Teodósio das Neves

É costume dizer-se que os Jogos Olímpicos da Antiguidade duraram mais de um milénio até serem abolidos pelos romanos. Por todos os romanos? Não. Na verdade, os romanos adotaram os jogos olímpicos e continuaram a promovê-los e a participar neles durante mais de quatrocentos anos após a sua conquista da Grécia. O que acabou com os Jogos Olímpicos antigos foi a chegada ao poder do cristianismo.

Teodósio, o primeiro imperador cristão a governar sobre o Império Romano (Constantino foi o primeiro a converter-se ao cristianismo, mas já perto da sua morte), emitiu uma série de decretos abolindo todo o tipo de cultos aos deuses pagãos e foi assim que os jogos olímpicos, que eram tanto uma festa religiosa quanto desportiva, se extinguiram por mais de mil e quatrocentos anos. Teodósio era orgulhosamente intolerante contra os rituais, as imagens e a sensualidade do paganismo. Após Teodósio, só se voltou a falar do reestabelecimento dos Jogos Olímpicos com a Revolução Francesa e o olimpismo só renasceu moderna e definitivamente em 1896.

Claro que tudo isto foi há muito tempo e, hoje, poderá dizer-se, já não há cristãos assim. Desapareceram todos. Todos? Não. Num canto da antiga Lusitânia subsiste João César das Neves, economista de profissão, que escreve no Diário de Notícias e dedicou a sua mais recente crónica ao caso atlético e humano de Michael Phelps, vencedor de inúmeras medalhas na natação olímpica desde o início do milénio.

Michael Phelps teve um problema de depressão e alcoolismo há uns anos, de que recuperou, permitindo-lhe regressar de forma feliz, tanto quanto é possível ver, nestes Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. Um cronista mais ajuizado talvez suspendesse o seu julgamento perante coisas tão pessoais como a depressão e a dependência de uma pessoa que só conhece pela televisão. César das Neves, não. Imbuído de um certo espírito de caridade e obedecendo de forma pessoalíssima à injunção de não atirar a primeira pedra, limita-se a declarar que Phelps é “um monstro, no sentido próprio do termo”; que “só pode ser uma pessoa altamente desequilibrada” cuja personalidade terá sido deformada por ter passado vários anos “focado numa única tarefa repetitiva” de “esbracejar e espernear dentro de água” com o objetivo de atingir marcas que “são não apenas imorais, pelos efeitos horríveis que têm nas suas vítimas, mas, neste caso particular, abertamente ilegais”. O que quer que isto signifique. Mais do que um profissional, proclama finalmente César das Neves, Phelps é “um obcecado”, transformado — como os outros atletas olímpicos — pela “ânsia por espectáculo, fama e dinheiro”. No fundo, “apenas um exemplo do materialismo boçal desta era de extremos, que seca tudo à sua volta”.

Houve quem ficasse boquiaberto com a crónica de César das Neves. Houve quem ficasse chocado. Eu confesso-me fascinado. É raro um historiador poder encontrar uma relíquia como esta, este vestígio intacto do pensamento de outras eras, esta espécie de menino do Lapedo do intelecto. Só lamento mesmo, por pura picuinhice histórica, que o nosso cronista tenha o nome do imperador errado. César das Neves não está bem. Teodósio das Neves é que deveria ser.

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