Um triunfo sobre o nervo ciático e sobre a maldição de Poulidor

Vencedor na edição de 2000, Vítor Gamito conquistou a Volta a Portugal depois de o coração ter aguentado quatro segundos lugares. Mas foi em 2014 que o nível de popularidade subiu em flecha.

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Demasiado competitivo para encostar a bicicleta na garagem, Vítor Gamito, de 47 anos, desfia ao PÚBLICO as memórias de Voltas antigas e até de algumas bem recentes. Da que ganhou em 2000, das perdidas e do susto do coração, mais teimoso e forte que a própria razão.

A pedalar há mais de 30 anos, Gamito sabe de cor as curvas de uma carreira que despontou em 1993, com o primeiro de quatro segundos lugares na Volta a Portugal, “maldição” que atirou para a berma em 2000, livrando-se a tempo do rótulo de Poulidor português.

Ainda amador, no Tróia Marisco, venceu o Grande Prémio JN, que o catapultou para o profissionalismo, directamente para a equipa que vencera as últimas três Voltas. Na estreia, pela Sicasal, encantou o pelotão… só não foi capaz de superar Joaquim Gomes (1993) e Orlando Rodrigues (1994). Vítor Gamito ganhava reputação, mas recusava ser “eterno segundo”. Mesmo depois de perder para Massimilliano Lelli (1996) e David Plaza (1999), acabando, finalmente, por sagrar-se primeiro na transição para o novo século.

“O mais curioso é que nesse ano estive perto de desistir. Na Senhora da Graça sofri imenso por causa do nervo ciático. A única forma de suportar a dor era fazer a subida em pé. Tentei esconder dos adversários o sacrifício que estava a fazer, mas acabei por perder mesmo mais de um minuto. Pensei seriamente que teria de abandonar”, assume, 17 anos volvidos, ainda incapaz de explicar o “milagre” operado em Terras de Basto. “Depois dessa etapa, as dores passaram completamente. Venci na serra da Estrela e confirmei a vitória com o melhor tempo no contra-relógio”, relata, com tempo para mais um episódio hilariante.

“Na Volta a Portugal costumava fazer madeixas loiras. Com a vitória assegurada, depois dos quatro segundos lugares, a equipa decidiu pintar o cabelo para celebrar. Era uma espécie de pintura de guerra. Comprámos os produtos num supermercado e cada um espalhou pela cabeça. Depois andava tudo de papelotes pelo hotel. O problema é que a tinta provocava reacções diferentes consoante o tipo e cor de cabelos. E isso estava bem explicado no rótulo… que só lemos quando alguns começaram a ficar com o cabelo laranja. Para piorar, o rótulo advertia que a coloração era definitiva, não saía com lavagens. Alguns raparam logo a cabeça, mas houve quem andasse uns dias assim antes de ganharem coragem para fazer uma carecada”, desfia.

Até ao adeus prematuro, em 2004, não houve mais motivos para pintar o cabelo. Um exame médico detectou-lhe problemas cardíacos (bloqueio auriculoventricular de grau 3) que o obrigaram a encerrar a carreira profissional, apesar de avaliações posteriores menos conclusivas. “Os médicos não arriscaram e não me consideraram apto”, lamenta, até porque depois de três anos como director desportivo, as pedaladas voltaram a falar mais alto. “Fui a provas de BTT com uns amigos, meramente por brincadeira, mas a competição logo começou a dominar-me. E como não tinha tido oportunidade de me despedir da Volta a Portugal — em 2003 corri sem saber que era a última — decidi voltar à estrada aos 44 anos.”

Encontrar equipa, porém, parecia na altura um desafio ainda maior do que a tarefa de começar e acabar a Volta de 2014. “Foi complicado convencer uma equipa profissional, mas acabei por integrar a LA Antarte. Pedi licença à empresa em que trabalho e preparei-me durante três meses. Ganhar não estava nos planos de ninguém, mas a vitória a nível de comunicação foi estrondosa. Era um fenómeno nas redes sociais e isso garantiu o sucesso no campo do marketing. No final tinha mais gente à minha espera do que o próprio camisola amarela. Todos queriam uma fotografia comigo e cheguei mesmo a interromper a segunda etapa, no Bom Jesus, para uma sessão de autógrafos improvisada.”

Vítor Gamito pode ter acabado a prova em 82.º, a 1h45m do vencedor, mas afastou o fantasma da Volta a Portugal, em que a evolução se notou essencialmente no nível de condições oferecidas aos mais novos: “Agora todas as equipas têm autocarro, o que é fundamental para o descanso dos ciclistas, que antes se equipavam muitas vezes na rua, a caminho da meta. Essa foi a maior alteração, pois em termos nutricionais, métodos de treino e estruturas técnicas não vi grande evolução.”     

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