pedro Morais Leitão, que dirigia a companhia de seguros Garantia em Angola, saíram em Setembro e Maio de 2010, respectivamente, e o gestor Abílio Esteves em Março de 2011.

Emigra-se porquê?

Estão registados no consulado mais de 100 mil portugueses. Mas, lembra o embaixador, há quem saia do país e não avise e há quem chegue e não se registe. São mais dez mil do que no ano passado.

É impossível traçar o retrato desta massa heterógena de milhares, muitos a viverem com um pé cá e outro lá. As trocas económicas entre os dois países dão pistas. Há mais de sete mil empresas portuguesas a exportar para Angola, o maior destino das exportações nacionais fora da União Europeia. Exportamos sobretudo máquinas e produtos alimentares e investimos no comércio a retalho, na construção civil, nas actividades financeiras e de seguros. Os grandes grupos bancários portugueses estão em Angola, assim como a PT, e a empresa portuguesa mais valiosa, a Galp. Com a crise, a aposta em Angola é estimulada por Pedro Passos Coelho, que em Novembro fez uma visita-relâmpago a Luanda, seguida, dois meses depois, da de Miguel Relvas, ministro dos Assuntos Parlamentares, a meio de Janeiro.

Ganha-se muito dinheiro em Angola? Em alguns casos sim, noutros não. A Meireles, empresa de matérias de hotelaria, por exemplo, diz que os lucros em Angola são de mais 20% a 30% comparativamente a Portugal. "É um mercado de oportunidades mas de risco", diz Alexandre Meireles. "Os timingsde concretização dos projectos são mais lentos", avisa.

Outros dizem que há um grande desafio: participar no processo de reconstrução de um país onde está tudo por fazer e em que sentem que o seu contributo é necessário.

A vida quotidiana não é fácil, lembram. Angola tem um dos piores índices de desigualdade do mundo e problemas sociais graves, como altas taxas de pobreza, falta de infra-estruturas e saneamento básico (em Luanda, só 9% têm água canalizada). No último relatório das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Humano, aparece em 148º num ranking de 187 países.

Ora isto, contam, sente-se no quotidiano de um país onde nunca se sabe, mesmo nos bairros mais caros, se vai haver água e luz quando se acorda. A frase que mais ouvimos sobre Angola? É um país onde se "criam dificuldades para vender facilidades". O que pode ser uma ratoeira. A tentaiva de entrar no esquema é, aliás, um dos perigos para os portugueses, sublinha M.: é preciso saber se "do lado de lá" há uma pessoa à espera de ser corrompida ou à espera de apanhar quem quer corromper.

P.

"Angola é tudo menos o Eldorado"

P. anda na casa dos 40 e está como consultor em Angola há mais de uma década. Chegou ainda havia guerra, altura em que à noite via carregamentos de armas a chegar ao porto de Luanda.

Tem visto Angola transformar-se, mas não no Eldorado que se promete tantas vezes, porque nesse retrato, que até "nem beneficia os portugueses", faltam as peças que tornam o dia-a-dia e os negócios difíceis. O trânsito é caótico em Luanda, a água e a luz faltam regularmente, há quem marque reuniões para a outra ponta da cidade e as desmarque quando lá se chega, o motorista falta e não avisa, a secretária diz que está doente e não está, as coisas levam tempo a fazer-se, o apoio médico não é seguro. Depois há a saga dos vistos, mesmo para quem tem boas relações com o poder: nunca é fácil obtê-los, diz. O grau de dificuldade é influenciado pelas relações políticas entre Portugal e Angola que, por sua vez, seguem uma linha mais ou menos previsível: "Com os governos socialistas as relações tendem a esfriar, com os sociais-democratas estreitam-se." Excepção: "Com Sócrates não se sentiu tanto [o esfriamento das relações]. O ministro dos Negócios Estrangeiros Luís Amado conseguiu ter boas relações com Angola."

Diz-se em alguns meios que só faz negócio, pequeno ou grande, quem tenha sócio angolano influente. P. discorda no caso dos pequenos; nos grandes, e para crescer, "é preciso ter um apoio de peso". Essencial é conhecer bem o potencial sócio, porque, se se pensar que se arranja "um general amigo que vai ajudar", corre-se o risco de ficar "na mão da pessoa errada". P. tem alguns sócios angolanos, mas não está na mão das pessoas erradas. Um é "bastante influente", um homem "respeitado, discreto e sensato".

Manual básico para o empresário que começa do zero em Angola: saber esperar, porque as coisas demoram tempo; ser humilde, ir com cautela e discrição. Se o negócio começa a crescer muito, "começa a sentir-se pressão". P. defende que não se "deve ser condescendente com situações éticas reprováveis", mas admite que por vezes entra em "situações menos claras" por não ter "alternativa". Numa transacção teve que "pagar a um sujeito para fazer o processo correr": "Ou isso, ou não fazia."

Sabe, sim, de esquemas em que se pagam comissões - 10% é "a bitola" -, não à empresa, mas à pessoa que faz o negócio. Arranja-se um intermediário falso, um "testa-de-ferro", que recebe o dinheiro por ele. O dinheiro vem de um saco azul e de uma conta pessoal, porque "não sai nada da empresa". "Nunca me pediram uma comissão; se me pedissem, falava com os meus sócios, avaliava o risco e ponderava se avançava ou não."

O esquema de corrupção também acontece noutros países, só que em Angola "é mais descarado". "Em Portugal, nos Estados Unidos ou na Europa o sistema é mais sofisticado." Há pouco tempo, houve ordens superiores para os membros do Governo se afastarem das empresas das quais são sócios - exigência legal, devido à lei da probidade pública - e P. tem visto uma "transformação societária profunda". Mas é só uma operação de disfarce, porque depois "arranjam um desgraçado da rua que é o testa-de-ferro". Objectivo: "Ocultar a relação entre poder político e económico" - que é "promíscua".

Há um problema de concentração de poder nas mãos de um pequeno grupo, "meia dúzia de famílias". E de redistribuição de riqueza. "Era mais importante levar água às populações ou ter um sistema de transportes mais eficiente do que fazer obras na Baía de Luanda." Mas guarda as suas opiniões para si. "Ensinaram-nos em Angola a nunca dar a nossa opinião política, a não ter uma opinião muito vincada." Expressa-as apenas com "quem tem muita confiança". Nunca sabe se a pessoa não é dos serviços secretos. Quanto mais discreto, melhor.

No dia-a-dia, foi aprendendo "a prestar atenção à questão social". "As empresas portuguesas têm que estar preparadas para apoiar e ser muito mais condescendentes." Exemplo: foram roubados por um funcionário. Quando o apanharam, ele confessou. "O mais normal era despedi-lo. Podia ter ido à polícia, desgraçava-lhe a vida. Fechamos os olhos a muita coisa." Porque há quem viaje quatro ou cinco horas para chegar ao trabalho, acorde às quatro da madrugada, chegue a casa e ainda tenha que carregar a água de que precisa.

Em 2008 houve eleições livres e justas, ninguém esteve a fazer pressão para se votar no MPLA, diz. A distribuição de carros e bens de consumo pela população, a taxa de filiados no MPLA, a propaganda, tornou o resultado previsível. "Havia uma desproporção de meios [entre os partidos] e o resultado só podia dar naquilo. Na Madeira, quase toda a gente trabalha para o governo regional... Em Angola compra-se de outra maneira."

Como é que se tenta equilibrar esta equação? "Ajudando a UNITA, por exemplo? Ninguém vai fazer isso, os portugueses ficam com a vida num inferno." P. defende uma "transição lenta", como em "outros países africanos", porque "é preciso tempo". "Prefiro assim, não gostaria de ver uma transição brusca. Nunca tive problemas com o regime." A grande questão não é a UNITA ganhar eleições, mas a sucessão de José Eduardo dos Santos, diz. Ou há transição pacífica em vida, ou então vai haver "uma disputa muito feia" e, no limite, uma convulsão. Por isso, apesar de estar em Angola por questões financeiras, diz que está a correr um risco: pode ter que sair a qualquer momento. Compensa? "É muito difícil fazer este tipo de vida, o dia-a-dia é muito duro. Ao fim de três meses as pessoas estão exaustas. É tudo menos o Eldorado."

M.

"A "gasosa" é uma das formas de pôr os portugueses fora num instante"

Com dupla nacionalidade, M., na casa dos 30 anos, lida com as instituições judiciais angolanas como poucos portugueses o farão, pois só angolanos podem exercer advocacia no país. Em Angola o "sistema judicial é quase inexistente". "Formalmente existe, mas depois há juízes que ainda estão a terminar licenciaturas" - consequência dos longos anos de guerra que acabou em 2002. "Há muitas detenções arbitrárias, excesso de prisão preventiva", conta M., que deu aulas de Direito numa universidade angolana. "Não ter passaporte pode levar a prisão com a desculpa do perigo de fuga. O princípio da presunção da inocência está na Constituição, mas não é aplicado."

Daí que M. considere que "a justiça em Angola é muito subjectiva": "É impossível garantir a um cliente se vai ganhar." Isto estende-se a vários passos necessários para exercer a actividade profissional. Nunca se sabe se o documento vai estar pronto: "Depende da pessoa que nos atende, às vezes da "gasosa" [suborno], outras de troca de favores."

Neste momento, há vários perigos para os portugueses, sublinha, que começam logo pela tentativa de entrar no "esquema". Primeiro é preciso saber se "do lado de lá" não há uma pessoa à espera de ser corrompida ou à espera de apanhar quem quer corromper. E em caso de queixa, um advogado "nunca consegue desmascarar o esquema": "Eles vão inverter a coisa: o português é que ofereceu dinheiro na expectativa de ver facilitada alguma coisa."

Além de sublinhar os "perigos da "gasosa"" - "é uma das formas de pôr os portugueses cá fora num instante" -, M. alerta para a "escolha do parceiro angolano". "Não é um requisito legal ter um parceiro angolano." E "é fácil criar um crime que não foi praticado. A mera suspeita, sem apresentar provas, dá origem a prisão preventiva e é considerado crime contra o Estado angolano." Mas, regra geral, o suborno e a corrupção estão instalados e nem sequer chegam aos tribunais.

A sua atitude tem sido sempre de "neutralidade" num país onde a liberdade de expressão "é limitada" e "há tendência a confundir o advogado com o cliente": "Acham que estamos a reivindicar qualquer coisa para nós. Uma vez queriam-me acusar de injúria ao Estado angolano por causa de um requerimento em nome do cliente." Recebeu "uma chamada de atenção do juiz" com ameaça de processo.

Dentro e fora dos tribunais "é preciso ter cuidado com comentários partidários e com tentativas de desmascarar a corrupção". Na vida quotidiana, "há imensos agentes da secreta infiltrados": "Empregados de restaurante, alunos na universidade, funcionários públicos...."

Apesar de ter vindo a melhorar em termos de democracia, em Angola não se discutem questões políticas à mesa do café como em Portugal e tem-se cuidado com o que se diz ao telefone. Critica o Governo, mas repete o que um amigo angolano lhe disse: "Se se tirarem aquelas pessoas, quem é que se vai lá pôr? Este ao menos já está rico, para que é que vamos lá pôr um pobre para roubar?"

Com um dia-a-dia imprevisível, em que nunca sabe se vai ter água e luz em casa e é preciso "muita elasticidade e paciência", não é fácil viver em Angola. Por enquanto, compensa estar num país "onde está tudo por fazer". "Com constrangimentos ou não tento contribuir para melhorar. As aulas, por exemplo, são uma óptima forma de tentar expor como funciona o mundo lá fora, como reclamar direitos e perder o medo do sistema."

A.

"Há 20 anos, Portugal não era diferente"

Trabalha como consultor há cerca de cinco anos e diz conhecer o centro do poder. No dia-a-dia, há muita gente que cria dificuldades para vender facilidades: "Um simples funcionário de balcão diz que o modelo X acabou, mas que consegue arranjar, se..."

A. diz ser importante ter "um sócio com força", alguém com "influência". Mas conhece quem esteja sozinho e se dê bem. "A questão do sócio local é importante quando há problemas.De forma geral isto é válido para qualquer país, em Angola é só um bocadinho mais..."

2012 é ano de eleições, e A. tem "uma certa expectativa", mas defende que "o melhor que acontece a Angola é ter um líder forte". É certo que algumas notícias são "abafadas" - como as manifestações contra José Eduardo dos Santos -, mas o país precisa de "uma democracia musculada". Confirma que o MPLA é "uma grande máquina", com "acesso ao dinheiro" e que há "dois, três anos" o partido está a trabalhar nas eleições - ou seja, é provável que ganhem. Tirando raras excepções, os negócios estão nas mãos de pessoas que acabam "por estar todas ligadas ao MPLA". E sempre que "há dinheiro, há negociata".

Quanto aos portugueses, "ajudam-se pouco": "Não têm poder para isso." E não há "muita vantagem num português ser visto como uma personalidade de poder": "É negativo para o negócio. Se tiver um negócio forte, o melhor é ter um angolano como a cara. O low profile de um estrangeiro é o melhor posicionamento a ter em Angola e com os portugueses existe uma relação de amor/ódio a que é impossível dar a volta." Amor/ódio porque: "Temos tudo a ver com Angola e fomos os colonizadores, os gajos que rebentaram com Angola." O esquema de se dar dinheiro por baixo da mesa faz parte de "uma maneira de estar que implica muita prevaricação". "[Mas] os angolanos aprenderam connosco, tudo o que acontece em Angola é igual ao que acontece em Portugal, só que é cinco vezes mais. Há 20 anos, Portugal não era diferente", observa.

C.

"A corrupção é completamente democratizada"

Para um estrangeiro, andar a pé à noite em Luanda não é fácil. Não há passeios, nem "grande segurança", mas o "perigo real é menor do que o perigo percepcionado", diz C. Gere uma empresa de materiais de construção em Angola.

"O Estado intervém nas empresas através das pessoas que ocupam lugares no Governo e o fazem em proveito próprio. Os cargos públicos transformam-se em negócios. Em Angola, como em Portugal, as pessoas confundem cargos públicos com o tacho." A corrupção atravessa a sociedade de forma "horizontal, transversal, vertical, oblíqua" e vai do "chefe ao paquete". Veja-se o caso da polícia: não se entra na profissão por causa do ordenado, mas da "gasosa" - até porque os polícias, além de ganharem mal, têm ordenados em atraso. "Mas, para eles, isto não é desonesto. Nem retira competitividade", analisa. No fundo, a "tal "gasosa" lubrifica o sistema".

C. descreve uma realidade onde parece difícil cumprir as regras dos negócios limpos. Não há maneira de os fazer em Angola? Acaba-se sempre "por ter que se corromper este ou aquele". Mas avisa: "Isto não quer dizer que as pessoas façam falcatruas." Traça o percurso de alguém que queira ir para Angola sem entrar no esquema descrevendo uma série de passos - e em todos eles "há oportunidade de dar a "gasosa"".

Contado assim, diz, a corrupção em Angola parece mais grave do que realmente é. A questão, relativiza, é que "as empresas perfeitas só existem na cabeça dos legisladores". "Angola é um país que esteve em guerra, passou de uma economia centralizada para uma economia de mercado. Em países onde há mais permeabilidade à corrupção, as pessoas aproveitam o seu poder em proveito próprio. Não são melhores ou piores que nós. Quem quer ir para lá tem que relativizar."

No entanto, há áreas em que houve melhorias. "O problema da corrupção em Angola não se deve colocar ao nível das empresas, é um problema do Estado como um todo e quem tem de actuar é o Estado".

Curiosamente, conta, as piores experiências que teve foram com portugueses: "Por vezes tenho vergonha de dizer que sou português." Sabe de vários casos em que os portugueses vão "desviar dinheiro, roubar, enganar, aproveitam-se do sistema e da sua permeabilidade para fazer dinheiro sem qualquer tipo de escrúpulos".

Não conhece ninguém que tenha sido perseguido por ter tido conversas entre amigos. Mas é importante que essa opinião, se for crítica, "não seja pública", porque, a partir do momento em que o é, "é preciso ter cuidado". É certo que Angola é um "regime autocrático" onde o partido da "oposição é comprado pelo próprio poder - que facilita negócios a dirigentes de outros partidos". "Mas não se sente opressão. É mais totalitário em termos económicos." C. tem uma opinião semelhante à de quase todos os entrevistados: "Teoricamente, devia haver uma abertura. No mundo real, se se quiser paz a longo prazo, era bom termos estabilidade durante alguns anos. Se é preciso aguentar o José Eduardo dos Santos, isso é um mal menor porque há um vazio de poder."

F.

"Não venho para aqui para mudar isto"

Está na área de materiais de construção e diz que o mais difícil é o trânsito, a burocracia, a quantidade de pessoas... Descreve uma realidade em que a corrupção está instalada no quotidiano. Pode-se evitar entrar no esquema, mas quem disser ""não pago" vai complicar seriamente a sua vida" e demorar mutio mais tempo a resolver questões. "O desgaste é enorme, a produtividade é muito menor... A corrupção aumenta a produtividade. É preciso ver que um indivíduo normal ganha 200 dólares na cidade mais cara do mundo, quase ninguém vive do ordenado..."

Os subornos negoceiam-se. Ao princípio estranha-se, depois "fica-se imune": "Vamo-nos habituando." "Tudo se resolve com dinheiro." Exemplo: "Estamos a pôr cimento no chão. O fiscal chega e diz que a obra é ilegal. Começa a passar a multa. "Quanto é?", perguntamos. "São dois mil ou três mil dólares", responde. A pessoa diz: "Veja lá se se resolve de outra maneira." Negoceia-se."

Claro que jogar o jogo "perpetua o sistema", admite. "Mas não venho para aqui mudar isto, vou ter de me adaptar às regras." Quem é estrangeiro sente-se "mais vulnerável" porque está com visto que ou não é o adequado, ou expira rapidamente. "Estamos num país em que não podemos bater à porta da polícia para nos ajudar."

Politicamente, é "muito bem controlado, pelos serviços de informação, pela polícia": "Se há uma manifestação, aquilo é abafado. O MPLA é que gere o país e posiciona-se em todas as áreas. Cada pessoa que sai da linha do partido, é observado. Os serviços de inteligência são fabulosos, andam no meio de toda a gente." Nunca se sentiu observado, nem inseguro, mas a questão é que também está "muito mais alerta", porque "pode haver retaliações" - e, se chegarem, nunca são explícitas. "Começa a cair uma carta do Ministério das Finanças, inspecções, etc." Também não tem interesse em expressar opiniões políticas: "Como estrangeiro acho que são eles que têm que resolver, não nos devemos meter." "Quando os angolanos andam com um "tijolo" a ouvir um rap que diz mal do Zédu [José Eduardo dos Santos], também não vão para a praça..."

Apesar das dificuldades, "é uma aventura, um escape em relação à situação em Portugal". "Acabei por aproveitar o divórcio para mudar de vida."

J. A.

"O Presidente defende os interesses de Angola como ninguém"

Na relação entre angolanos e portugueses há vários equívocos, diz José Luís Moraes Alçada, 70 anos. Por falarem a mesma língua, "muitos portugueses caem de pára-quedas e acham que não precisam de aprender a cultura local". Moraes Alçada está a viver em Luanda desde 2000, depois de ter estado em Angola na tropa nos anos 1960 e de ter dirigido a empresa de seguros do grupo Champalimaud no país até 1975. Dirige a sua própria companhia na área das salinas no Lobito, mas antes lançou em Angola a corretora de seguros americana AON. Foi mandatário de Manuel Alegre na candidatura à presidência no ano passado.

Há diferenças em relação ? ?à ética, tempo, posição da mulher e trabalho" e muitos portugueses querem aplicar "os seus parâmetros" a Angola, diz. Dão-se mal. Os que se adaptam são "uma minoria". "Numa empresa na Europa, eticamente tem que se defender os interesses da empresa. Aqui a comunidade e a família estão primeiro. Um trabalho de responsabilidade aqui tem que ser confiado a uma mulher, as empresas têm que se alicerçar no trabalho das mulheres. O homem está à espera de uma oportunidade para ir fazer política, beber uns copos ou ir ver futebol. Claro que isto é exagerado, mas ainda é verdade."

Ao longo da conversa ironiza com as organizações internacionais "se chocarem" com o facto de José Eduardo dos Santos estar no poder há 32 anos. A "forma de poder vitalício e absoluto" faz parte da tradição africana - e já fez parte da História europeia também. Contrapõe: "A rainha da Inglaterra está há mais tempo no poder." A comparação é feita entre uma rainha com poderes limitados e controlados pelo Parlamento e um presidente sem essas restrições. Diz-se anarquista e sem ligações ao poder angolano, não esconde o seu apoio ao regime, e classifica o Presidente como "excelente político", que "defende os interesses de Angola como ninguém" contra os poderes internacionais externos dos Estados Unidos ou da França, porque, sendo um país "extremamente rico", "cada um quer a sua fatia". É verdade, sim, que o Presidente "tem o poder absoluto económico e político" e que "o distribui pela família", mas isso é "à africana". Diz mesmo que o Presidente "está a fazer um esforço para melhorar a parte social" de Angola e a "limpar os gananciosos": "De há dois anos para cá o investimento na Saúde e Educação é notável e é dele." Quanto à corrupção, quando o tentam "encostar à parede" pede ajuda a amigos. Nunca precisou de ceder e não vê a corrupção na polícia como tal, vê-a como "sobrevivência". Claro "que, quando as pessoas chegam aqui e querem resolver tudo com corrupção, eles aceitam. Mas a maior parte das vezes acontece porque é a maneira mais fácil".

D.

"Opto por guardar as opiniões políticas para mim"

Chegou a Angola a pensar que ia ficar três anos, já está há seis. A trabalhar na área do ambiente como consultora, diz que, além de ser atractivo monetariamente, viver e trabalhar em Angola "é gratificante". O ambiente é uma área que começa a desenvolver-se e é um "desafio", porque "está tudo por fazer". "Trabalhamos muito mais, não é maravilhoso como as pessoas pensam." Também aqui há corrupção, tanto que se gerou "um mercado paralelo", mas tem encontrado "um cuidado da parte do Ministério do Ambiente". Há quem tente que os consultores melhorem os relatórios ambientais que fazem, que escondam as partes negativas, mas ela tem uma filosofia: "Contorno a questão eticamente. Não vou favorecer quem quer que seja, está em causa a minha credibilidade. Podemos perder alguns clientes, mas ganhamos outros." A corrupção funciona de forma "declaradamente aberta".

No quotidiano, a vida diária é difícil: é preciso "dar dinheiro constantemente" para ter "água, gasóleo no gerador..." - ela nunca sai à rua sem umas notas no bolso. Em matéria de suborno à polícia, correm-se riscos, como aconteceu a um amigo a quem o polícia, indignado, perguntou: "Acha que sou corrupto?"

Em Luanda não sente tão intensamente a presença dos serviços de informação - mas eles estão por todo o lado, garante. E na empresa onde trabalha há sempre alguém mais activo ligado ao MPLA a tentar angariar membros para o partido.

Fora de casa e longe do grupo de amigos não "tem opinião declarada": opta por dizer que é "apartidária", porque a maior parte das pessoas "identifica-se com o partido" e algumas das suas opiniões "vão contra os ideais" delas. Isso pode arranjar problemas. "Não há liberdade de expressão, não é uma democracia. Opto por guardar as opiniões políticas para mim por uma questão de respeito. O país não é nosso, esta terra é dos angolanos." Por vezes pode ser "constrangedor" optar pelo silêncio, confessa. "Mas é assim."

S.

"Mais vale apostar em coisas positivas"

Dá aulas numa universidade fora de Luanda e já teve como alunos vários políticos. Se lhe dissessem hoje que teria de ir para Luanda, recusava: a vida condomínio-trabalho não a atrai nem um pouco, em parte pelo facto de os portugueses que conhece viverem como num "gueto", não se misturando com angolanos.

Em Angola desde o princípio dos anos 2000, esteve durante seis anos sem visto de trabalho: de três em três meses saía para renovar o visto ordinário e voltar à sala de aulas. Nunca tratou do assunto - era a faculdade que o fazia - e sabe que esteve ilegal. Mas diz também que este é um exemplo de que, em matéria de corrupção em Angola, "às vezes mais vale ultrapassar certo tipo de coisas": num país onde está tudo por fazer e há falta de quadros e professores era "mais positivo estar lá a dar aulas".

É verdade que a corrupção é um problema "endémico" à sociedade mas justamente por isso S. tem uma posição particular sobre o assunto: "Há tanto para apostar que mais vale apostar em coisas positivas do que combater uma coisa que está tão enraizada... O Governo até tem políticas correctas - mas nada funciona. Porquê? Porque falta uma coisa básica que é educação. Enquanto as pessoas não tiverem forma de distinguir que a corrupção não é correcta, não vale a pena."

É preciso, portanto, dinheiro para tudo e os portugueses quando vão para lá "pagam, porque não conseguem de outra forma". A polícia mandou-a parar uma vez "no meio da nada", S. conduzia sozinha, disseram-lhe que iam apreender o carro por uma razão "absurda": "Estava sozinha ali, o que é que eu ia fazer?" Depois as pessoas estão "meses sem receber": "Quem é que pode criticar estas pessoas que precisam de alimentar uma família inteira?" Descrevendo um país onde as leis são aplicadas de forma "aleatória", S. também conta que há quem tenha ido parar à prisão por ter posto dinheiro entre o passaporte ou em outros documentos, sendo acusados depois de suborno: "Pode sair o tiro pela culatra..."

"[Politicamente], não é fácil, ainda se sente que não nos podemos exprimir livremente." Existem "bloqueios" e por vezes é difícil exprimir opiniões e pontos de vista diferentes sobre o país, que podem ser interpretados como um ataque. Na sala de aula os alunos são capazes de criticar o Governo, mas depois falta o passo seguinte, o "como fazer".

Mas ela não se coloca na posição de "fazer críticas públicas": por ser estrangeira, por não ter passado pela guerra como os angolanos. "Não me acho no direito. Acho mais importante [dar as ferramentas críticas] na sala de aula. Todos temos uma função e essa não é a minha."

O que nota é que para muitos angolanos "não há distinção entre o país, o partido [MPLA] e o Presidente"; por isso, quando se faz uma crítica "parece que se está a fazer um ataque pessoal". Depois é a velha história: "É como alguém que tem uma nódoa, mas não gosta que lhe seja apontada." Certo que, não tendo um salário milionário, tem condições financeiras muito melhores do que teria em Portugal. Vale a pena? "Eles estão ávidos para aprender. Profissionalmente, sinto que estou a fazer alguma coisa importante."

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