Simone Biles prestes a virar a ginástica olímpica de pernas para o ar

A atleta norte-americana prepara-se para dominar por completo o concurso feminino de ginástica no Rio 2016. Nesta madrugada ajudou os EUA a ganhar o ouro na prova por equipas. E quer sair do Rio de Janeiro com cinco medalhas.

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Simone Biles em prova no Rio de Janeiro, onde já começou a brilhar REUTERS/Dylan Martinez

A primeira coisa que notamos é a imensa altura que ela atinge e a seguir a potência do seu salto. Como é que uma pequena fada com 1 metro e 44 centímetros se consegue lançar para o ar com uma tal amplitude e explosão, como se fosse movida a jacto?

Depois notamos o seu sorriso encantador que mantém enquanto corre, salta, rodopia e faz mortais e cambalhotas no salto de cavalo, na trave, nas paralelas assimétricas ou de uma ponta a outra do praticável no solo.

Os movimentos de ginástica de Simone Biles simplesmente não se assemelham aos de qualquer outra atleta. Biles compete com uma alegria e uma naturalidade que têm rareado na ginástica artística feminina nos últimos anos. Na maioria das vezes, jovens com rabos-de-cavalo e caras sérias cerram os maxilares, franzem as sobrancelhas e inspiram um pavilhão de ar antes de se lançarem em piruetas, saltos e movimentos rigorosos e medidos a régua e esquadro. Os seus feitos podem ser espantosos a nível de acrobacia, mas o esforço para os alcançar é palpável. 

Biles, pelo contrário, exala uma deliciosa alegria, competindo como se a trave olímpica de 10 centímetros de largura fosse o passeio em frente a sua casa, como se o cavalo e as paralelas assimétricas fossem apenas peças do seu baloiço no quintal, e como se o colchão fosse um tapete mágico para se divertir lá no alto.  

Desde 2013, nenhuma das rivais de Biles se conseguiu aproximar das notas que obteve no caminho para os três títulos consecutivos de campeã mundial absoluta e, nos finais de Junho, o seu quarto título norte-americano consecutivo, que venceu em St. Louis (estado do Missouri), com a sua melhor pontuação de sempre (125,000), quase quatro pontos a mais do que a segunda classificada, Aly Raisman, que obteve 121,100.  

No meio do seu exercício de solo, Biles percebeu que nas bancadas se encontrava Shawn Johnson, medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 2008, piscou-lhe o olho e continuou com as suas acrobacias. Um vídeo que circula na Internet, retirado da emissão da cadeia NBC que seguiu a sua actuação, um portento de técnica e de arte ao som de um ritmo de salsa, atingiu os 11 milhões de visitas logo nos primeiros dias em que esteve disponível.

“Esgotam-se os adjectivos quando falamos de Simone Biles”, afirmou o ex-ginasta e actual comentador desportivo Tim Daggett, referindo-se àquela prova da atleta.

E essa será apenas uma minúscula parte da atenção que Biles, de 19 anos, está a atrair nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, onde a ginasta que mais facilmente conjuga os aspectos físicos e artísticos – que muitas vezes se opõem no desporto – poderá ganhar cinco medalhas de ouro.

Ela é totalmente favorita para o muito ambicionado título de campeã absoluta. Espera-se que lidere uma equipa dos Estados Unidos agora extremamente forte no caminho para a prestigiada medalha de ouro por equipas [feito conseguido na madrugada desta quarta-feira]. E, a não ser que suceda algum percalço (o que é muito raro), ela será intocável no salto de cavalo, no solo e na trave, dado o grau de dificuldade dos seus exercícios.

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A primeira medalha de ouro no Rio surgiu na prova por equipas na última madrugada REUTERS/Dylan Martinez

Até chegar ao Rio de Janeiro, Biles teve ainda de ultrapassar um último obstáculo: entrar para a equipa oficial feminina norte-americana, cujas cinco ginastas foram escolhidas após as provas de selecção para os Jogos Olímpicos, que decorreram no início de Julho em San Jose, na Califórnia.

Entretanto, a sua treinadora de longa data, Aimee Boorman, tem a difícil tarefa de manter a sua olímpica no pico de forma, mas também embrulhada no que ela designa por “modo de plástico com bolhinhas”. Biles tem tarefas semanais para se manter com os pés na terra, entre elas: alimentar os seus quatro pastores-alemães, lavar os pratos das refeições e limpar o seu quarto todas as semanas.

“A coisa mais notável acerca da minha irmã é como ela é tão normal”, diz Adam Biles, de 30 anos, um dos seus dois irmãos. “Na realidade, essa é uma das facetas mais notáveis da nossa família. Não sabemos o que é que as pessoas famosas devem fazer, como devem agir, ou o que se espera que nós façamos. Por isso, quando vêem a Simone a competir no solo, e ela está feliz e sorridente e a fazer comentários e apartes engraçados, é assim que ela genuinamente é.”

O mundo do desporto tem que agradecer a uma onda de calor do Texas pela brilhante carreira de Biles. Ela tinha apenas 6 anos quando a sua turma do jardim-de-infância saiu para uma visita de estudo a um rancho, mas o calor intenso obrigou a uma mudança de planos. As crianças foram antes levadas para um ginásio, e Biles ficou extasiada.  

Sempre gostara de saltar em cima dos móveis de casa, de tal forma que a sua mãe, Nellie, estava cansada de lhe ralhar, explicando que o sofá e as cadeiras não eram o recreio. A ginástica era a solução ideal.

Em breve a pequena Biles chamou a atenção de Aimee Boorman. Simone estava no chão, olhando atentamente para as ginastas mais velhas, com as pernas estendidas para a frente, de forma a que o seu traseiro ficasse no ar. De repente, sem esforço, inverteu as pernas, passou-as pelo meio dos braços e fez uma prancha, só para se divertir.

“Isto não é normal!”, pensou Aimee Boorman, que ficou espantada com a musculatura da menina. “Lembro-me claramente de passar por ela e pensar ‘Tenho que olhar mais de perto para esta miúda’.”

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REUTERS/Mike Blake

A fortuita visita de Biles ao ginásio não foi o único ponto de viragem na sua ainda curta vida. O amor dos seus avós foi outro.

A sua mãe biológica, que enfrentava a dependência de drogas e do álcool, não conseguia sustentar os seus oito filhos e, durante algum tempo, quatro deles foram viver com Ron Biles, o avô paterno de Simone, que era controlador de tráfego aéreo, e com a sua esposa, Nellie, uma ex-enfermeira.

Após uma tentativa falhada de juntar as crianças com a sua mãe em Columbus, no estado do Ohio, os Biles adoptaram as duas crianças mais novas: Simone, então com 5 anos, e Adria, que tinha 3 anos. Outro familiar adoptou os dois irmãos mais velhos.

Por essa altura os dois filhos biológicos dos Biles, Adam e Ronald, estavam a chegar à idade de irem para a universidade, mas a fase de ter saudades dos filhos por se terem ido embora de casa foi adiada enquanto a família de quatro elementos passava a seis. Na noite seguinte à assinatura dos papéis de adopção, Simone parou nas escadas quando subia para se ir deitar, virou-se para Nellie e perguntou: “Bó”, que era como ela dizia avó, pois não conseguia pronunciar a letra “V”, “posso chamar-te mãe?”

“Claro que sim”, respondeu Nellie, que considera a situação “um grande momento”. “Fizemos aquilo como uma família”, conta, “e foi a melhor decisão que já tomámos.” Simone fez rápidos progressos no ginásio. Via outras meninas mais velhas a fazer um exercício e facilmente conseguia imitá-las. Tinha um incrível “sentido aéreo”, diz Boorman, ou seja, a capacidade de saber onde se situa o seu corpo enquanto está a dar piruetas no ar. O seu corpo compacto parecia ter sido criado para a ginástica. A sua audácia fazia dela uma aluna ambiciosa. E quanto mais ela se dava com ginastas de elite – as raparigas com aspirações olímpicas que conhecia nos estágios de treino a nível nacional – mais evoluía de acrobata para artista.     

“Eu apenas atirava o meu corpo e esperava que aprendesse os exercícios”, conta Biles de si mesma enquanto jovem ginasta. “Mas elas eram tão precisas e correctas em todos os movimentos que faziam, por isso eu queria ser como todas as outras raparigas.”

A primeira encruzilhada no seu desenvolvimento surgiu aos 14 anos, quando se aproximava do final do ensino básico. Simone estava já a competir a nível nacional e ansiosa por progredir para a divisão de elite. Para fazer isso, ela necessitava de treinar até 32 horas por semana e viajar para os locais onde se desenrolavam outras competições, o que tornaria difícil frequentar uma escola secundária pública.   

Isso forçou a uma escolha entre estudar em casa, para lhe dar a possibilidade de fazer da ginástica a sua principal prioridade, ou juntar-se aos seus amigos na escola secundária local, o que implicaria desistir dos seus sonhos de alcançar a divisão de elite. 

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REUTERS/Damir Sagolj

Ela insistiu que conseguia fazer as duas coisas, implorando a Ron e Nellie que convencessem a escola a abrir uma excepção para si. Eles tentaram, mas sem resultados.

Seguiram-se crises de lágrimas e amuos, enquanto Simone lutava para tomar uma decisão. “Eu disse-lhe ‘Qualquer que seja a tua decisão, eu apoio-te’”, recorda Nellie. “’Mas vais ter que tomar uma decisão. Não posso ser eu a tomá-la, porque isto vai realmente alterar a tua vida.”

Para Simone, então com 14 anos, a escolha era entre ter uma vida social e não ter nenhuma vida social.    

“Todos os meus amigos foram para a escola pública”, explica a ginasta. “Os jogos de futebol americano, ser um jovem normal… acho que na verdade ninguém quer estudar em casa sozinho durante quatro anos.” Mas assim que tomou a sua decisão, não mais vacilou. 

Boorman cresceu enquanto treinadora enquanto Simone crescia enquanto ginasta. Ela sabia quando devia espicaçar a sua jovem pupila, quando se devia afastar e quando devia surpreendê-la com dias de descanso, para evitar que tivesse um esgotamento. A haver uma preocupação, seria a de que Simone era demasiado exigente consigo própria, ficando hipercrítica à medida que se aproximavam as grandes provas. 

“Houve semanas em que não havia um dia em que não chorasse”, afirma Simone. Qualquer coisa a punha a chorar. Pensava nos seus cães e chorava; falhava uma posição invertida nas paralelas assimétricas e chorava. Lembrou-se de usar maquilhagem para os olhos nos treinos como um incentivo para não chorar – não resultou.

Nellie sugeriu meditação e exercícios respiratórios. Depois, e com algum esforço, convenceu Simone a ir a consultas de um psicólogo do desporto, para aprender a gerir e a lidar com as turbulentas emoções de adolescente e com as imensas expectativas que colocava a si própria.

“O que realmente me incomodava era a questão da autoconfiança”, conta Nellie. “Por melhor que ela se apresentasse, nunca achava que conseguiria chegar ao nível das suas colegas, porque as suas colegas eram também os seus ídolos. Ela achava que não era suficientemente boa. Foi difícil fazê-la compreender e aceitar que era tão boa quanto elas.”

Vencer o título absoluto no Campeonato do Mundo de 2013 quando era ainda uma completa desconhecida a nível global, e repetir o feito em 2014, deveriam ter acabado com toda essa falta de confiança em si mesma. Em vez disso, Biles estava nervosa quando se iniciou o Campeonato do Mundo de 2015 em Glasgow, na Escócia, e ficou zangada depois, por não se ter exibido ao seu melhor nível, apesar de ter conquistado uma terceira medalha de ouro.

“Toda a gente estava a tratar-me como se eu já fosse a tricampeã do mundo mesmo antes de termos começado, e isso enervou-me”, explicou Biles.   

Nas palavras de Boorman: “Dado que ela gosta de fazer as pessoas felizes, sentiu que era sua responsabilidade alcançar aquele objectivo [ganhar a medalha de ouro] por elas, apesar de não ser esse necessariamente o objectivo dela.” 

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Simone em acção na trave REUTERS/Damir Sagolj

Os programas que Biles preparou para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro são muito mais difíceis do que os das outras ginastas, nomeadamente os de solo, em que, se tudo correr como o previsto, tudo o que não for uma medalha de ouro será um choque a nível matemático. No sistema de pontuação da modalidade, cada ginasta começa com um determinado valor baseado no grau de dificuldade dos exercícios que irá executar. São atribuídas penalizações por cada falha ou imperfeição detectada pelos juízes. É também dada uma nota separada pela execução artística. Para superar Biles, uma outra ginasta teria que fazer uma actuação quase perfeita e esperar que Simone falhasse. 

Não é provável que tal aconteça, pois ela agora desabrocha sob as luzes dos holofotes, utilizando técnicas para enfrentar os seus nervos. E a sua confiança deverá estar a níveis estratosféricos. Desde 2013 todas as medalhas que ganhou nos Campeonatos do Mundo ou dos Estados Unidos foram de ouro.

Nenhuma outra ginasta consegue a mesma amplitude nas cambalhotas e mortais. Poucas conseguem sequer tentar a “Biles” – o movimento que leva o seu nome, e no qual efectua uma duplo mortal à retaguarda, com o corpo todo em extensão, e junta ainda uma meia-pirueta antes de chegar ao solo sem o ver. 

A maneira como sai da trave é um feito que desafia a gravidade. E Biles ainda tem mais truques na manga – exercícios com mais cambalhotas e mortais que ela faz no ginásio quando se sente especialmente ousada mas que não usa em competição, porque o risco é demasiado grande face aos benefícios que daí pode retirar.

O ginásio dos Biles, na zona norte de Houston, chama-se World Champions Centre [Centro de Campeões do Mundo], e é exactamente isso. Pertence a Ron e Nellie Biles, que o ergueram do nada, sendo o seu negócio após se terem reformado. Pediram aos arquitectos para criarem um edifício adaptado às necessidades das famílias, e o resultado é um oásis de 5200 metros quadrados, cheio de luz e repleto de cor para ginastas de todas as idades e capacidades, bem como para os seus pais e irmãos. Os Biles asseguraram-se de que incluiria todas as comodidades que eles gostariam de ter tido à sua disposição durante os anos em que se revezaram a acompanhar e a ver Simone a praticar e a competir em inúmeros ginásios em todo o país e no estrangeiro. Existe uma sala de observação só para adultos na parte de cima do ginásio, com acesso à Internet e sofás confortáveis. Existe um café; estúdios para dança e taekwondo para os irmãos que não se mostrem interessados em ginástica mas que precisam de se manter ocupados; salas de estudo para uso das famílias que dão aulas em casa aos seus filhos.

Não é exactamente como uma escola secundária, mas o ginásio também ajuda no que toca às relações sociais. No Verão passado, quando Simone completou o ensino secundário, Nellie perguntou-lhe se sentia que tinha tomado a decisão certa ao ter escolhido ter aulas em casa.

“Nem acredito que me estás a fazer uma pergunta dessas”, respondeu Simone, fingindo-se chocada. Depois, já séria: “Bem, mãe, é verdade que perdi muita coisa. Ao desistir da escola pública, perdi muitos dos meus amigos porque não temos os mesmos interesses. Não ‘ando por aí’, o que quer que seja que isso signifique. Nunca fui à festa de anos de ninguém, por isso não sei exactamente o que é que eles fazem lá. E nunca fui a uma recepção ao caloiro; nunca fui a um baile de finalistas. Desisti de muita coisa, mas tomei a decisão correcta, basta ver tudo o que alcancei.”

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