Telmo Pinão, um “barreirista” no paraciclismo

Renascer depois do acidente. Alcançar um título nacional. Chegar aos Jogos Paralímpicos. Em todos estes itens o ciclista de Montemor já colocou um visto. Na sua cabeça, o futuro fora do desporto está desenhado com nitidez, mas Telmo só pede que o deixem ir um pouco mais além.

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Um dos ruidosos portões do Centro Náutico abre-se para convidar a luz a entrar. Telmo está sentado no degrau que dá acesso ao ginásio, pernas estendidas, prótese esquecida. Acabou de cumprir um treino ligeiro, em regime de recuperação activa, e olha em frente, na direcção da pista de remo e canoagem que é já um dos ex-líbris da cidade de Montemor-o-Velho. Até aqui, durante toda a manhã, só vimos o lado solar do paraciclista. A boa disposição genuína, a capacidade de trabalho, o estoicismo. Mas há momentos em que um certo desencanto vem ao de cima: “Quantas vezes não me passou pela cabeça desistir. De forma irónica, até costumo dizer - ‘Não preciso disto’”, atira, antes de fazer uma pausa. “Preciso, preciso para aqui”. “Aqui” é o peito, a alma, o coração de Telmo. Um coração de atleta, seja qual for o prisma pelo qual se olhe.

Em meados de Julho, quando Telmo Pinão garantiu definitivamente uma vaga nos Jogos Paralímpicos do Rio, não foi apenas um objectivo desportivo que se concretizou. Foi um lema de vida que vingou. Foi toda uma mensagem de resiliência e de confronto aberto com a adversidade que saltou mais uma barreira. Para trás, ficavam anos de esforço, muitas vezes em solitário, e uma luta contra ventos que ainda hoje sopram de diferentes paragens. Subitamente, aquela decisão de se aventurar no ciclismo, em 2008, depois de uma mão-cheia de outras experiências, ganhava um novo sentido.

É sexta-feira e o céu da manhã começa a aclarar-se à medida que nos aproximamos de Montemor. Poucos quilómetros depois, estamos a subir a estrada em direcção ao centro de Alfarelos e Telmo já está à nossa espera, de telemóvel no ouvido para as instruções da praxe e a acabar de vestir o equipamento do Clube Ciclismo da Bairrada. Convida-nos a entrar na garagem enquanto conclui a metamorfose e se prepara para o quinto dos (agora) habituais sete treinos semanais. “Vamos lá?”, desafia, depois de explicar detalhadamente as adaptações técnicas que exige o apoio para a perna que lhe foi amputada em 2003. “Isto foi um amigo meu que trabalha na indústria automóvel que me fez”, adianta, apontando para a peça em alumínio que suporta o selim.

É justamente este encaixe que lhe permite continuar a competir, depois de um conjunto de dissabores que se seguiram ao revés dos revezes. A história já a terá contado vezes sem conta, mas nem por isso enjeita recuperá-la, sem complexos ou hesitações. “Foi um percurso de Moto4 que eu estava a fazer e, ao sair de um trilho, fui abalroado por uma carrinha que ia a passar. A mota girou e fui embater com esta perna num poste”, resume.

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Aquela perna, a esquerda, virou-lhe a vida de cabeça para baixo. As lesões eram demasiado severas e, depois de vários dias de internamento, a amputação, 15cm abaixo do joelho, provou-se inevitável. Aos 22 anos, teria de aprender a reinventar-se, para a vida e para o desporto. Ou melhor, reinventar-se para a vida, através do desporto. Ele, que durante a juventude chegou a praticar ténis de mesa, basquetebol, atletismo, tinha agora um desafio maior que todos os que enfrentara até então: saltar a barreira do dia-a-dia.

Passaram cerca de seis meses até voltar ao activo. Cumprida a etapa de adaptação à prótese, começou pela reabilitação no ginásio, antes de se aventurar no karaté. Foi o início de um ciclo de cinco anos que, mais do que a regeneração muscular, lhe devolveu a autoestima. Até que, em 2008 – e com uma experiência no boxe pelo meio – “descobriu” o BTT e uma rampa de lançamento para o desporto de alta competição. Uma pedalada levou à outra e não tardou a despertar interesse e a representar equipas com o peso da W52 e da Efapel, antes de se vincular ao Clube Ciclismo da Bairrada.

De volta à garagem de Telmo: “Vamos lá?”. De Alfarelos ao Centro Náutico de Montemor, o paraciclista que nasceu em Casais Velhos e construiu parte do currículo escolar em Condeixa cumpre o percurso com a agilidade de quem há muito fez do trajecto rotina. O treino ligeiro (no dia anterior tinha subido a serra) prevê algumas voltas ao complexo de remo e canoagem e, inesperadamente, acabamos por entrar no guião. “Ponham-se à minha frente com o carro e vão acelerando progressivamente à medida que eu for dando indicações, mas não exagerem”, atira. A esta abordagem específica os especialistas chamam meio fundo, um treino em que o veículo ampara parte do vento e “reboca” o atleta até velocidades que atingem facilmente os 80 ou 90km/h, gerando uma rotação acelerada das pernas e um elevado ritmo cardíaco.

Encarar Telmo através do espelho retrovisor ajuda-nos a perceber a dimensão do desportista que estará no Rio de Janeiro, a competir a partir de 14 de Setembro, dia em que o paraciclismo de estrada entra em cena. Um desportista que percorreu um longo caminho desde uma das primeiras provas da carreira, em que ficou em segundo lugar por respeitar o código (“Não sabia que se podia fazer as rotundas por dentro”, ri-se), até à recente Taça do Mundo de Ostend, em Maio, quando lhe saltou a corrente numa altura em que, à entrada para a última volta, acompanhava o grupo da frente.

Têm sido dias alucinantes para o licenciado em marketing, que trabalhou em Portimão de 2005 a 2009. A vida tem-no mantido em alerta permanente, com o modo adaptação a trabalhar em contínuo. Por isso, quando o médico lhe comunicou que era demasiado perigoso continuar a competir com a prótese, Telmo desmoralizou mas não desabou. “Tenho uma osteomielite crónica”, explica. No fundo, é uma bactéria, que está alojada demasiado perto do líquido que se vai formando na bolsa protectora que se tem gerado na perna amputada. Uma bactéria que já o forçou a duas intervenções cirúrgicas e que, no limite, o poderá obrigar a uma nova amputação, agora acima do joelho.

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Quando recebeu a notícia de que não deveria pedalar mais com a prótese, foi para casa “de rastos”. Retirarem-lhe a bicicleta, naquela altura, era darem-lhe uma machadada violenta na autoconfiança. Quando recuperou do embate, decidiu procurar uma solução e acabou por encontrá-la nos regulamentos do paraciclismo: era possível continuar a competir, sim, ainda que numa classe diferente. Deu início ao processo, foi submetido a uma avaliação rigorosa dos médicos da UCI (União Ciclista Internacional) e foi autorizado a transitar da categoria C4 para a C2.

Começava outro capítulo. Era preciso aprender a pedalar com a perna direita apenas (a esquerda, amputada, assenta num apoio aplicado na base do selim). Era preciso reequilibrar forças musculares e redefinir o trabalho no ginásio para compensar o melhor possível a atrofia provocada num membro amputado que deixara de ter um propósito em cima da bicicleta. Mas Telmo é como uma árvore: sólido na determinação e com as raízes sempre em movimento, à procura da água da vida. Reinterpretou-se e readaptou-se. “Não foi assim tão difícil”, deixa cair, com modéstia.

O sonho antigo de chegar aos Jogos Paralímpicos começava a ganhar forma. E depois de anos em regime de part-time (“Entrava na empresa às 7h e saía às 20h e confesso que muitas vezes chegava a casa e ficava a olhar para o sofá…”), tomou uma decisão que lhe impulsionou a performance. Em Janeiro, depois de submetido à mais recente operação (sim, foi de novo a bactéria a manifestar-se), abordou o patrão e acordaram que a saída era a melhor opção, até porque fazer trabalho à secretária em Lisboa não estava nos seus horizontes. Ficou livre de compromissos profissionais, activou o fundo de desemprego e, em Março de 2016, voltou à estrada.

“Se em quatro meses eu consegui esta evolução, imaginem em quatro anos”. Entrou em acção um regime totalmente dedicado ao paraciclismo, com apoio do staff do clube que representa, do amigo (e remador olímpico) Pedro Fraga e de uma série de ciclistas da região que o acompanham nalguns dias de treino. O contacto diário com o treinador reforçou-lhe a retaguarda e os resultados que o campeão nacional foi somando inflamaram-lhe a motivação. O passaporte para o Rio de Janeiro foi a chegada à meta que há muito ambicionava.

Mas há muito que Telmo Pinão se acostumou a não dar nada como garantido. De resto, os alçapões que tem encontrado ao longo da vida reforçaram-lhe a capacidade para lidar com a adversidade. Por isso, quando há um mês e meio se despistou de carro, nas Penhas da Saúde, teve sangue frio suficiente para evitar o pior. “Ia a fazer a descida Covilhã-Belmonte e os travões partem, os da frente. Dão um estalo enorme. Um jeep de três toneladas, desgovernado, a descer sem travões… foram momentos únicos de aflição na minha vida. Eu pensei morrer”, desabafa. “Mandei a mão ao travão de mão, as quatro rodas a derrapar, ele vira de lado, volto a virar e depois o carro fez isto”. Numa palavra, capotou.

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Para o desportista comum, seria motivo bastante para ir para casa recuperar do susto. No mínimo. Mas Telmo virou as costas à solução mais fácil: “Ainda subi a serra naquele dia e ainda fui treinar, normalmente”, revela, assumindo que se preocupou essencialmente em verificar se a bicicleta tinha sofrido danos. Não sofreu. Ia na mala e escapou ilesa, como o condutor.

O treino terminou no Centro de Alto Rendimento e estamos de volta a casa, em Alfarelos. Na sala de estar, a um canto, está depositada a mala que vai seguir para o Brasil, já com o equipamento oficial e todo um manancial de expectativas lá dentro. Desafiamos Telmo para almoçar e, no trajecto até ao restaurante, descobrimos uma outra faceta de um paraciclista de elite. Nas últimas eleições autárquicas, já se tinha candidatado nas listas do PS, com o cargo de vereador do Desporto em ponto de mira. Falhou por pouco mais de 500 votos, mas promete voltar a tentar em 2017. “Trabalhar no desporto e ajudar o meu concelho é algo que gostava de fazer”, reconhece.

Esse é um desígnio, porém, que mesmo a concretizar-se pode muito bem ficar pendurado à espera do fim da carreira. E é aqui que entra em cena o lado lunar de Telmo, a angústia de alguém que tem investido do próprio bolso (e sacrificado a vida familiar) e que não vê nas autoridades uma vontade clara de fazer apostas concretas nos atletas. Não é apenas aos “400 e poucos euros” da bolsa afecta ao paraciclismo que se refere, é a toda uma estrutura de apoio e preparação de um desportista profissional que simplesmente não existe.

“Eu sou um ciclista normal, que trabalha como outra pessoa qualquer, que faz os descontos como outra pessoa, porque é que não posso dedicar-me a esta causa? Eu estou disposto a isto e já o disse: ‘Digam-me assim, Telmo, vamos-te apoiar para fazer Tóquio [Jogos de 2020]’. E eu vou a Tóquio e se calhar vou lá discutir medalhas, mas é preciso ter condições para isso”, apela.

Na prática, o que é preciso é ter uma retaguarda que evite episódios tão rocambolescos como o que viveu quando foi competir com um colega numa prova internacional, na Suíça. Os dois, sozinhos, entregues à sua sorte. “Um amputado de uma perna e outro só com um braço”, ilustra. A seu cargo, as malas pessoais e as malas que transportam as bicicletas. E o transfer para o hotel. E a viagem para o local do evento. E de novo a logística das bagagens, no regresso. “Eu tive de atar um lenço às duas malas para poder puxá-las com um braço e carregar a bicicleta no outro, enquanto ele levava a bicicleta dele”, recorda.

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Olhando para o trajecto de Telmo, poderá dizer-se que estamos na presença de um ciclista com alma de barreirista. De um atleta que vai superando obstáculos, uns atrás dos outros; que prefere partir para a solução em vez de perder tempo a lamentar-se. Estamos na presença de alguém que quer dar o exemplo e deixar um legado (se dúvidas houvesse, o papel dinamizador da Associação Portuguesa de Ciclismo Adaptado está aí para o provar).

A frase é extraída do filme Rocky Balboa e só é para aqui chamada porque assenta como uma luva (de boxe) na vida de Telmo Pinão: “Nem tu, nem eu, ninguém é capaz de bater com mais força do que a vida. Mas não se trata da força com que consegues bater. Trata-se de seres capaz de ser atingido com força e conseguires seguir em frente”. Salvaguardada a tradução livre, é uma máxima que o ciclista de Montemor provavelmente quererá transmitir ao filho que está a caminho.

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